quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Post nº 13

LANCELOT  -  O  FICTÍCIO  CAVALEIRO
DO  REI  ARTHUR

Lancelot sagrado por Guinevere é ficção, pois mulheres não
sagravam cavaleiros. Tela de Edmund Leighton (séc. XIX)

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Tudo que se refere ao rei Arthur e seus cavaleiros tem origem lendária, mas boa parte está mencionado em vários poemas que circularam oralmente entre os britânicos a partir do século VI e adquiriram depois forma escrita. Todavia há vários episódios e personagens hoje famosos do chamado Ciclo de Lendas Arturianas que só aparecem nas mesmas à partir do século XII, o que fez com que pessoas que o conhecem estranhassem que o romance O Senhor dos Dragões não se referisse a personagens e fatos que são hoje clássicos nas estórias do Ciclo, tais como A Dama do Lago, A inimizade entre Arthur e Morgana, Lancelot e, finalmente, o adultério do bravo Lancelot com a rainha Guinevere.

Preliminarmente deve ser dito que o romance  O Senhor dos Dragões se baseia nas fontes britânicas mais antigas que existem sobre Arthur, a saber: o poema Gododdin, recitado oralmente no oeste da Inglaterra até adquirir forma escrita por volta do ano 600; a Historia Britonnun escrita por Nennius cerca de século e meio depois; o poema Cantos Sobre os Túmulos dos Heróis, publicado provavelmente entre 800 e 850; os Annales Cambriae, publicados entre 900 e 950; as Vidas dos Santos Galeses, publicadas entre 1000 e 1050, onde Arthur é convertido ao cristianismo por um milagre; Geraint, poema publicado ao redor de 1100; Culhwch e Olwen, poema da mesma época; e, por fim, Paredur, também publicado no final do século XI. Quando por volta de 1100 os relatos britânicos cessam, eles já contêm todos os fatos e personagens que servirão de base à história romanceada de Arthur, tal como nós a conhecemos hoje, mas deles não constam os fatos acima mencionados nem o bravo cavaleiro Lancelot.

Então, como foi que eles surgiram?

A resposta é que no século XI o príncipe francês Guilherme, duque da Normandia, invadira e ocupara a Inglaterra após matar na batalha de Hastings o rei inglês Harold, e com ele viera uma chusma de nobres franceses que se apoderou das melhores terras e cargos públicos, tornando os ingleses cidadãos de segunda classe.

Tal como Lancelot, damas misteriosas em românticos lagos são criações do romance de cavalaria e amor
cortês, não das lendas celtas sobre Arthur. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Os conquistadores eram mais cultos, refinados e tinham uma literatura bem superior, por isso os seus eruditos logo perceberam que os Contos Arturianos de origem celta eram ótima fonte para trabalhos literários de alto nível, capazes de dar fama e riqueza a quem os compilasse adequadamente. Ademais, tais obras poderiam forjar uma identidade cultural comum a conquistadores e conquistados!

A primeira e mais importante obra anglo-francesa sobre Arthur e os seus contemporâneos foi a História dos Reis da Inglaterra, escrita e publicada pelo bispo Geoffrey de Monmouth em 1135. O livro fez grande sucesso em toda a Europa, mas nem a dama do lago, nem a inimizade de Morgana com Arthur e nem o cavaleiro Lancelot são nele mencionados.

Os poemas celtas não cuidam de cavaleiros românticos, adultérios, maridos ciumentos e pais desconfiados,
temas do romance de cavalaria e amor cortês. Tela de Edmund Leighton (séc. XIX)

Lancelot só vai aparecer nas chamadas lendas arturianas algumas décadas depois através do poema em prosa Érec et Énide do poeta francês Chrétien de Troyes, fundador do gênero literário chamado Romance de Cavalaria e de Amor Cortês. O mesmo ocorre no seu romance subseqüente Cligés, mas em ambos Lancelot aparece como personagem secundário. Lancelot somente surge como personagem principal no mais famoso romance de Chrétien, Chevalier de La Charette, publicado em 1190.

É nesses poemas em prosa, a que se deu o nome de romance, que surgem as estórias da Dama do Lago, da inimizade entre Morgana e Arthur, de Lancelot, assim como do seu adultério com Guinevere, tudo bem ao gosto do novo gênero literário Romance de Cavalaria e de Amor Cortês. Por isso pode-se dizer que Lancelot e referidos episódios nada mais são do que criações romanescas do francês Chrétien de Troyes, destinadas a atender o gosto de um público ávido de aventuras galantes e sem qualquer base nos relatos celtas originais sobre Arthur.

Na verdade referidos romances apresentam Arthur como rei bonachão e marido traído tolerante,  não como valente guerreiro que trava desesperada luta contra os bárbaros no apagar das luzes do Império Romano. Romances de outros autores da época adotam a mesma postura, a qual só mudará um século depois pela mão de escritores interessados em resgatar a imagem militar de Arthur e dos seus cavaleiros, afastando as frivolidades do “Amor Cortês” e voltando às bases guerreiras genuinamente celtas da história.

Apesar de ser uma obra de ficção, O Senhor dos Dragões não poderia se referir a fatos e personagens que nem sequer existiam na memória dos celtas que, com patriotismo, fé e imaginação, conservaram em poemas orais a maravilhosa saga arturiana para delícia das gerações futuras.



quarta-feira, 17 de novembro de 2010




Post nº 12

ARTIGO DO EDITOR E TRADUTOR  RENATO  DANTAS SOBRE O ROMANCE "O SENHOR DOS DRAGÕES"

Capa e contracapa da 1ª edição do romance histórico "O Senhor dos Dragões" 





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Caros amigos:

O nosso colega RENATO DANTAS escreveu e publicou no blog do RPG “Notícias da Terceira Terra” resenha do meu romance histórico O SENHOR DOS DRAGÕES. Embora a publicação tenha ocorrido há mais de um mês, eu só soube dela ontem através da amiga Simone, que me mandou o seu texto integral. Achei excelente, não só por seu estilo e correção literária (Renato é mestre no assunto, pois é formado em letras, corretor de textos e tradutor), como porque em poucas linhas fez magnífica síntese do livro, cujo objetivo maior é divertir os leitores interessados em História.

Agradeci, dei-lhe os parabéns e obtive sua permissão para publicar a resenha aqui no nosso blog.

Desde logo esclareço que Lancelot não é citado no livro porque os textos mais antigos sobre Arthur não o citam. Ele só aparece nas lendas arturianas a partir da conquista normanda da Inglaterra em 1066, quando a dinastia francesa Plantagenet apoderou-se do trono inglês. Segundo os especialistas, convinha aos conquistadores terem um cavaleiro francês entre os heróis das famosas sagas inglesas, que na época começavam a se espalhar por toda a Europa medieval. Daí a criação de Sir Lancelot du Lac!

Mas isso é assunto para outra postagem; por enquanto, convido os amigos a lerem a resenha do Renato.

O Senhor dos Dragões


Renato Dantas


Por indicação de um amigo comecei a ler o livro Senhor dos Dragões, escrito pelo advogado e ex-procurador da fazenda (e meu conterrâneo) Virgílio Campos. O livro foi escrito em Londres, onde o autor morou por 6 anos, e foi originalmente publicado em inglês, sendo reescrito para o português pelo próprio autor (não acho que tradução seja o termo adequado nesse caso).

O livro narra a história do Rei Artur a partir de um ponto de vista mais histórico e menos fantasioso; a existência de magia e do sobrenatural nunca é confirmada ou negada ao longo do romance; os poderes de Merlin e de Morgana são em grande parte atribuídos aos seus conhecimentos científicos avançados para a época, mas um pouco de dúvida sempre fica no ar. 

Quem narra a história é um padre romano chamado Gildasius, que chegou à Britannia (nome que os romanos davam ao que é hoje a Inglaterra) como secretário do governador Ambrosius Aurelianus e mais tarde abraçou a vida religiosa, mas continuou com seus afazeres junto ao governador. 

O famoso Rei Artur aparece como Arturus, um proeminente oficial do império romano, filho de um poderoso senhor de terras, Uterius Pendragon (ou Uther, o Senhor dos Dragões, como o chamavam os celtas seus súditos). 

Quando Átila e sua horda de bárbaros ameaçam as fronteiras do Império, as Legiões estacionadas na Britannia são convocadas para combatê-lo, mas o governador Aurelianus ordena que Arturus permaneça na ilha, para organizar as milícias que irão combater os invasores scots, caledônios e saxões. Arturus fica decepcionado, mas como um disciplinado oficial, acata as ordens. 

Átila é derrotado, mas a Legião que Arturus comandaria se tivesse ido para a guerra é completamente destruída, e as milícias que ele organizou para repelir as invasões se mostram tão eficientes quanto as Legiões. Com o passar do tempo o Império Romano do Ocidente começa a desmoronar, mas a Britannia sob o comando civil de Aurelianus e militar de Arturus permanece firme. 

Durante um período de grande instabilidade no Império, alguns anos antes de sua queda final, Aurelianus declara a independência da Bretanha (não mais Britannia, que era o nome romano) e casa sua filha mais nova, Guinevere, com Arturus, proclamando-o Rei dos Bretões. 

Um grande período de estabilidade e glória se segue, com direito à criação da famosa Távola Redonda, mas as constantes invasões saxônicas, as intrigas dos nobres de descendência romana e uma rebelião liderada pelo sobrinho do rei, Mordred, abalam o reino e acabam levando-o ao fim. 

Muitos elementos clássicos da lenda do Rei Artur, como a inimizade com Morgana, a Dama do Lago, o cavaleiro Lancelot e o adultério de Guinevere não estão presentes na obra.  

O romance é uma boa diversão tanto para quem conhece a lenda do Rei Artur quanto para quem nunca leu nada a respeito, mas é preciso ter em mente que essa é apenas uma das muitas versões sobre a lenda.

Para jogadores e mestres que gostem de aventuras mais realistas (mais alguém pensou em GURPS?) o livro é uma ótima fonte de inspiração, especialmente para se usar com o suplemento GURPS Império Romano. Não conheço muito bem o RPG Pendragon, mas certamente o Senhor dos Dragões dará  boas ideias para aventuras arturianas menos fantasiosas.




Livros históricos do autor à venda nas
lojas da Livraria Cultura ou pelo site:
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Post nº 11

NIBELUNGOS  -  A VERDADE  HISTÓRICA
POR  TRÁS  DO  MITO  GERMÂNICO


A "Cavalgada das Valquírias" é um dos episódios mais famosos das magníficas óperas
de Wagner. Tela do pintor americano William Maud (séc. XIX) 


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Na Idade Média os germânicos procuraram se atribuir uma civilização e um passado glorioso que nunca existiram, pois até o século VI não possuíam cidades na margem direita do Reno, ou seja, na Germania propriamente dita; as que existiam estavam na margem esquerda e tinham sido fundadas por gauleses ou romanos. A Germania era pobre, atrasada e povoada por tribos primitivas que emigravam sem cessar para o ocidente em busca de melhores condições de vida no próspero território do Império; a fome e a miséria entre os povos germânicos, além das ferozes guerras que travavam entre si ou com outros povos igualmente primitivos, foram as verdadeiras causas das chamadas Invasões Bárbaras.

Entre os invasores estavam os belicosos burgundos, que tentaram repetidas vezes cruzar o Reno e só o conseguiram no início do século V, ocupando uma região que passou a se chamar Burgundia ou Borgonha e travando contínuas guerras contra os romanos que tentavam expulsá-los. Finalmente, na década de 420, um tratado de paz concedeu-lhes a região e eles tornaram-se súditos e aliados do Império. Todavia, alguns anos depois tentaram ocupar mais territórios e foram derrotados pelo general romano Flávio Aécio. De volta ao seu território original, entraram em confronto com os hunos e foram massacrados. Finalmente se contiveram e tornaram-se firmes aliados dos romanos, ajudando Aécio a derrotar Átila em 451.  Na Idade Média a Burgundia se tornou um dos mais poderosos principados da Europa, tendo no duque Carlos o Temerário, chamado "O Fazedor de Reis", o seu mais notável líder.


O massacre dos burgundos pelos hunos na primeira metade do século V é simbolizado no  final do poema pela
sangrenta batalha no castelo de Átila. Cena do filme "Die Nibelungen" de Fritz Lang (1924)

Tudo indica que foi após a final celebração da paz com os romanos que ocorreram os fatos inspiradores dos Cantos dos Nibelungos, pois não falam dos romanos, mas falam muito dos hunos e do seu rei Átila a quem os germânicos chamavam Wetzel. A epopéia termina com a morte dos líderes burgundos e de Kriemhilde, esposa de Siegfried que ao enviuvar casa com Átila, por isso podemos situar a ação dos poemas entre os anos 430, quando foi celebrada a paz com o Império, e os anos 450, quando o famoso rei dos hunos morre e o seu império desaparece. Os burgundos não conheciam a escrita e não fizeram registros relativos ao período, mas existem relatos romanos dizendo que na época os seus líderes mais importantes eram Gundefredus e o seu cunhado Sigefredus, sendo que o primeiro era famoso pela astúcia e o segundo pela bravura. A terminação fried era bastante usada pelos germânicos nos nomes próprios masculinos, e estes, quando latinizados, adquiriam a terminação fredus. É possível que um deles se chamasse Guntherfried e o outro Siegfried, e os romanos lhes tenham latinizado os nomes para Gundefredus e Sigefredus. Assim, é razoável supor que os referidos líderes burgundos fossem os Gunther e Siegfried dos Cantos. Os dois teriam rompido devido a um escândalo familiar, pois se dizia que o segundo seduzira a esposa do primeiro, além de se recusar à vassalagem que Gundefredus, com o apoio da grande maioria dos chefes de clãs, se obrigara a prestar aos romanos em troca da paz e dos territórios que ocupavam. Por isso Sigefredus retirara-se para o alto Reno, onde criara um principado e travara sangrentas guerras com tribos rivais; no processo, adquirira fama legendária por sua extraordinária bravura e aliara-se aos hunos, ao contrário do seu cunhado Gundefredus, que se mantivera fiel à aliança com Roma. Quando Sigefredus foi morto, Átila tomou a bela viúva sob sua proteção e exterminou os inimigos do antigo aliado.

No poema, os burgundos do rei Gunther que escapam do incêndio no castelo de Átila são executados
               por ordem da rainha Kriemhild. Cena do filme de Fritz Lang "Die Niebelungen" (1924)

As escassas fontes escritas não mencionam outros personagens nem o envolvimento de Gundefredus na morte do cunhado, ou que esta tenha ocorrido de forma traiçoeira; tampouco dizem ter Gundefredus morrido pela mão de Átila, embora isto possa ter ocorrido quando ele massacrou os burgundos nos anos 430 ou quando invadiu a Gália em 451, promovendo novo massacre. Embora as poucas fontes não se refiram diretamente a Gundefredus (em português Godofredo), elas dizem que os principais líderes burgundos pereceram na batalha, mas não dizem que tenham sido capturados e executados por Átila. Derrotados, os seus guerreiros remanescentes retiraram-se para a Bélgica, onde formaram um novo exército com outros líderes e uniram-se aos francos de Meroveu, participando da coalizão formada por Aécio para derrotar os hunos na batalha dos Campos Catalúnicos,  também chamada "A Batalha das Nações", pois nela participou a maioria dos povos europeus da época. Quanto à morte do temido rei dos hunos, os historiadores são unânimes em afirmar que ela ocorreu por causas naturais em seu palácio de madeira na Hungria dois anos após sua derrota na Gália, não havendo indícios de assassinato. A versão da lenda, de que Wetzel tenha sido vítima de aliados de Gunther e Hagen, não possui qualquer suporte histórico.

Os nebulosos personagens e os poucos fatos historicamente comprovados, que certamente estão por trás da lenda, são os antes mencionados. Tudo o mais nos Cantos dos Nibelungos (seres sobrenaturais, acontecimentos mágicos e detalhes fantásticos) ficam por conta da imaginação popular e do talento criativo de brilhantes escritores e grandes músicos.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Post nº 10

NIBELUNGOS  -  O  POEMA  MEDIEVAL  QUE  INSPIROU  O  NACIONALISMO
GERMÂNICO

 As valquírias eram belas guerreiras que galopavam nos céus e levavam
ao paraíso do Valhalla os heróis mortos em combate


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A literatura de ficção da Idade Média foi dominada pelos franceses com o gênero "Romance de Cavalaria e de Amor Cortês", mas outros povos europeus também estiveram presentes ao intenso ressurgimento da Literatura Ocidental ocorrido nos séculos XII e XIII. Dentre esses destacaram-se os germânicos e escandinavos que, inspirados em antigas sagas nórdicas, brindaram a civilização com dois notáveis poemas compostos por talentosas mãos anônimas. O primeiro foi Beowulf, escrito em dialeto anglo-saxão da alta Idade Média, e o segundo, escrito em alemão mais recente, foi Os Nibelungos, também conhecido como A Canção do Nibelungo ou Cantos dos Nibelungos.

   Página de abertura de uma das edições manuscritas de "Nibelungos", feita
              provavelmente na primeira metade do século XIII (1220-1250) 
             
O primeiro, tendo guardado a forma e a linguagem primitiva, a ponto de se dizer que fora publicado tal como composto nos século VIII e IX, não teve público na brilhante baixa Idade Média e não se destacou depois, mas o segundo adquiriu grande voga nos países de língua alemã por ter sido escrito em linguagem bem mais moderna no século XIII e em primorosos versos rimados e metrificados organizados em estrofes. Ademais, o seu talentoso autor, cujas razões para ficar anônimo são desconhecidas, adotara em sua obra a paixão e o estilo do Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, adorado pelo sofisticado público leitor que na época tinha no francês a sua língua culta corriqueira. Isto fez com que o público leitor alemão que não dominava o idioma francês se deliciasse com um poema que celebrava lendas suas em seu idioma, mas impediu que ele ganhasse outros públicos e fosse conhecido fora dos limites da cultura germânica.


"Nibelungos" é inspirado nas sagas nórdicas que têm nas Valquírias os seus mais marcantes seres mitológicos

Porém o mais importante em Nibelungos é ser ele na sua essência um contraponto ideológico ao Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, cuja forma adota sem adotar-lhe o conteúdo, pois enquanto este celebra valores éticos do cristianismo como amor, lealdade e justiça, aquele celebra valores éticos do paganismo como ódio, traição e vingança. Tirante a comum afeição pelo fantástico e pelo sobrenatural, sua essência está muito mais próxima da Ilíada do que da Canção de Rolland e por isso não é de estranhar tenha modernamente se tornado o poema favorito de uma parte do povo germânico que repudiou o humanismo universal em favor do nacionalismo exclusivista.
             

       Embora no contexto do poema o dragão seja a personificação do "mal", tampouco é Siegfried a encarnação
                         do "bem" segundo o ideal cristão. Cena do filme de Fritz Lang "Die Niebelungen" (1924)
            
Em "Nibelungos" é evidente o repúdio aos ideais éticos do cristianismo e a romantização de valores éticos do paganismo. Isto talvez tenha sido a causa do seu genial autor medieval ter preferido as sombras do anonimato ao brilho da popularidade e da riqueza, que por certo teria caso tivesse se identificado e escrito em francês. Isto nos leva a crer que o magnífico poeta talvez fosse um clérigo inspirado que estivesse com a sua fé em dúvida e não desejasse correr o risco de ser chamado a um Tribunal Eclesiástico para explicar o conteúdo anti-cristão da sua obra. Embora a repercussão de Nibelungos tenha sido modesta na Idade Média, no século XVIII o poema obteve grande prestígio quando Herder o tomou como base do romantismo nacionalista alemão, pregando uma identidade racial e cultural germânica que viria a produzir funestos resultados no futuro.

         O filósofo, linguista e literato Johann Gotfried Herder era um liberal iluminista,
                    mas chocou o ovo da serpente ao pregar o nacionalismo germânico
             
O nobre objetivo de Herder era tentar curar os alemães de sua baixa autoestima devido à miséria causada por séculos de lutas fratricidas, fanatismo religioso e disputas entre príncipes feudais ambiciosos, ocupados apenas em oprimir e explorar o povo. Achava ele que se os alemães voltassem a se orgulhar de suas raízes culturais e de sua história adquiririam sólido sentimento de pátria, expulsariam os crueis senhores feudais e construiriam uma nação unificada capaz de satisfazer os anseios de todos por liberdade e justiça. Herder alcançou em parte o seu objetivo um século depois quando a Alemanha foi unificada em poderoso Império, mas no processo despertou exarcerbado sentimento étnico e cultural que viria mais tarde a desembocar no mais enlouquecido nacionalismo racista, coisa que jamais esteve nos seus planos e ele nem de longe poderia prever nem muito menos querer.
             
Na revolução cultural por ele desencadeada, o poema foi redescoberto e muito comentado, mas o seu prestígio máximo só foi alcançado no século seguinte quando Richard Wagner compôs a sua obra-prima musical O Anel dos Nibelungos, dividida em quatro óperas: O Ouro do Reno, A Walkyria, Sigfried e o Crepúsculo dos Deuses, as quais lhe deram fama imorredoura. No século XX ele adquiriu notoriedade macabra quando Hitler e o regime nazista proclamaram  Nibelungos "Saga Nacional Alemã" e endeusaram a música de Wagner por tê-lo transformado em belíssima epopeia musical. Todavia, devemos ressaltar que as óperas de Wagner têm pouco a ver com o poema propriamente dito, baseando-se nas coletâneas de lendas nórdicas sobre heróis mitológicos que são também personagens de Nibelungos e não no enredo deste.

          Disposto a apoderar-se do tesouro dos anões feiticeiros, Siegfried invade a caverna onde ele é ciosamente
                      guardado pelo feroz dragão Fafner. Cena do filme "Die Niebelungen" de Fritz Lang (1924)

Polêmicas aparte, a verdade é que se examinarmos com cuidado as poéticas, porém indecentes e sanguinárias lendas, veremos que Nibelungos está eticamente muito mais próximo dos poemas homéricos e de outros poemas pagãos da antiguidade do que dos poemas cristãos que lhe são contemporâneos, repletos dos altos ideais éticos da apaixonada literatura cavalheiresca da Idade Média. Vejamos um breve resumo do tema central do poema.
             
O príncipe Siegfried é líder de uma tribo dos burgundos, também conhecidos como borgonheses. Famoso por sua beleza e valentia, quando jovem ele matara o rei Nibelungo e seu irmão, chefes de uma tribo de anões feiticeiros também conhecidos como "Nibelungos", e depois matara o gigante Fafner, amigo dos anões. Para proteger o seu enorme tesouro, Fafner o guardara em uma caverna e se transformara em dragão para melhor defendê-lo, mas Siegfried dele se apodera após matar o monstro e tornar-se invulnerável banhando-se no seu sangue. No processo, uma folha cai de uma árvore e cola-se nas suas costas, impedindo o sangue da fera de blindá-lo totalmente e deixando-o vulnerável nesse ponto.


                    Siegfried mata o dragão e após banhar-se no seu sangue fica invulnerável, exceto em local das
                           costas onde uma  folha caída se grudara e impedira de ser banhado pelo sangue da fera
             
Depois dessa extraordinária façanha, o seu clan adota o nome de "Nibelungos" por ter a posse do Tesouro e ele vai à Worms, capital da Burgundia, pedir ao rei Gunther a mão de sua irmã Kriemhild, cuja beleza é celebrada por todos. Este não a apresenta de logo ao herói, pois resolve primeiro testar a sua bravura encarregando-o de liderar uma guerra contra os dinamarqueses. Quando ele volta vitorioso após realizar novos prodígios, é apresentado a Kriemhild e fica ainda mais apaixonado, porém Gunther diz que só lhe concederá a mão da irmã se o príncipe ajudá-lo a conquistar a virgem valquíria Brunhild, rainha do "país das névoas" (identificada no poema como a Islândia, mas provavelmente uma tribo da Escandinávia). Ela é famosa por sua extraordinária força e poderes mágicos, tendo declarado que só se casará com o homem que a vencer numa série de desafios por ela própria criados.
             
Não consta do poema, mas consta das sagas nórdicas que ambos já se conheciam, pois anos antes Siegfried, utilizando-se dos talismães enfeitiçados que roubara de Nibelungo, não só a acordara de um sono mágico como a libertara do círculo de fogo onde o deus Wotan seu pai a aprisionara após grave desentendimento. Siegfried e a valquíria teriam se apaixonado, mas ela recusara-se a dar-lhe sua virgindade temendo perder seus super-poderes e ele a abandonara profundamente frustrado. Depois disso ela jurara que só se entregaria ao homem que lhe fosse superior em força e bravura, o que era praticamente impossível acontecer. Ocorre que ao apoderar-se do tesouro Siegfried também se apoderara dos talismães enfeitiçados de Fafner com os quais, segundo as sagas escandinavas, salvara Brunhild e poderia tê-la ganho com eles, porém não o fez por querer que a conquista se devesse aos seus méritos e não à artes mágicas. Por isso desistira dela e se apaixonara por Kriemhild, sendo ardentemente correspondido.

 Brunhild é filha do deus Wotan, mas ele a prende em um círculo de fogo e
               Siegfried a liberta. Gravura de Ferdinand Leek (séc. XIX)
             
No poema ele não se importa com Brunhild e quer ganhar Kriemhild a qualquer custo, por isso veste o capuz mágico roubado dos anões feiticeiros e com os seus super-poderes assume as feições de Gunther para vencer em seu lugar os testes de força exigidos pela indômita valquíria. Porém ela fica desconfiada de ter sido enganada por Gunther e se apaixona por Siegfried, mas tem de cumprir sua palavra e casa-se com Gunther na mesma cerimônia em que Siegfried também se casa com Kriemhild. Contudo, ela o faz contrariada por estar enciumada de Kriemhild e suspeitosa de ter sido vencida nos testes mediante engodo. Por isso nega-se ao marido na noite de núpcias, amarrando-o e pendurado-o no teto de forma ridícula para que ele não a moleste durante o sono.

          No poema Brunhild é poderosa guerreira que reina no País das Névoas e por amor vira mulher comum,
                  mas nas nas sagas nórdicas é divindade que galopa nas nuvens. Tela de Peter Arbo (séc. XIX) 
             
Desesperado, Gunther novamente recorre ao cunhado para que com os seus poderes convença Brunhild a aceitar a consumação do casamento, mas Siegfried resolve divertir-se aproveitando a situação para deflorar Brunhild e não para convencê-la a se entregar a Gunther. Assim, usa o capuz mágico para ficar invisível e entrar no quarto da valquíria, dominando-a e deflorando-a. Não satisfeito, rouba-lhe os mágicos cinto de seda e anel de ouro, que são os símbolos da sua pureza e fontes do seu poder. Após também usar o capuz mágico para fazê-la esquecer o estupro, oculta sua torpeza e diz a Gunther que a encantou e ela não mais lhe resistirá. Ignorante do que o cunhado fizera, coisa que a própria Brunhild ignora, Gunther consuma o casamento por ter ela ficado fraca ao perder a virgindade e os poderes mágicos. Enquanto isso Siegfried, sentindo-se orgulhoso da sua façanha, conta-a à Kriemhild e a presenteia com os troféus roubados da valquíria.

          Sigfried apaixona-se ao conhecer a doce Kriemhild, mas a concepção de amor do poema difere daquela
                                 da Idade Média e da atual, pois é moralmente inaceitável o que ocorre em Nibelungos 
             
Não sabendo da fraude do marido, ela fica enciumada por achar que ele apenas cedera aos encantamentos de Brunhild, mas o perdoa e aceita as jóias da outra. Na verdade ela está não somente enciumada, mas também enraivecida por achar que as jóias foram dadas por Brunhild a Siegfried como suborno para seduzi-lo. Porém ela guarda segredo e as coisas parecem calmas até o dia em que o casal vai a Worms visitar os soberanos. As duas mulheres então brigam por vaidade na entrada da catedral e Kriemhild, com ciúmes de Brunhild, chama-a de prostituta e acusa-a de seduzir Siegfried, trazendo a trama à superfície.
             
Cientes do estupro, a estupefata Brunhild e o indignado Gunther rompem com eles, fazendo com que Hagen, fiel amigo de Brunhild e parente próximo de Gunther, decida vingá-la do sórdido defloramento. Após acumpliciar-se com o marido ultrajado, Hagen engana Kriemhild fazendo-a revelar o ponto fraco de Siegfried enquanto Gunther finge fazer as pazes com ele. Após elaborarem o seu traiçoeiro plano, convidam Siegfried para uma caçada durante a qual Hagen aproveita-se do momento em que o herói se curva para beber água em um regato e crava-lhe a lança no seu único ponto vulnerável: o que a folha impedira de ser banhado pelo sangue do Dragão!

          Atraído a uma caçada por traidores, Siegfried morre ao ser ferido no seu único ponto vulnerável: a parte
                                        das costas que não fora banhada pelo sangue do dragão! Cena do filme "Die Niebelungen"
             
O mal e a total ausência de cavalheirismo eram até então presenças constantes em Nibelungos, mas mostravam-se em vestes discretas, porém o frio assassinato de Siegfried abre a caixa de Pandora e os demônios espalham-se sem peias pelo mundo, tornando-se a única força que de fato domina as mentes e conduz os acontecimentos. Se a desonestidade, o engano e a indecência até então eram o contraponto do poema aos altos ideais de honra, verdade e lealdade que norteiam o romance medieval cristão de cavalaria, agora são os valores abertamente pagãos de ódio e vingança entronizados naquele que vão contrapor-se aos valores de amor e justiça consagrados neste. Untando sua mão no sangue de Siegfried, a até então doce Kriemhild decide que vingará o marido covardemente morto custe o que custar. Para ela, heroína da segunda parte do poema, o ódio é muito mais forte que o amor, o perdão não existe e a vingança é mais importante que a justiça.

                     Kriemhild transforma o amor pelo marido desleal em ódio pelo irmão e decide que a vingança
                                                       é mais importante que a justiça. Cena do filme "Die Nibelungen"
              
Kriemhild volta-se contra o seu irmão Gunther e  seus demais familiares, sobretudo o assassino Hagen, e assume a liderança da família do marido morto, mostrando a todos valentia e determinação até então desconhecidas. É quando o poema mostra que no litígio estão também envolvidos o roubo e a cobiça, pois a principal reivindicação de Kriemhild e seus partidários não é apenas a vingança, mas a devolução do valioso tesouro dos Nibelungos roubado pelos assassinos.
             
Após matar Siegfried, Hagen tinha se apoderado da sua espada famosa e do seu fabuloso tesouro, vangloriando-se da sua traição como se fosse um herói por assassinar covardemente um verdadeiro herói e roubá-lo. Mais do que o assassinato é isto que enfurece Kriemhild e os seus partidários, fazendo inclemente e catastrófica a luta familiar que se segue ao crime. Em consequência, Hagen julga que o Tesouro dos Nibelungos é amaldiçoado e é a causa de todas as desgraças, além de ser também um grande perigo para o seu partido, pois aumentará o poder de Kriemhild caso volte às suas mãos. Assim, resolve livrar-se dele entregando-o à guarda das ninfas do Reno.

                                          A doce Kriemhild chora Siegfried, amaldiçoa os seus assassinos e jura
                                                                   vingança. Cena de "Os Nibelungos" de Fritz Lang
             
Depois que Hagen desfaz-se do tesouro a luta fratricida se acalma, mas Kriemhild persiste secretamente no seu primitivo intento e firma um tratado de paz fingindo ter perdoado os seus parentes assassinos. Ela aparenta manter-se em bons termos com eles, mas é tudo um engodo e o faz apenas para fortalecer-se enquanto espera como serpente traiçoeira a oportunidade de destruí-los.

Hagen suspeita da traição de Kriemhild e adverte Gunther. Cena do filme "Die Nibelungen" 
             
Finalmente, ao casar-se em segundas núpcias com Wetzel, nome que os germânicos dão a Átila o Huno, ela consuma a sua vingança fazendo o seu feroz marido preparar uma armadilha para os seus familiares assassinos. Assim, os convida para um banquete em sua corte na Hungria e eles ingenuamente aceitam, sendo recebidos com grandes festas e efusivas manifestações de amizade até que Wetzel subitamente lhes dá voz de prisão. A luta explode entre hunos e burgundos no salão real e após terrível combate, onde o próprio filho de Átila e Kriemhild é morto à vista do casal, os burgundos expulsam os hunos do palácio e nele se entrincheiram, somente depondo as armas quando Kriemhild manda incendiá-lo. Finalmente dominados, o rei dos hunos entrega à vingança da esposa todos os prisioneiros, entre os quais estão Gunther e Hagen.

                 Kriemhild torna-se monstruosa após a morte de Siegfried e faz com que Wetzel (Átila), seu segundo
                            marido, a ajude a matar o próprio irmão e seus cúmplices. Cena do filme "Die Niebelungen"
             
Com o seu ódio à flor da pele por terem eles durante as festas vangloriado-se do covarde assassinato de Siegfried, julgando erroneamente que de há muito estivesse tudo esquecido e perdoado, Kriemhild os humilha com escárnio e manda executar todos os prisioneiros, inclusive o seu irmão Gunther, mas poupa Hagen porque não acredita que ele tenha entregue o Tesouro às ninfas do Reno e o quer de volta. Assim, ela lhe exibe a cabeça de Gunther dizendo que o mesmo lhe acontecerá caso não revele onde escondeu o tesouro, mas ele se nega e ela pessoalmente lhe corta a cabeça com a mesma famosa espada que ele roubara de Siegfried. Na ocasião o cavaleiro Hildebrand fica indignado com o procedimento traiçoeiro, vingativo e cobiçoso de Kriemhild e mata-a sem que Átila o impeça, pois a essa altura ele também a reprova pelos males causados. O poema termina com o poderoso rei dos hunos lamentando a morte de tantos heróis e manifestando a esperança de que a sua história não seja esquecida.

       A luta no palácio de Átila é feroz e no final os burgundos são exterminados. Cena do filme "Die Nibelungen" 

Inúmeros episódios igualmente crueis e fantásticos permeiam o núcleo central da narrativa, dando ao poema notável vivacidade ao por em evidência o lado negro do ser humano, pois é um festival de roubos, trapaças, intrigas, traições, feitiçarias, vinganças e assassinatos, onde dragões, bruxos e seres demoníacos estão por toda parte. Nele o super-homem está mais para super-vilão do que para super-herói e pouca coisa realmente nobre e decente acontece. As razões de ter se tornado tão famoso só podem ser buscadas na beleza dos versos e na magia da música de Wagner, porque moralmente é calamitoso.

                   Ao contrário dos poemas cristãos onde os maus tornam-se bons pelo perdão e arrependimento,
                                                             em Nibelungos os bons tornam-se maus e Kriemhild vira um monstro 
             
Não é de se estranhar, portanto, tenha a sua intrínseca indecência e desumanidade, apresentadas em belas e sedutoras vestes, impressionado de forma tão avassaladora a doentia mente nazista. Alguns chegam mesmo a dizer, embora disso eu discorde, que o poema revela muito do eu profundo dos alemães e explica parte das atrocidades que praticaram em tempos recentes, mas devemos considerar tais opiniões preconceitos que não fazem justiça ao muito que também deram à humanidade ao longo da história. Em todo caso, tais interpretações são assunto para psicanalistas e não para historiadores.
             
Fritz Lang, o famoso diretor alemão que fez o magnífico filme Die Niebelungen em 1924, era ativo anti-nazista e sempre repudiou as insinuações de que a sua obra contribuíra para a "mitologia hitlerista", afirmando que Nibelungos era tão somente uma obra-prima da poesia germânica medieval celebrando as lendas e os mitos de um povo em seus estágios primitivos de civilização, tendo ele para os alemães o mesmo significado que a Ilíada tinha para os gregos. Mas eu creio que Lang somente estaria certo caso Nibelungos tivesse sido escrito em plena Era Pagã, como foi o caso da Ilíada, e não em plena Era Cristã.
             
Restam vários exemplares fragmentados e alguns completos do que se considera a publicação original de Nibelungos no século XIII, mas apresentam diferenças entre si, uns apresentando episódios que não constam dos outros e vice-versa. Todavia não há duvida de que são do mesmo autor, o que leva a supor que tenham sido fruto de edições separadas por alguns anos e que ele tenha decidido acrescentar alguns episódios e excluir outros, daí as diferenças. Porém elas não alteram o enredo nem afetam o valor literário da obra.

   Cabe à valquíria escolher os guerreiros mortos em combate que devem ir para o Valhala,
                   por isso ela está muito associada à morte. Tela de Peter Arbo (séc. XIX)
             
Há que se levar em conta também que na época os livros eram manuscritos e não impressos, o que fazia com que raramente dois exemplares fossem rigorosamente idênticos. Alguns copistas eram criativos e gostavam de modificar ou inovar sem alterar de modo flagrante a forma ou o conteúdo da obra. Se fossem talentosos para não só criar, mas também assimilar e reproduzir o estilo do autor, versos e até estrofes inteiras podiam ser acrescentadas a um poema sem que se visse a mão alheia. Porém o mais provável é que as mudanças tenham sido feitas pelo próprio autor entre uma edição e outra.
             
Existem poemas germânicos medievais menores e sagas nórdicas tendo como personagens os mesmos heróis e heroínas que povoam os versos de Nibelungos. Brunhild, por exemplo, aparece em alguns poemas escandinavos como "anjo do mal" e em outros como "anjo do bem". Isto é explicável por não ser ela burgunda e em Nibelungos ser apresentada como "raínha do país das névoas", certamente um país da Escandinávia, mas o correto é tê-la como uma primitiva divindade tanto escandinava quanto germânica, pois o germânico deus Wotan, o pai cruel que a castiga aprisionando-a no círculo de fogo, é sob o nome de Odin um deus também escandinavo.
             
Todavia há indícios de que Nibelungos, embora fantasioso na sua essência, baseia-se em fatos reais ocorridos durante as grandes invasões bárbaras do Império Romano, nas quais os burgundos tiveram papel importante. Não só Átila o Huno é um personagem histórico real como historicamente reais foram as sua alianças e lutas com os burgundos, bastante realçadas no poema, sendo certo que ele os massacrou em 437, após estes terem sido derrotados pelo romano Flávio Aécio, e teve como esposas princesas borgonhesas em decorrência de alianças políticas. Assim, é bem possível que Siegfried, Kriemhild e Guntherfried (Sigefredus, Cremilda e Godofredus para os romanos) tenham sido pessoas reais que depois foram mitificadas pela lenda.

             

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Post nº 09

O  DIA  EM  QUE  SANTOS  E  ANJOS  FIZERAM  ÁTILA  RECUAR

O inexplicável recuo de Átila em 452, após conferenciar com o Papa Leão I no norte da Itália, é
um dos grandes mistérios da história. Afresco de Rafael (séc. XVI) 




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Em 452 Átila cruzou os Alpes Orientais com o seu enorme exército de cavaleiros hunos e devastou o norte da Itália. Sem condições de enfrentá-lo em batalha campal, pois o exército romano era muito inferior ao exército huno, o general Aécio foi para as montanhas com os seus poucos batalhões e lhe moveu incansável guerra de guerrilhas. Porém Átila continuou a saquear e destruir, até que resolveu marchar para o sul e apoderar-se da mais rica presa de todas: Roma!

O caminho estava completamente aberto: não havia nenhum exército inimigo e a população civil abandonara suas casas, fugindo aterrorizada para as montanhas. Devido ao ódio que tinha aos romanos e ao cristianismo, o rei dos hunos era chamado de “O Flagelo de Deus” e contava-se que o seu passatempo favorito era incendiar igrejas e crucificar padres, dizendo-lhes rindo que assim eles chegariam à presença de Jesus Cristo de acordo com a sua fé e a certeza da salvação. Porém é possível que muita coisa fosse lenda ou propaganda do próprio Átila para se fazer mais aterrador e assim obter o que queria. Durante anos ele obtivera fortunas chantageando o Império Romano do Oriente, porém quando decidiu fazer o mesmo com o Império Ocidental o general Aécio, que o conhecia bem, se opôs e o derrotou em grande batalha na França atual em 451. Mas para realizar tal façanha Aécio tivera o apoio de Visigodos, Alanos, Francos, Burgundos e dezenas de outras tribos bárbaras menores já estabelecidas na Gália atacada e em acelerado processo de romanização. Porém referidas tribos estavam distantes e Aécio não contou com o mesmo apoio quando no ano seguinte Átila atacou a própria Itália com milhares de ferozes cavaleiros da Europa central e do leste. Por isso o general romano se refugiou nas montanhas com o seu pequeno exército e limitou-se a ações de guerrilhas contra o líder huno, seu ex-amigo e antigo aliado.

O grande adversário de Átila era o general romano Aécio, mas ele não dispunha
de exército capaz de enfrentar os hunos. Ilustração gráfica do autor

Não havendo obstáculos entre os terríveis invasores e a capital do mundo, Átila pôs-se em marcha com suas centenas de batalhões bárbaros e foi aí que aconteceu um dos fatos mais surpreendentes e misteriosos da história: à sua frente surgiu o Papa Leão I montado em uma mula, acompanhado de uma centena de padres e de alguns altos dignitários romanos, todos eles em trajes simples e completamente desarmados. O que se passou de verdade ninguém sabe, pois tudo que temos é o relato da própria Igreja, mas o fato é que Átila fez meia-volta e desistiu de destruir Roma após conversar longamente com o Papa. Em seguida retirou-se da Itália acossado pelos batalhões guerrilheiros de Aécio e regressou ao seu reino. No ano seguinte morreu de causas naturais enquanto dormia ao lado da esposa em seu palácio de madeira na Hungria atual.

Quando ele desistira de atacar Roma todos gritaram “Milagre!”, pois a Igreja dizia que Átila obedecera a ordem de Leão para recuar depois que vira São Pedro e São Paulo pairando no ar sobre a cabeça do Papa, tendo atrás deles uma coorte de anjos com ameaçadoras espadas de fogo; Átila e os seus guerreiros tinham ficado tão apavorados que preferiram não insistir e decidiram fazer o longo caminho de volta. Por incrível que pareça, esta versão predominou durante mais de mil anos e inspirou artistas como Rafael a retratarem o fantástico evento em esculturas e quadros famosos. Somente a partir do século XVIII, com o advento do Iluminismo e da chamada “Era da Razão”, é que surgiram dúvidas e a versão da Igreja foi contestada. Vários historiadores apresentaram versões alternativas, mas nenhuma teve comprovação histórica e elas continuam a ser hoje o que eram no início: apenas hipóteses!

Escultura em mármore no Vaticano sobre o encontro de Átila e Leão I
em 452 no norte da Itália. Alessandro Algardi (séc. XVII)

As únicas testemunhas do fato extraordinário estão mortas há mais de mil e quinhentos anos e a versão que elas nos deram é a que foi divulgada pela Igreja. Duvido que algum dia o mistério possa ser esclarecido. De qualquer forma, peguei um fato histórico comprovado aqui, outro acolá, e embora não se referissem diretamente a entrevista de Átila com o Papa, juntei todos eles de forma coerente e ofereci a minha versão no Capítulo III do meu romance “O Senhor dos Dragões”. Penso que ela não está longe da verdade, mas é uma hipótese como as outras e os interessados no assunto podem discuti-la e formularem suas próprias versões.

Enquanto isso permanece o mistério!