segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Post nº 05

APOGEU  E  DECADÊNCIA  DOS  CAVALEIROS  TEMPLÁRIOS


Nos séculos XII e XIII várias Ordens religiosas-militares aparecem na Europa em razão das Cruzadas, mas nenhuma é tão rica e poderosa quanto a Ordem dos Cavaleiros Templários

Para adquirir estes livros clique acima no banner da Livraria
Cultura ou na nossa Livraria Virtual

           
Por volta de 1200 a Ordem dos Cavaleiros Templários está no auge: é a mais rica e poderosa da Europa, poucos reinos da época têm o seu mesmo poder econômico, político e militar, e o seu Grão-Mestre fala de igual para igual com príncipes, reis e imperadores. Acima dele e dos seus cavaleiros estão somente Deus e o Papa!
       
O seu poder militar na Europa é tão grande quanto na Ásia e se faz sentir de forma marcante na Península Ibérica, onde ela desempenha papel tão importante quanto na Palestina, pois é essencial na reconquista de Lisboa em 1147 e na posterior expulsão dos muçulmanos do território português, permitindo a unificação do país tal como o conhecemos hoje. Isto talvez explique porque Portugal é o país europeu com maior número de castelos templários proporcionalmente à sua população. 

Os cavaleiros templários tiveram forte participação na reconquista de Lisboa pelo rei Afonso
Henriques. Quadro de Joaquim Rodrigues Braga (1840)

Porém menos de um século depois o sólido edifício começa a apresentar rachaduras: os guerreiros cristãos saem derrotados da Palestina, os muçulmanos são expulsos definitivamente de Portugal e os príncipes ibéricos fazem uma trégua com o reino islâmico da Andaluzia, o mais próspero e civilizado da Espanha. O fervor cruzado esmaece e os cavaleiros dormitam ociosos em seus castelos, pois os veteranos com experiência militar estão velhos ou mortos e os jovens que agora se alistam o fazem não por fé, glória e aventura, mas por vaidade, privilégio e conforto. A rígida moralidade, férrea disciplina e duro treinamento são relaxados, permitindo que oportunistas ingressem na Ordem e gozem das suas vantagens sem sequer possuírem as elementares virtudes da valentia e da decência. À medida que desce o valor guerreiro e moral dos cavaleiros, sobe o seu orgulho e arrogância, criando um clima de antipatia que faz surgirem ditados populares do tipo, come igual a um templário, bebe mais que um templário, fornica como um templário, e outros igualmente depreciativos.

O estado-maior da Ordem tem voz ativa nos mais altos assuntos da Europa, mas isto lhe traz a antipatia
dos reis e a inveja dos bispos. Cena do filme "Arn o Cavaleiro Templário"
       
A situação piora com a mudança da sede da Ordem para a capital francesa, onde, não tendo muçulmanos com que se preocupar, os cavaleiros passam a tratar os locais como seus inferiores e a imiscuírem-se nos seus negócios como se fossem um poder paralelo ao poder real e eclesiástico. Exceto na península ibérica, onde existe um poderoso reino muçulmano com o qual os cristãos estão sempre em luta e têm muito com que se ocupar, no restante da Europa os templários dedicam-se aos negócios econômicos como se fossem uma empresa comercial e não uma guarda de elite destinada à proteção dos lugares santos e à expansão da fé católica fora do Continente. Seu grande poder econômico logo é acompanhado de grande poder político dentro da própria Europa, e os seus rivais passam a ser cristãos ao invés de muçulmanos. Príncipes e bispos, embora economicamente se beneficiem de empréstimos e doações dos cavaleiros, ficam cada vez mais ressentidos com o enorme poder que eles exercem dentro de suas próprias jurisdições, muitas vezes suplantando ou simplesmente ignorando a sua autoridade.
       
Em todos os países da Europa Ocidental a Ordem torna-se um Estado dentro do Estado, com a agravante de ser um Estado multinacional a serviço do Papa dentro de suas fronteiras sem qualquer vínculo de subordinação às suas Coroas. Ocorrendo isto no momento em que a Revolução Comercial impele os países europeus a se estruturarem em grandes Estados Nacionais, para o que é essencial a instituição do Rei Absoluto, a Ordem Templária surge como enorme obstáculo aos novos tempos. Isto não passa desapercebido a monarcas europeus mais astutos e clarividentes, como é o caso de Eduardo o Caolho de Inglaterra e Felipe o Belo de França.

Felipe é enérgico e unifica quase todo o reino. Eduardo I da Inglaterra lhe presta vassalagem
pelos poucos feudos que ainda tem na França. Iluminura medieval (séc. XIV)
             
Embora mau administrador, Felipe é implacável e reconquista quase todos os territórios que durante séculos tinham estado em mãos de reis estrangeiros, sobretudo da Inglaterra, por isso não admite oposições nem arranhões na autoridade real, o que lhe vale receber do povo o apelido de "O Rei de Ferro". O próprio rei inglês Eduardo I lhe presta vassalagem por alguns principados que ainda tem na França, mas sabe que a qualquer momento pode perdê-los se Felipe achar conveniente extinguir a relação feudal sob pretextos que venha a inventar. Em consequência, mantém com o rei francês as melhores relações possíveis e concorda que os Templários são realmente um grande incômodo para monarcas que, como eles, aspiram governar plenamente os seus reinos sem ingerências de qualquer espécie.
         
Mas ao contrário de Eduardo, em cujo país a Ordem tem presença superficial e não lhe causa maiores incômodos, pois não possui castelos-fortaleza nas ilhas britânicas,  para Felipe o problema é gravíssimo, pois é na França que a Ordem tem a sua sede e a sua mais ostensiva presença, com dezenas de castelos-fortaleza e grande contingente de cavaleiros. Diferente do que ocorre na Inglaterra, na França a Coroa depende mais da Ordem do que a Ordem da Coroa, coisa que para um monarca aspirante ao absolutismo é intolerável.
        
Seja por esta ou por outra razão, príncipes e grandes mercadores interessados na solidificação do Poder Real começam a murmurar contra o enorme poder da Ordem e o descontentamento se espalha pela sociedade, gerando um ambiente de geral hostilidade aos Templários. Com a hostilidade surgem histórias escandalosas sobre as suas atividades públicas e privadas, muitas delas mentirosas, mas algumas respaldadas aos olhos do público pelo comportamento descuidado, arrogante e impróprio assumido por muitos cavaleiros no meio da supersticiosa e fanática sociedade onde vivem.

Passando a viver em contato com as populações locais, os templários revelam-se brutais, arrogantes
e pouco virtuosos, tornando-se odiados. Cena do filme "Arn o Cavaleiro Templário"

Como em todo agrupamento humano, é provável que entre eles sempre tenha havido cavaleiros inclinados aos pecados da gula, da intemperança e da luxúria, mas a sua fervorosa religiosidade certamente os fazia julgá-las tentações do diabo e as sufocavam sob grossas camadas de fanatismo e bravura. Porém agora fé e valentia não são mais essenciais e as suas perversas inclinações se tornam visíveis, ainda que disfarçadas pela hipocrisia. Embora sejam exceções, sua má conduta danifica a reputação de todos, tal como a maçã podre contamina as saudáveis dentro do cesto. Todavia isso em nada diminui o poder econômico e político da Ordem: reis, príncipes e ricos mercadores lhe devem altas somas e dela dependem para suas despesas e grandes transações; por isso lhe são sabujamente submissos.

Entre os que mais devem favores à Ordem está o rei Felipe o Belo, que a faz seu banqueiro e depositária do Tesouro Real. Quando por mais de uma vez os seus desmandos levam a França à beira do desastre, ele é salvo pelo dinheiro dos Templários. Sempre carente de recursos, ele confisca os bens dos judeus e depois manda diminuir o percentual de prata nas moedas cunhadas pelo Erário Real, o que faz o povo lhe dar o apelido de "O Rei Falsário". Em 1306 ocorre um levante popular em Paris contra o seu governo incompetente, e as tropas reais, que não recebem seus soldos há meses, ficam inativas nos quartéis enquanto ele refugia-se no Templo, nome que tinha a sede da Ordem em Paris e se tornara seu sinônimo. Felipe fica sob a proteção dos Cavaleiros até a calma ser restaurada após árduas negociações do Grão Mestre Jacques de Molay com os amotinados, mas durante sua hospedagem forçada entre os Templários ele vê os seus enormes tesouros e toma ciência do seu vasto patrimônio comercial e imobiliário espalhado por toda a Europa, o que lhe aumenta ainda mais a cobiça e faz o despeito sobrepor-se à gratidão que deveria ter aos Cavaleiros por o terem salvo da fúria popular. Ardilosamente, contrai novo grande empréstimo com a Ordem, põe em dia o pagamento das tropas e dos servidores civis, lhes dá um substancial aumento e lhes ganha o apoio e a gratidão.

A Ordem dos Templários era riquíssima, possuindo feudos e castelos em toda a Europa,
sobretudo na França e na Península Ibérica
         
Felipe é um patife astuto que percebe estar o Templo deixando de ser uma sociedade de monges guerreiros para se tornar uma sociedade de mercadores banqueiros, a maior e mais rica que já se viu e cujo poder político é enorme. Mas ele vê também que, em um mundo onde a espada é a lei, o poder econômico e político dissociado do poder militar é um convite certo ao desastre. Depois de várias décadas sem combater, o poder militar dos Templários é só uma lembrança de um passado distante. Corretamente, ele avalia que a Ordem é um gigante de pés de barro: um golpe certeiro a jogará por terra! Ademais, ela tem a antipatia do alto clero, muito incomodado por sua independência da autoridade dos bispos e pelo prestigioso diálogo direto que tem com o Papa e o Colégio de Cardeais. Muitos bispos não se conformam com o fato de ser o comendador diocesano da Ordem muito mais rico e poderoso do que ele dentro da sua própria Diocese. Também nobres e comerciantes, que têm os seus débitos judicialmente executados ou em vias de execução, gostariam de se ver livres de sua implacável credora e assim salvarem suas propriedades.
  
Poderosas muralhas do castelo templário de Tomar, sede da Ordem em Portugal que abrigará
cavaleiros fugitivos vindos de toda a Europa após a derrota na França
           
Já sabendo que o Templo é uma mina de ouro e tem muitos inimigos, Felipe tenta tornar-se seu membro e apoderar-se dele, mas o Grão-Mestre Jacques de Molay se nega a admiti-lo sob o argumento de que não poderia se tornar monge um homem casado e rei; para tanto teria que renunciar ao trono e à esposa. Felipe fica furioso e começa a arquitetar a destruição da Ordem com o seu ministro Guilherme de Nogaret, o qual, por razões pessoais idênticas a de muitos outros, também odeia os Cavaleiros. Portanto, coleciona vasto rol de denúncias sobre o mau procedimento de vários membros da Ordem e pleiteia secretamente junto ao Papa a sua dissolução alegando não ser ela mais necessária porque o seu principal objetivo, a proteção dos lugares santos na Palestina, desapareceu desde que ela de lá foi expulsa. Alega também que a má reputação dos cavaleiros faz do Templo um ônus para a Igreja, mas o Papa está ciente que o despeito e a cobiça são os verdadeiros motivos de Felipe e se nega a atendê-lo. Muito pressionado, tenta negociar e previne Jacques de Molay dos sinistros desígnios reais, dando início a um longo e incrível jogo de gato e rato que se travará nos bastidores e terá um desfecho terrível.

O Grande Mestre Templário ainda não sabe, mas ele e a sagrada Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém já estão mortos! 



sábado, 16 de outubro de 2010

Post nº 04

OS  CAVALEIROS  TEMPLÁRIOS  -  UMA  SAGA  DE  HEROÍSMO  MILITAR  E  TRAGÉDIA  POLÍTICA
A tomada de Jerusalém pelos Cruzados em 1099 levaria à criação da Ordem
dos Cavaleiros Templários para guardar e proteger os lugares santos


Para adquirir estes livros clique acima no
banner da Livraria Cultura ou em 
nossa Livraria Virtual

           
Poucos assuntos têm sido tão explorados pelos modernos fabricantes de mitos quanto a Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém, extinta há setecentos anos por um feroz processo ordenado pelo Rei de França e sancionado pelo Papa. Os seus líderes morreram na fogueira por práticas diabólicas e as riquezas imobiliárias da Ordem foram parar nas mãos do rei francês e dos reis europeus que o apoiaram.
           
Digo riquezas imobiliárias porque as riquezas monetárias (ouro, prata, jóias, pedras preciosas e moedas de todos os tipos), cujo montante se sabia ser enorme, jamais foram encontradas, nem na sede da Ordem em Paris nem nas suas fortalezas espalhadas por toda a Europa. Quando as tropas reais as ocuparam e prenderam os cavaleiros que lá estavam os tesouros tinham sumido!
           
O fragor do longo e escandaloso processo ressoa até hoje, e o mistério do Tesouro dos Templários tem sido fonte para as estórias mais mirabolantes. Tudo quanto é de seita obscura, real ou imaginária, tem sido relacionado à Ordem, a qual, segundo os produtores de mistério, existe secretamente até hoje e os seus membros guardam terríveis segredos que envolvem intrincadas tramas e conspirações.

 As lutas entre cristãos e muçulmanos tumultuaram o Oriente Médio
             durante dois séculos. Tela de Eugène Delacroix (séc. XIX)
         
Todos esses imaginosos enredos constituem ótimo divertimento, mas não têm nada a ver com a verdade da história real. A Ordem dos Cavaleiros Templários nasceu em 1118 quando dois jovens cruzados franceses da alta nobreza, Hugo de Payen e Godofredo de Saint-Omer, decidiram adotar a vida de monges sem abandonar o mundo secular, continuando a guerrear os infiéis na Terra Santa e a proteger os peregrinos que seguiam por suas perigosas estradas e desfiladeiros. O número de monges-soldados aumentou e a sua bravura, fé e desprendimento logo espalharam a sua fama por toda parte.
 
   Em 1128 o Concílio de Troyes aprovou a Ordem dos
      Templários. Gravura de autor anônimo (séc. XIX

O rei Balduíno II de Jerusalém lhes deu para alojamento um prédio anexo às ruínas do Templo judeu, em cujo topo está a célebre mesquita Al-Aksa, e eles o transformaram em grande fortaleza que se expandiu pelos subterrâneos do Templo, criando a lenda de que os cavaleiros os escavavam em busca do Tesouro do rei Salomão. Mais tarde a lenda foi acrescida do mito de que eles o teriam achado e por isso teriam se tornado imensamente ricos. Por controlarem as ruínas do Templo e nelas terem o seu quartel principal, eles passaram a ser chamados de Os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, nome este que adotaram para a sua Ordem quando alguns anos mais tarde ela veio a ser oficializada por bula papal que lhe aprovou os estatutos.

 O Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos no século I DC e os
   cavaleiros ocuparam suas  ruínas ganhando o nome de "Templários"
   
Uma ordem de monges que ao invés de viverem reclusos no mosteiro meditando e rezando viviam de espada em punho matando nos campos de batalha era um conceito estranho à longa tradição cristã e por isso houve muita resistência ao reconhecimento da nova organização religiosa. Em 1127, Hugo de Payen e alguns companheiros chegaram a Roma em busca da aprovação papal e o Santo Padre nomeou o nobre clérigo Bernardo de Claraval, famoso por sua erudição e santidade, para estudar o assunto. Ele aderiu com entusiasmo à iniciativa dos bravos cavaleiros e reuniu brilhante Concílio na cidade francesa de Troyes que a debateu durante semanas. Finalmente a Ordem foi estabelecida em 1128 e Bernardo se tornou seu pai espiritual e maior propagandista, fazendo com que a sua fama corresse toda a Europa. Reis e príncipes lhe doaram castelos e propriedades, homens ricos a presentearam com fortunas em dinheiro e milhares de jovens nobres, fanaticamente religiosos e sedentos de aventuras, nela ingressaram com fervor. Em pouco tempo a Ordem dos Cavaleiros do Templo tornou-se a espinha dorsal do exército cruzado e a mais poderosa e afamada de toda a cristandade.

A Ordem cresceu quando Bernardo de Claraval pregou
          a II Cruzada. Tela de Émile Signol (séc. XIX)
           
A Ordem fortaleceu-se ainda mais quando em 1146 São Bernardo de Claraval pregou por toda a Europa a II Cruzada e convocou os jovens nobres a juntarem-se aos Templários. Ela novamente recebeu uma torrente de novos membros e tornou-se um verdadeiro exército com milhares de homens treinados dia e noite para o combate. Eram todos rapazes ricos dos mais diversos níveis da nobreza e alguns tinham status de príncipes por pertecerem a casas reinantes, mas uma vez cavaleiros templários os privilégios desapareciam e tudo era concentrado nos esforços para deter o avanço islâmico que havia retomado várias cidades e agora ameaçava retomar Jerusalém. Porém o mais significativo de tudo é que com os novos cavaleiros veio não só nova onda de entusiasmo, mas também nova onda de doações que tornaram a Ordem ainda mais rica do que já era.

     Hugo de Payen criou a Ordem, mas quem lhe deu poder foi São
       Bernardo. Quadro de Georg Andreas Wasshuber (séc. XVIII)
  
Ela agora possuía terras, castelos, fortalezas, exércitos, esquadras e lojas nos principais portos da Europa e do Oriente Médio, o que a fez criar as cartas de crédito para transferência de dinheiro: comprava-se uma carta na loja da Ordem em Londres, que cobrava uma taxa pelo serviço, e se a sacava na loja de destino. Isto, que hoje é trivial, era novidade no século XII e deu início à economia globalizada.

Durante sessenta anos os Cavaleiros Templários foram o braço armado e principal sustentáculo do reino cristão da Palestina, mas no final do século XII o sultão Saladino reconquistou Jerusalém e a Ordem viu-se obrigada a retirar-se, abandonando sua sede nas ruínas do Templo. Todavia conservou o seu nome tradicional e continuou lutando com denodo  na esperança de retomar a cidade e fazer as coisas voltarem ao que eram. Nos oitenta anos seguintes não parou de crescer e de obter vitórias contra os muçulmanos tanto no Oriente como na Península Ibérica, onde foi fundamental para a expulsão dos árabes de Portugal, mas não conseguiu obter a vitória que realmente lhe importava: Jerusalém!

Na segunda metade do século XIII as cruzadas tiveram uma parada e o principal objetivo da Ordem, que era a reconquista da guarda do Santo Sepulcro e dos lugares santos, ficou cada vez mais distante. Para completar, os príncipes espanhóis fizeram uma trégua com o Sultão de Granada, deixando os cavaleiros sem ter o que fazer e o seu valoroso grão-mestre buscando uma nova razão de ser para a poderosa organização que dirigia.

      Sagração de Jacques de Molay, último grão-mestre da Ordem dos
           Cavaleiros Templários. Quadro de Marius Granet (séc. XIX)

O seu último grão-mestre Jacques de Molay tentou organizar nova cruzada e chegou a assolar o litoral da Palestina e do Egito com uma grande esquadra que montara com os vastos recursos da Ordem, mas o empreendimento se mostrou irrealizável quando o império mogol da Pérsia, seu provável aliado militar contra os sultanatos árabes do Cairo e de Damasco, desistiu de uma guerra a Oeste e investiu sobre à Índia no Leste, fazendo com que a chegada do século XIV encontrasse a Ordem quase que militarmente inativa. Os tempos de ociosidade militar que se seguiram minaram ainda mais a sua capacidade guerreira, mas não lhe diminuíu a arrogância nem o hábito de ganhar dinheiro e amealhar riquezas, adquirido ao longo de cento e oitenta anos de incrível sucesso político-militar e imensa prosperidade econômica.

             Isto levaria à sua destruição.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

 Post nº 03

A  CAVALARIA  MEDIEVAL  E  A  LENDA
DO  SANTO  GRAAL
Cavaleiro Templário guardião do Santo Graal. Cena do filme "Indiana Jones e a Última Cruzada"


Para adquirir estes livros clique acima  no banner da Livraria Cultura
ou na nossa "Livraria Virtual" 

           
Uma das estórias mais interessantes produzidas pelo chamado Ciclo de Lendas Arturianas é a do Santo Graal. Segundo a Bíblia, José de Arimateia, um nobre judeu membro do Sinédrio e com acesso a Pilatos, dele conseguiu autorização para sepultar Jesus, de quem secretamente era seguidor, e o fez em uma gruta próxima ao local da crucificação, fechando-a depois com uma grande pedra.

Aí terminam os relatos bíblicos e começam os relatos arturianos, que na Idade Média produziram várias versões e na nossa época muitas outras ligadas à indústria do entretenimento, como são os casos do livro O Código Da Vinci e do filme Indiana Jones e a Última Cruzada.

Analisemos a questão com base nas escassas fontes que possuímos sobre o Rei Arthur porque a estória do Santo Graal está intimamente ligada à sua. O poema Gododdin, composto oralmente nos anos 500 e publicado em linguagem escrita nos anos 600, é a fonte mais antiga conhecida sobre Arthur, mas ela não fala do Santo Graal. O historiador Nennius, escrevendo século e meio depois a sua Historia Britonnum, se refere longamente a Arthur, citando suas grandes vitórias contra os invasores bárbaros, porém é omisso sobre o Graal.  As menções ao cálice sagrado somente surgem em poemas celtas produzidos em torno do ano 1000, dentre eles destacando-se um dos poucos que chegaram até nós, intitulado Lives of Welsh Saints, escrito originalmente em latim e no qual o Rei Arthur é convertido ao cristianismo por um milagre.

A explosão artística da 1ª Renascença incorporou o maravilhoso à vida
das pessoas e as fez substituir as dúvidas pelas certezas

Dada a pobreza de versões consistentes sobre o assunto produzidas na primeira metade da Idade Média, creio que as únicas versões que merecem atenção, ao menos como referencial histórico, são as produzidas na sua segunda metade, especialmente a partir do final do século XII, quando o assunto é abordado com vigor e criatividade pelas penas dos poetas Gaimar, Estoire des Engles; Wace, Le Roman de Brut; Beroul, Tristan; Marie de France, Lais; e sobretudo Chrétien de Troies, autor de vários poemas em prosa e maior expoente do gênero literário a que se deu o nome de Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, o qual quatrocentos anos depois seria genialmente satirizado por Miguel de Cervantes em seu famoso romance Dom Quixote de La Mancha. Todavia, o fato de não termos fontes escritas claras sobre o Santo Graal antes do século XII não significa que elas não existissem, pois calcula-se que menos de um décimo do material literário produzido no Ocidente durante a Idade Média chegou até nós. A quase totalidade da pequena fração do legado intelectual greco-romano preservado após a queda do Império somente nos veio a partir do mencionado século, trazido que foi ao Ocidente por cruzados, clérigos e mercadores que voltavam do Oriente, pois a maior parte fora preservada lá por sábios Ortodoxos e Muçulmanos. Basta lembrar que Aristóteles e Ptolomeu, cujas filosofia e astronomia viriam a se tornar oficiais para a Igreja Católica, eram até então desconhecidos no Ocidente.

O pensar do homem medieval era simples: se a maravilha de uma catedral
gótica é real, por que então o Santo Graal não seria?

Não é por acaso que a Primeira Renascença Europeia, com fundação de universidades, construção de catedrais e surgimento de vigorosa literatura romanesca e filosófica, se inicia no século XII. Creio assim que a lenda do Santo Graal já existisse há séculos nos relatos orais guardados na memória do povo e tenha sido aproveitada pelos poetas e escritores altamente intelectualizados da Primeira Renascença, ansiosos por ganharem dinheiro, fama e prestígio com os escritos produzidos para satisfazer o gosto por romance e aventura de um novo público letrado enriquecido pelo saque do Oriente proporcionado pelas Cruzadas. Porém não excluo a hipótese de que a lenda tenha sido forjada por fanáticos no final do século XI para dar às massas mais uma motivação à Primeira Cruzada, além da pura e simples expulsão dos muçulmanos de Jerusalém e a reconquista da guarda do Santo Sepulcro.

A maestria da arte religiosa medieval da 1ª Renascença tornou real para as pessoas o que de
outro modo seria mistério ou pura fantasia

De qualquer forma, foi o ciclo literário medieval do Romance de Cavalaria e de Amor Cortês que deu consistência e popularidade às lendas sobre o Rei Arthur, seus heróicos cavaleiros e o místico Santo Graal, cujas versões podemos reduzir a três. A primeira diz que José de Arimatéia guardou o cálice usado por Jesus na última ceia e com ele colheu um pouco do seu sagrado sangue ao tirá-lo da cruz. Depois levou o cálice para a Britannia e o escondeu em Glastonbury. A segunda tem base semelhante, mas difere ao dizer que o cálice foi levado à Espanha por São Tiago e lá conservado em um mosteiro, pois operava milagres, até que um mago pagão invejoso o roubou e o levou para local secreto.O mesmo acontece com a terceira, diferindo das outras ao afirmar que o cálice não saiu da Palestina e foi ocultado pelos próprios discípulos de Jesus. Como todo mito sempre tem um fundo de verdade, não custa analisar as três versões citadas, dada a importância literária e cinematográfica que a lenda do Santo Graal assumiu na indústria do entretenimento do mundo moderno.

Exeter, com sua magnífica catedral gótica, fica no sudoeste da Inglaterra,
onde o Graal teria sido escondido e Arthur teria reinado

Penso que as duas primeiras versões não merecem credibilidade porque se o cálice fosse levado para Glastonbury, situada no próprio reino de Arthur, não haveria razão para os seus cavaleiros Percival, Galahad e Bors irem procurá-lo em lugares distantes, a ponto dos dois primeiros desaparecerem na perigosa jornada e somente Bors regressar. Por outro lado, os Atos dos Apóstolos, que relatam suas viagens para converterem os pagãos, não falam em viagem de Tiago à Espanha.

O imaginário medieval sobre o Graal tem sido tema na atualidade de  muitos livros e filmes

Na minha opinião a única versão que possui plausibilidade é a terceira, pois sendo José de Arimatéia secretamente cristão, a ponto de opor-se ao Sinédrio na decisão de condenar Jesus à morte, teria sido possível que obtivesse o cálice para tê-lo como objeto de culto e em sua devoção o utilizasse para colher um pouco do sangue que julgava sagrado. Dessa forma, o santo cálice continuaria na Palestina escondido em algum mosteiro no deserto ou lugar secreto nas montanhas, como sugere o filme "Indiana Jones e a Última Cruzada".

Ruínas do Templo de Jerusalém. Alguns dizem que os Cavaleiros Templários teriam escondido o Graal
em seus subterrâneos antes da tomada da cidade pelo sultão Saladino no ano de 1187

Recentes escavações em Jerusalém e arredores mostram que existiam lugares secretos de culto de seitas diversas nos primeiros tempos do cristianismo, os quais foram abandonados pelos fiéis devido às perseguições e depois soterrados pelo tempo. Assim, não é de se duvidar que a relíquia possa um dia ser encontrada em um desses sítios arqueológicos. A versão de que o cálice jamais saiu da Palestina possui valor histórico e prático porque motivou muitos cruzados, sobretudo os Cavaleiros Templários, a perseverarem na terra santa e lutarem ainda com mais fé contra os que consideravam inimigos de Cristo.

Os artistas pintam o Graal como um cálice de ouro ou prata, mas sendo
cálice de carpinteiro deve ter sido de madeira

Porém o maior argumento contra a existência do Graal é o fato de nenhum Doutor da Igreja o mencionar em suas obras dos séculos IV, V e VI, quando se produziu a melhor Teologia antes do século XIII. Também nenhum bom poeta do período o menciona em seus poemas, fato no mínimo estranho, pois o fervor religioso no final do Império Romano era enorme. A Imperatriz Helena em sua peregrinação a Jerusalém ordenara a construção da Igreja do Santo Sepulcro e inaugurara a "Era das Relíquias Sagradas", levando consigo para Constantinopla o que lhe garantiram ser fragmento da Verdadeira Cruz, ossos dos Reis Magos, mortalha de Jesus, vestido de Nossa Senhora, etc. Caso a estória do Santo Graal já existisse, a devota imperatriz moveria montanhas para encontra-lo e por certo o teria encontrado, tal como encontrou as outras sagradas relíquias.

Igreja do Santo Sepulcro construída em Jerusalém no século IV pela imperatriz Helena, esposa do
imperador Constâncio Cloro e mãe do Imperador Constantino, que legalizou o cristianismo

Pessoalmente, acho que o Santo Graal é apenas uma lenda criada por poetas talentosos, com base em relatos orais memorizados e repetidos pelo povo numa época em que a religião reinava suprema, lenda que em nossos dias é uma mina de ouro para cineastas e escritores criativos, sobretudo os cultores dos gêneros "policial" e "fantasia".



quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Post nº 2

O  REI  ARTHUR  REALMENTE  EXISTIU ?

Seguindo a versão romântica do século XII, estátuas, quadros e filmes  mostram
Arthur como guerreiro medieval e não como legionário romano


Para adquirir estes livros clique acima em nossa
"Livraria Virtual"




As primeiras referências escritas que temos de Arthur estão em poemas populares compostos a partir dos anos 500 no oeste da Inglaterra pelos britânicos nativos de raça céltica que há muito tinham adotado o cristianismo. Eles resistiram aos invasoes pagãos anglo-saxãos e conservaram o que podiam da religião cristã e da cultura romana, mantendo também o culto aos heróis da resistência.

Nos anos 700 a conquista se completou e os anglo-saxãos se converteram ao cristianismo, dando ensejo a que aparecesse uma “História dos Britânicos” escrita por alguém que se autodenominou Nennius, provavelmente um sacerdote cristão a respeito de quem nada se sabe. A obra cita muito Arthur e contém uma lista de doze batalhas vencidas por ele contra os invasores pagãos, o que sugere ter o herói vivido nos anos 400, período das grandes invasões bárbaras que destruíram o Império Romano do qual a Inglaterra era parte.

Nos séculos V e VI os anglo-saxãos pagãos empurraram os britons
      cristãos para o Oeste. Muitos foram para França e Espanha

É razoável supor que Arthur era um alto oficial que ficara na Ilha sob as ordens de Ambrosius Aurelianus, importante cidadão romano-britânico que parece ter governado a Britannia nos anos 30-50 do século V, pois há parte de uma carta sua ao imperador datada de 436. O bispo Gildas fala muito nele em sua obra De Excidio Britanniae (A Destruição da Britannia) publicada em 540, e tudo indica que estava no controle da província  quando as legiões foram combater Átila na Gália em 451. Todavia Gildas não fala em Arthur, o que é compreensível se nos anos 30-50 do século V, quando Ambrosius Aurelianus era o último governador romano da Britannia, Arthur fosse apenas um seu subordinado.

Devemos notar que após a provável partida das legiões em 451 o contato entre a Britannia e Roma cessou e os historiadores, todos eles do continente, não tiveram mais notícias da ilha e nada escreveram sobre o período que vai dos anos 450 aos anos 520, década em que Gildas provavelmente chegou de Roma e desembarcou na ilha. Embora de origem britânica, é provável que Gildas tivesse saído do país ainda criança ou nascido no continente, pois a atual região francesa da Bretanha era povoada na época por britânicos fugitivos das invasões anglo-saxônicas. Tendo sido educado em Roma e lá vivido até a maturidade, é possível que ele soubesse a história do seu país apenas pelos historiadores continentais, e estes nada tinham escrito sobre a época posterior a Ambrosius Aurelianus.

   No século XIX o romantismo trouxe de volta o "Ciclo Arturiano" com o poema "Os
                         Idílios do Rei" de lord Tennyson, ilustrado por Gustave Doré
           
Sendo um scholar, Gildas certamente não deu importância aos poemas orais em língua local, recitados ao redor das fogueiras nas noites frias ou nas festas populares. Isto talvez explique a sua ignorância sobre Arthur, pois nos anos 500 já circulavam oralmente no sudoeste da Britannia, terra do herói, muitos poemas sobre as lutas que os locais travavam para manter os invasores afastados da sua região. Desses poemas o único que chegou até nós foi o épico Gododdin, onde Arthur e outros herois são celebrados, mas ele só adquiriu forma escrita por mão anônima nos anos 600, bem depois da morte de Gildas. Creio que a oralidade da história britânica em poemas populares na sua época, cheios de fantasias como é próprio do gênero, certamente motivou a sua ignorância sobre os fatos e os homens que desde a morte de Ambrosius Aurelianus no século anterior sustentavam a independência da região contra os bárbaros invasores pagãos.

No século XX a romantização de Arthur como herói medieval continuou
           firme na mídia. Vemos aqui cena da peça musical "Camelot"

O século V, período em que Arthur teria vivido, é um dos mais obscuros da história britânica, pois nem sequer se sabe ao certo o ano da partida das legiões. Historiadores apontam diferentes datas, sendo 407 a mais comum, mas acho falso, pois é certo que em 436 ainda havia um governo romano na Britannia, como atesta carta de Ambrosius Aurelianus ao imperador sobre a perigosa situação da província e pedindo autorização para criar um exército provincial. O documento está incompleto e não é possível dizer o cargo oficial do autor, mas é óbvio que só um alto dignitário poderia dirigir-se diretamente ao imperador pedindo licença para levantar tropas na ilha a fim de enfrentar os bárbaros. Isto seria próprio de um governador provincial, e se havia um na Britannia em 436 não há como se admitir a partida das legiões antes dessa data. Penso que 451 é a data mais provável, pois foi quando Átila invadiu a Gália e Aécio reuniu todas as tropas romanas disponíveis para enfrentá-lo, derrotando-o na batalha de Chalôns, também chamada de Batalha dos Campos Catalúnicos. Fazer as legiões atravessarem o Canal da Mancha para enfrentar o rei huno na vizinha Gália seria a atitude lógica de um general em tal situação.

Historiadores continentais relatam que nos anos 460 a Gália sofreu novas invasões e um general chamado Riotimus veio da Britannia com um exército para expulsar os invasores, obtendo sucesso e voltando depois ao seu país. Hoje se sabe que Riotimus era a latinização do título “Riothamos”, que em um dos antigos dialetos celtas significava “Chefe Supremo”, e não um nome próprio. Como os poucos historiadores da época eram de cultura romana, certamente ignoravam tal detalhe e escreveram o título com o qual as pessoas designavam o líder como sendo o seu nome, confundindo o título com o homem, tal como fazemos ao nos referir a um soberano apenas pelas palavras "rei" ou "rainha".

   Nos anos 500 os anglo-saxões começaram a adotar os costumes romanos dos britons e
              nos anos 700 se tornaram cristãos. Ilustração de Albert Kretschmer (1882)

Portanto, é crível que o nome celta do herói fosse Arthur, o rei britânico a quem Nennius se refere. Era usual entre os romanos latinizar nomes nativos e Arthur aparece na obra com o nome de Arturus, sendo que alguns escritos da época também o chamam Artorius. A mistura de nomes, títulos e postos deve ter contribuído bastante para o mistério.   

As destruições feitas pelos bárbaros nos anos finais do Império causaram a fuga de populações inteiras e quase fez cessar a atividade cultural, sobretudo na Britannia, de onde mais da metade da população do civilizado Leste fugiu para o noroeste da Gália, criando a atual Bretangne francesa, e para o noroeste da Espanha, misturando-se com os suevos da Galícia. Em consequência, a palavra escrita praticamente desapareceu da Ilha e a sua história foi substituída pela tradição oral, dando origem aos mitos e lendas.

Por isso não é de admirar que importantes líderes da resistência, como Uther, Merlin, Arthur, Kay, Percival, Tristan e outros, tenham se tornado lendários; mas certamente Arthur foi o mais notável e sua lenda adquiriu contornos definitivos quando o bispo Geoffrey of Monmouth publicou em 1135 sua História dos Reis da Britannia, desde então a principal fonte de informações sobre o herói e aqueles que lhe eram próximos.

         Filme recente com o ator Clive Owen retrata corretamente Arthur como oficial romano do  século V em
                             luta com os anglo-saxãos, mas erra ao dizer que ele era sármata e não britânico

Penso que o argumento mais forte para a real existência de Arthur é o fato de durante dois séculos os anglo-saxãos não terem conseguido conquistar o País de Gales e a Península de Devon, pois nestas regiões, assim com em outras partes do sudoeste da Britannia, são raríssimos os vestígios da sua presença anteriores ao século VII. Isto significa que, não obstante as suas incursões e depredações narradas por Gildas, os anglo-saxãos jamais conseguiram nelas implantar o seu domínio enquanto não se converteram ao cristianismo no final do século VII, misturando-se definitivamente com os britânicos e criando uma nova nacionalidade coesa e forte. Se não o conseguiram, apesar de serem muito superiores numérica e militarmente aos britânicos, foi porque se depararam com a efetiva e eficaz resistência deles, coisa que somente poderia ocorrer no caso de estarem econômica, social e politicamente muito organizados. Isto faz pressupor a existência de um reino britânico-cristão bastante poderoso, requisito essencial para a existência de Arthur e seus cavaleiros na corte do lendário Reino de Camelot.

As circunstâncias históricas mostram a perfeita possibilidade e até mesmo a necessidade de que tal Reino existisse e tivesse notáveis líderes como Arthur e seus cavaleiros para enfrentar a massiva invasão bárbara, pois só assim ter-se-ia uma explicação razoável para o fracasso dos anglo-saxãos em conquistar nos anos seguintes a vasta região, uma das mais férteis e belas da Inglaterra.



         A tenaz resistência aos invasores anglo-saxãos no século V, aqui retratados no filme com Clive Owen, deu
                                    fama e glória a Arthur, fazendo-o rei dos britânicos e guerreiro legendário

É até possível pensar que a chegada de Gildas à Britannia, na segunda ou terceira década do século VI, tenha coincidido com o período de caos que teria se seguido à morte de Arthur no final do século V e que teria encorajado os invasores a redobrarem seus esforços de conquista dada a ausência do seu valoroso adversário. Os 30 ou 40 anos de caos entre a morte de Arthur e a chegada de Gildas teriam presenciado a destruição dos mosteiros e bibliotecas contendo os registros do brilhante período do rei celta, fazendo com que Gildas dele não tivesse tido conhecimento, levando-o a concentrar-se apenas na devastação ocorrida depois do historicamente esquecido reinado de Arthur.

              Ruínas da abadia de Glastonbury, onde a lenda diz que Arthur foi enterrado. Embora sua construção
                           date do século IX, há sinais de que no local existira antes igreja dos tempos romanos

Mas os supersticiosos acreditam que o "espírito de Arthur" cuidou de preservar a sua unicidade entre os reis britânicos impedindo que qualquer deles tivesse o seu nome, pois embora vários herdeiros da coroa tenham sido batizados "Arthur", todos morreram antes de poderem usá-la. Por via das dúvidas, desde a morte do último há alguns séculos, nenhum crownprince inglês recebeu o nome do lendário rei celta!

       Parece ter havido consenso na Inglaterra de que "Rei Arthur" só deve haver um,
               reinando para sempre no mundo da fantasia. Gravura de Gustave Doré

A minha opinião é que Arthur existiu e teve importante papel na guerra de resistência aos invasores anglo-saxãos no período inicial da invasão, mas a sua luta foi em vão e a Britannia mergulhou na barbárie testemunhada por Gildas, nela permanecendo durante os dois séculos seguintes, período conhecido como Alta Idade Média ou “Idade das Trevas”, até que o rei Alfredo o Grande viesse de novo unificar o país e prepará-lo para uma nova existência, onde o culto dos heróis desempenharia papel importante na construção de uma identidade nacional legitimamente britânica. 

Por sorte, a história desses heróis sobreviveu na cabeça das pessoas sob a forma de mitos e lendas, como é próprio da tradição oral, e serviu tanto para forjar a nova nação como para nos brindar com as belas estórias que têm encantado gerações através dos séculos.