quarta-feira, 8 de junho de 2011

Post nº 41

CONDE  DRÁCULA - O FALSO   VAMPIRO  QUE  DESAFIOU  O  IMPÉRIO  TURCO  

Após vencerem os húngaros em 1444 na batalha de Varna os turcos exigiram a submissão da Transilvânia
e da Valáquia, mas o conde Drácula os enfrentou durante anos. Tela de Stanislaw Chlebowski (1885) 
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Nenhum personagem fez brotar tantas lendas nem incendiou tanto a imaginação das pessoas em apenas um século quanto o Conde Drácula e, com certeza, nenhum se tornou uma mina de ouro tão rentável para escritores e cineastas em tão curto espaço de tempo, se considerado este do amplo ponto de vista histórico. O personagem foi tão vulgarizado e banalizado que hoje causa mais riso que terror, ao contrário do que ocorria na primeira metade do século XX, quando o romance gótico “Drácula” de Bram Stocker se tornou best-seller mundial e os filmes que inspirou aterrorizavam as platéias dos cinemas.

Essa extrema vulgarização fez com que quase todos tenham “Drácula” como ficção e não como personagem real de forte presença na História do sudeste europeu no final da Idade Média. Para o historiador quatro perguntas se impõem e exigem respostas: 1) Drácula realmente existiu? 2) Se existiu, quem foi ele? 3) Era realmente um “vampiro” que bebia o sangue das pessoas?  4) Se era, ele ressuscita à noite, assume formas de animais, voa, não se reflete nos espelhos, alho e água benta o afastam, não entra em local sagrado, treme diante da cruz e só a luz do sol ou uma estaca de madeira no coração podem matá-lo?

Comecemos pela primeira pergunta e a resposta é sim. Drácula realmente existiu e sua vida é relatada pela História da Romênia, é presente nos castelos que construiu e é registrada nas crônicas da Igreja Ortodoxa Romena, inclusive no seu destacado túmulo em um dos mais antigos, belos e venerados templos cristãos ortodoxos. Isto mostra que ele não somente existiu, como foi também pessoa muito importante, coisa que nos leva à segunda questão: “Quem foi ele”?

Conde Drácula, príncipe da Valáquia e da Transilvânia. Defensor da
fé cristã ortodoxa e herói da independência romena
        
Drácula nasceu nas primeiras décadas do século XV e era filho do Conde Vladislau, apelidado "Vlad Dracul”, Príncipe da Valáquia, vizinha da Transilvânia e no território do que é hoje a Romênia. “Dracul” em romeno significa “dragão” e era apelido que os súditos deram ao seu pai em homenagem à sua valentia, chamando-o de “Vlad o Dragão”. Como o garoto herdeiro da coroa tinha o mesmo nome do pai, o povo passou a chamá-lo de "Vlad Drácula”, ou seja, “Vlad o Dragãozinho”. A Valáquia era parte autônoma do Império Romano do Oriente com sede em Constantinopla, mais conhecido como “Império Bizantino”. Este enfrentava séria crise na época dos dois Vlad, pois estava cercado pelos turcos muçulmanos que o atacavam por todos os lados, reduzindo-o quase que só à cidade de Constantinopla e arredores. Foi quando os conquistadores chegaram à Valáquia e exigiram a integração do principado no Império Otomano. Incapaz de resistir ao inimigo muito mais poderoso, o velho “Dragão” contemporizou e para resistir tentou obter ajuda financeira dos mercadores alemães que dominavam a economia do país e ajuda militar da Hungria, reino cristão e quase vizinho.

Não conseguiu nada, seja porque os mercadores alemães só pensavam em lucros e punham o dinheiro acima de tudo, seja porque eram de religião cristã católica em um país de religião cristã ortodoxa e lhes era indiferente terem como senhores cristãos ortodoxos ou muçulmanos sunitas. Os húngaros tinham sido derrotados pelos turcos em 1444 na grande batalha de Varna e desde então pagavam tributo aos vencedores em consequência de um Tratado de Paz humilhante, por isso  seu maior interesse era mantê-los afastados, mas o fato de serem católicos e não quererem briga com o poderoso Império Otomano os impedia de maiores amizades com os ortodoxos romenos, por quem não morriam de amores, e deram ao ortodoxo príncipe Vladislau apenas pequena ajuda militar. O resultado foi que o “Dragão” e o “Dragãozinho” foram derrotados, refugiando-se ambos na Hungria que os auxiliara, embora de forma modesta e quase simbólica.

A literatura e o cinema fizeram do conde Drácula vampiro aterrador.  Cena
 do filme mudo "Nosferatu" do diretor alemão Frederico Murnau

O velho morreu no exílio e o jovem começou a tramar secretamente a retomada da Valáquia com os muitos partidários que lá deixara, pois os conquistadores tinham colocado no trono um títere inimigo da sua família, muito odiado pelo povo por suas estreitas relações com os opressores “infiéis”. A oportunidade surgiu em 1453 quando os turcos tomaram Constantinopla e dedicaram-se a cuidar apenas da riquíssima conquista, esquecendo lugares pobres e remotos como a Valáquia. Foi o bastante para Drácula destronar o usurpador e se firmar no poder sob os aplausos do povo e da Igreja Ortodoxa, pois além de fervoroso patriota era muito devoto e moralista: ladrões, blasfemadores, estupradores, sodomitas, adúlteros, incestuosos e demais tipos de pecadores eram sistematicamente executados pelo austero e severo príncipe.


O ator húngaro Bela Lugosi encarnou em filme falado de 1932 o mais célebre "Drácula" do cinema

Para resistir aos turcos, ele viu que precisava de um poderoso exército, mas o país era pobre e quase toda a riqueza estava nas mãos dos mercadores alemães que exploravam o povo sem piedade. Eles eram originários das cidades mercantis alemães do mar Báltico e tinham se instalado na região há mais de 200 anos com a preciosa ajuda militar da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, seus conterrâneos. Quando a Ordem foi expulsa pelos húngaros e mudou-se para a Prússia, os mercadores alemães continuaram a dominar a economia regional sem se integrar à sua sociedade, porém eram os donos do dinheiro e Drácula foi a eles fingindo humildade e amizade, prometendo-lhes ainda mais lucros caso o ajudassem. Disseram-lhe que pensariam no assunto e aceitaram o seu gentil convite para um banquete no castelo a fim de celebrarem o possível reatamento da “velha amizade”. Todos foram, e em meio à festa Drácula os prendeu e deu-lhes pavoroso castigo por seu agir ganancioso, alheio aos interesses do país: a EMPALAÇÃO! Tudo indica que Drácula descobrira que o "Terror de Estado" podia ser usado com tremenda eficiência.

Drácula tinha vários castelos nas montanhas de onde guerreava os turcos otomanos. Este
construído pelos Cavaleiros Teutônicos no século XIII é o mais famoso
        
Cerca de 200 ricos mercadores alemães foram espetados pelo ânus em estacas pontudas espalhadas pelo país e todos viram que o “Dragãozinho” virara terrível dragão de verdade. Drácula confiscou seus bens e armou poderoso exército, rapidamente conquistando a vizinha Transilvânia e lá também empalando os prisioneiros turcos junto com os seus títeres e colaboradores. A Igreja e o povo viram que um campeão da causa nacional havia surgido e correram a apoiá-lo, aclamando-o também Príncipe da Transilvânia. Quem não o apoiasse com dedicado empenho já sabia que a empalação o esperava. Surpresos, os turcos lhe mandaram um embaixador para informá-lo de que caso não se submetesse seria esmagado como um inseto. Sua resposta foi mandar ao Sultão a cabeça do embaixador numa rica caixa de presentes! Indignados, os turcos o atacaram com força, mas ele os venceu, fazendo dez mil prisioneiros e os empalando numa fileira que se estendia por toda a fronteira dos seus pobres principados com o rico e poderosíssimo Império Otomano.

Irados com o atrevimento e a extrema crueldade de Drácula, os turcos lhe mandaram várias expedições punitivas, mas ele as venceu e solidificou o seu reino de terror, pois se tornara muito desconfiado e empalava qualquer suspeito. Quando os otomanos finalmente o derrotaram, ele refugiou-se em castelos nas montanhas e continuou a luta até exaurir-se e de novo exilar-se na Hungria. Lá, casou com uma jovem da família real e ficou por vários anos, até que nova oportunidade surgiu e ele voltou, reeditando as façanhas anteriores. Por fim, foi derrotado e morto. Os turcos lhe cortaram a cabeça e a mandaram para Constantinopla, onde ficou durante semanas em uma estaca fincada em praça pública para gáudio popular. Porém, ainda no campo de batalha, piedosos padres ortodoxos suplicaram ao general turco que o corpo do seu príncipe lhes fosse entregue para ser sepultado, no que foram atendidos. O limparam e o vestiram com roupas riquíssimas, sepultando-o com pompa em importante templo sob genuínas manifestações de pesar do povo. A partir daí, Drácula passou a ser tido como bravo defensor da fé cristã ortodoxa e herói da independência romena.


Um dos castelos de Drácula. Estava em ruínas, mas foi totalmente restaurado pelo governo romeno


Como então surgiram as absurdas histórias constantes das 3ª e 4ª questões? A resposta é que não sabemos e podemos apenas especular. Temos uma teoria relatada a seguir sem qualquer pretensão à verdade, mas tudo indica que é a mais lógica. Acreditamos que com o passar do tempo, numa época em que havia poucos livros e quase ninguém sabia ler, a história real foi aos poucos substituída pelo mito, como sempre ocorre com fatos e pessoas que incendeiam a imaginação popular e se incorporam à tradição oral, passando de boca em boca e de geração a geração com todos os acréscimos e modificações implícitos em tal processo. Depois de décadas, a única lembrança de Drácula na mente ingênua do povo comum era a da sua crueldade, pois a gente simples geralmente se ocupa mais de fatos concretos ligados à sua dura luta diária pela sobrevivência do que de fatos abstratos, como “defesa da fé”, “independência da pátria” e outros fora do seu estreito horizonte existencial. A lenda de que Drácula, além de empalar os inimigos, também lhes bebia o sangue deve ter surgido naturalmente e o fizeram “bicho papão” imortal, do tipo que as mães invocam para assustar as crianças: “se você não se comportar, o DRAGÃOZINHO virá voando morder o seu pescoço e beber seu sangue”!

As histórias ouvidas na infância certamente viraram contos na idade adulta e deviam ser relatados nos serões noturnos sempre com novos ingredientes que faziam o “monstro” ainda mais poderoso e terrível. Isto deve ter se generalizado cerca de dois séculos após sua morte quando os padres reformaram a igreja onde ele fora sepultado e os operários ao abrirem o seu túmulo por necessidade de serviço o acharam vazio. A história espalhou-se como vendaval e até mesmo os descrentes passaram a acreditar nas lendas: Drácula ressuscitara, fugira do solo sagrado e escondera-se em túmulo secreto num dos seus castelos nas montanhas, de onde saía à noite em forma de lobo ou de morcego para beber sangue humano, único alimento capaz de mantê-lo vivo dormindo no seu túmulo durante o dia!

O “mistério do túmulo vazio” jamais foi esclarecido e é o mais poderoso elemento da lenda de Drácula, mas nenhum registro histórico o acusa de vampirismo. Até porque se ele realmente fosse um vampiro a conservadora Igreja Cristã Ortodoxa jamais lhe daria o status que lhe deu. O secular atraso e a localização remota da Romênia impediram durante séculos que a lenda de Drácula se espalhasse pelo mundo, até que Bram Stocker a descobriu em pesquisas no Museu Britânico e nela viu ótimo material para um romance gótico. Nascia assim o "vampiro" Conde Drácula! 


quinta-feira, 2 de junho de 2011

Post nº 40

A  MORTE  DO  REI  ARTHUR

"Morte D'Arthur" - Quadro célebre de Edward Burne Jones (séc. XIX). Escola Rafaelita

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Há várias versões sobre a morte de Arthur, todas elas mais ou menos lendárias, porém a mais provável diz que ele morreu por ferimentos causados por seu sobrinho Mordred na batalha do rio Camlaan, na qual Arthur o matou. Vejamos como frei Gildasius Pisanensis conta o fato em seu manuscrito do século VI há pouco descoberto.

           
Arthur estava confiante em uma vitória definitiva ainda no outono, mas Mordred já descobrira a posição de cada batalhão e sabia exatamente onde estava o batalhão do rei. Assim, reuniu os mil e quinhentos homens que lhe restavam depois das perdas sofridas até então, preparou a emboscada em um vasto local descampado cercado de florestas às margens do riacho Canlaan, onde havia uma velha ponte romana que Arthur deveria atravessar em sua marcha, e se escondeu na floresta na noite anterior à sua presumível passagem. Porém Arthur tivera uma ligeira indisposição e resolvera atrasar a marcha em um dia, de sorte que papéis foram trocados e quem chegou ao local foi o batalhão de Gwain, que estava à sua esquerda.

Arthur e suas tropas. Note-se as bandeiras com imagens de dragões herdadas do seu pai Uther, cognominado "O Senhor dos Dragões" - gravura medieval

     
Amanhecia e o nevoeiro não permitiu Mordred ver a diferença, atacando o seu primo e o esmagando após uma hora de luta feroz. Gwain e quase todos os seus homens morreram, mas alguns escaparam e foram relatar a Arthur o desastre, dizendo-lhe que o inimigo possuía tropas quatro vezes mais numerosas do que qualquer batalhão real isolado, fazendo-o decidir-se a esperar a chegada dos batalhões de Kay, Tristan e Bors, acampados próximos e imediatamente chamados. Quando Kay e Tristan chegaram, ele resolveu marchar para o local da batalha, apesar da prudência dos seus generais que o aconselhavam a esperar a chegada de Bors para só então atacarem em igualdade de condições. Porém Arthur estava temeroso de que Mordred fugisse antes e decidiu atacar de qualquer maneira, pois ficara furioso com o tratamento que ele dera a Gwain, pendurando-o nu pelos pés no galho de uma árvore após mutilar seu cadáver. Gwain lutara bravamente e infligira às tropas de Mordred severas baixas, porém ele ainda dispunha de boa superioridade numérica sobre os batalhões de Arthur que marchavam ao seu encontro, mas como não sabia disso decidira fugir após constatar o seu engano, tal como o rei previra.

O cavaleiro negro estava dividindo novamente seus homens em bandos e lhes designando as áreas de operações quando Arthur atacou com toda força. Apesar da superioridade numérica, os indisciplinados facínoras de Mordred não eram adversários à altura dos soldados de Arthur e começaram a recuar lentamente para o outro lado do riacho através da velha ponte, pois as chuvas dos dias anteriores o tinham transformado em caudaloso rio, impossível de ser cruzado a nado por homens vestidos com pesadas armaduras. Um quarto dos rebeldes já estava do outro lado quando Bors chegou pela mesma margem e os enfrentou de igual para igual. Mordred era um carniceiro brutal, mas era astuto e inteligente: percebeu que se todos os seus homens fossem para o outro lado e ele bloqueasse a passagem, poderia aniquilar Bors sob o olhar impotente do rei: quando finalmente fugisse teria destruído os batalhões de dois dos seus mais importantes generais. Assim, ordenou que suas tropas a cruzassem depressa e liquidassem Bors enquanto ele e seus ferozes seguidores detinham o adversário na margem oposta. Vendo o seu velho camarada ser massacrado, o rei redobrou seus esforços e em desespero foi abrindo largos claros à sua volta até deparar-se frente a frente com o cavaleiro negro na entrada da ponte. Parou diante dele e autoritário ordenou aos demais: “Deixem o canalha comigo”!

Era uma velha tradição celta que quando dois líderes inimigos se enfrentassem cara a cara os seguidores de ambos se afastariam e deixariam os dois combaterem até que um vencedor surgisse. Neste caso os seguidores do líder derrotado se renderiam. Iniciou-se então o mais famoso duelo individual de que se tem notícia. Embora tivesse a metade da idade do tio, logo ficou claro que Mordred não era adversário para Arthur, e foi lentamente recuando até o meio da ponte.

Galahad. Embora seja considerado um
dos maiores cavaleiros de Arthur, ele
não lutou na batalha do Canlaam

       
Bors e seu batalhão já tinham sido esmagados e todas as tropas rebeldes estavam na margem atrás de Mordred enquanto as tropas reais estavam na margem atrás de Arthur, de modo que ambas as margens estavam ocupadas pelos partidários dos seus respectivos campeões e assistiam em silêncio mortal o terrível embate. De repente a espada de Arthur, apelidada excalibur, fez um gracioso volteio no ar e penetrou fundo no peito de Mordred por entre as brechas da sua armadura. O cavaleiro negro cambaleou e caiu pesadamente ainda segurando a sua espada, enquanto o rei voltava-se para os seus soldados com excalibur erguida para o alto em sinal de vitória e era por eles aplaudido delirantemente. Então fez uma coisa idiota: na embriaguez da vitória, ao invés de aproximar-se do inimigo por trás para dar-lhe o golpe final na garganta, aproximou-se de frente para tirar-lhe o capacete e cortar-lhe a cabeça como o seu pai costumava fazer. Quando se curvou confiante para executar a tarefa, Mordred reuniu suas últimas forças e com a espada que ainda segurava golpeou a ilharga do tio; ele recuou um pouco, mas voltou e deu o golpe de misericórdia no traiçoeiro inimigo. Curvou-se novamente, tirou-lhe o elmo, suspendeu-o pelos cabelos e cortou-lhe a cabeça, exibindo-a triunfante enquanto as tropas adversárias fugiam em pânico e embrenhavam-se na floresta adjacente. Foi só então que o rei se apoiou em um dos seus soldados e todos viram que ele estava gravemente ferido. Prestaram-lhe os socorros de emergência, mas a ferida era profunda e por mais que tentassem não conseguiram parar a lenta sangria. Kay ordenou que o rei e todos os soldados feridos fossem postos em padiolas e levados ao castelo de Avalon na manhã seguinte, pois embora o castelo ficasse bastante próximo, a tarde já chegava ao fim; a esperança era de que se Arthur conseguisse atravessar a noite os poderes mágicos de Morgana lhe salvariam a vida e curariam os demais feridos no outro dia. Ele dormiu a noite inteira, e quando todos partiram ao amanhecer a sangria cessara e ele estava lúcido, chegando a trocar palavras com os enfermeiros. 

Ao meio-dia a longa procissão avistou o castelo e todos ficaram encantados com a sua beleza: era cercado de vasto pomar em um alto que se elevava do lago criado pelas últimas chuvas, de forma que para alcançá-lo tinham de usar balsas e canoas. Avisados da catástrofe, Merlin, eu e a rainha chegamos dois dias depois e demos graças a Deus por encontrarmos Arthur vivo e conversando: a opinião de Merlin de que Morgana possuía poderes excepcionais era verdadeira. Ambos tiveram uma longa conversa que ele me resumiu apreensivo: Morgana lhe dissera que se a ferida tivesse sido feita por mão estranha Arthur escaparia, mas como fora feita por gente do seu sangue as chances eram remotas.

O romance medieval tinha uma visão irrealista
do Graal, pois sendo cálice de um carpinteiro
ele devia ser de madeira
           
     
A grande maioria dos soldados tratados por Morgana se recuperou rápido, mas após uma semana a febre de Arthur se elevou e ele começou a delirar, alternando momentos de lucidez com momentos de inconsciência. Desde que chegara, Merlin não saíra da sua cabeceira, aplicando toda a sua ciência médica no tratamento do sobrinho, porém no fim da segunda semana me chamou e disse: “Não há mais esperança; ele morrerá dentro de algumas horas; vamos rezar uma missa na sua presença e ministrar-lhe os últimos sacramentos”. Falou que não tinha condições emocionais de rezar o ofício e me pediu para fazê-lo. Senti-me honrado e o rezei em frente à cama do rei, que estava ladeado pelo tio, a esposa e a irmã acompanhada de algumas seguidoras. Quando pus na sua boca a sagrada hóstia ele saiu do torpor e tomou das minhas mãos o cálice de ouro reluzente exclamando: O Graal! O Santo Graal! Eu finalmente o encontrei!

Apertou o cálice contra o peito e morreu.







domingo, 22 de maio de 2011

Post nº 39

O  MISTÉRIO  DO  TESOURO  DOS  CAVALEIROS
TEMPLÁRIOS


O paradeiro do tesouro dos Cavaleiros Templários tem sido alvo de minuciosas
buscas nos últimos setecentos anos, mas até hoje nada foi encontrado

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Um dos grandes mistérios da História é o do Tesouro dos Cavaleiros Templários, pois é certo que ele existia, mas não se sabe nada sobre o seu destino. As hipóteses são muitas e aqui examinaremos algumas, mas temos nossa própria teoria, a qual até agora não vimos ser apresentada por ninguém. Ao final a apresentaremos, mas antes recapitulemos os fatos.
             
Na madrugada da sexta-feira 13 de outubro de 1307 (a fama de dia aziago da sexta-feira 13 vem daí) o rei Felipe IV da França desfechou golpe devastador contra a poderosa Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém que tinha a sua sede em Paris e filiais espalhadas por todo o mundo cristão. Ela fora uma estranha novidade na época da sua criação porque era uma Ordem Religiosa formada por monges que ao invés de viverem reclusos rezando nos mosteiros viviam nos campos de batalha lutando contra os muçulmanos. Geralmente eram jovens nobres fanaticamente religiosos, treinadíssimos nas artes marciais e habilíssimos cavaleiros, cujos esquadrões couraçados pesadamente armados equivaliam aos modernos batalhões blindados, capazes de destroçar exércitos inteiros. Este misto de monge fanático e guerreiro temível infundia o mais completo terror ao inimigo e fez dos Cavaleiros Templários a espinha dorsal dos exércitos cruzados.
 

A Ordem fora criada apenas para defender os lugares santos,
mas ficara riquíssima. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
             
O seu objetivo fora defender o Santo Sepulcro e manter o Reino Cristão da Palestina, mas com o fim deste e a reconquista de Jerusalém pelos muçulmanos os fracassos das tentativas de retomá-la diminuíram o prestígio da Ordem, que se viu finalmente obrigada a abandonar o Oriente e mudar sua sede para a cidade de Paris. Todavia, ao longo de dois séculos de lutas, montara extraordinária estrutura logística que lhe permitira acumular enorme riqueza e experiência comercial, tornando-se a primeira empresa multinacional da História. Possuía grande esquadra e entrepostos comerciais nas cidades e portos mais importantes da Europa, não só da costa Mediterrânea, mas também da costa Atlântica, tornando-se banqueiro da Igreja e dos príncipes europeus de relevo. Isto resultou na substituição das suas antigas virtudes religiosas e militares pelos vícios da  pompa e da arrogância, que sempre andam juntos com a riqueza e o poder.

Aos poucos a sua imensa popularidade foi virando intensa antipatia, criada por seus defeitos e fomentada por seus devedores, entre os quais estavam príncipes estroinas aliados a inimigos invejosos, sobretudo bispos despeitados por não terem jurisdição sobre os monges guerreiros e serem eles muito mais ricos, poderosos e prestigiados. Mas o pior de tudo era que sua riqueza provocava não só inveja, mas também boatos no meio do povo de que eles lidavam com as "ciências ocultas" e tinham aprendido a fabricar ouro com os "diabólicos" sábios do Oriente. Numa época de intenso fanatismo e enorme ignorância, isso era visto como feitiçaria e mais que suficiente para mandar qualquer cientista ou pesquisador à fogueira.
 

Achava-se que os templários tinham aprendido a ciência da Alquimia no Oriente
e fabricavam ouro em seus mosteiros. Tela de Joseph Wright (séc. XVIII)
         
Em 1307 a tensão entre a riquíssima Ordem Templária e o poderoso Rei da França chegou ao máximo e uma surda luta diplomática travou-se entre os dois junto ao Papa, único que sobre ela tinha jurisdição e a quem devia obediência. Felipe advogava a sua extinção sob o argumento de ser ela inútil e um insulto à autoridade dos Reis em cujos domínios operava, mas o Grão-Mestre Jacques de Molay defendia-se alegando ser ela útil à Igreja por ser o “Tesoureiro e o Exército do Papa”. A luta era tão secreta que dela ninguém, do mais humilde plebeu ao mais poderoso nobre, tinha a menor suspeita e só quem dela sabia eram os mais altos círculos da Igreja, do Reino e da Ordem. Impaciente com a demora do Papa, Felipe decidiu enfrentá-lo e destruir a Ordem com um golpe militar devastador, planejado em absoluto segredo e desfechado de surpresa, deixando a todos inertes e estupefatos.
  

O rei francês queria apoderar-se do imenso Tesouro da Ordem, mas
ao ocupar sua sede em Paris nada encontrou 
             
Já relatamos anteriormente o golpe contra os Templários, por isso nos ateremos apenas à questão do Tesouro Templário. Com todos os cavaleiros presos ou mortos e as suas fortalezas em poder das tropas reais, Felipe dirigiu-se ao Templo (nome como eram chamados os mosteiros da Ordem, sobretudo sua sede em Paris) e lá se apoderou de tudo que encontrou. Ninguém sabe o que foi achado porque ele e seus ministros jamais revelaram coisa alguma, mas logo surgiram boatos de que, afora registros de transações comerciais e propriedades imobiliárias, nada havia em ouro, prata, pedras preciosas ou jóias, que todos sabiam lá existir em quantidade. Isto talvez explicasse o seu tremendo mau-humor e fúria contra os Templários nos dias que se seguiram à sua arrasadora vitória, pois, ao invés de festejar com seus asseclas, se trancara com eles em intermináveis reuniões das quais sempre saía sério e aborrecido. A justificativa era que o Rei agora precisava “se explicar” ao Papa, mas isso não convenceu ninguém porque os problemas com a Igreja, que inevitavelmente se seguiriam ao golpe, já deviam ter sido prévia e cuidadosamente avaliados pelo Rei astuto e implacável. Portanto, uma pergunta formigava na cabeça de todos: onde está o Tesouro dos Templários?
           
Decorridos setecentos anos a pergunta continua sem resposta. Uns dizem que Felipe realmente o achou e o gastou pagando as suas dívidas, mas como tal pagamento pode ser explicado pelos imóveis confiscados a hipótese não parece válida. Ademais, não houve aumento no luxo da Corte ou no progresso do Reino, o que mostra que nenhum montante significativo lhe veio às mãos de imediato. Outros dizem que as reservas sonantes da Ordem estavam espalhadas por suas comendas em cidades portuárias do Mediterrâneo e do norte da Europa, onde suas grandes operações comerciais e financeiras eram feitas. Os cavaleiros administradores as teriam embolsado e fugido para lugares distantes onde não poderiam ser reconhecidos e lá vivido confortavelmente o resto dos seus dias. É uma boa hipótese, mas nenhum desses cavaleiros jamais foi encontrado e não há notícia de comenda templária sendo fechada à socapa e seus encarregados fugindo disfarçados no meio da noite. O que se sabe é que os fugitivos ou foram para Portugal, onde obtiveram asilo e proteção, ou se abrigaram nas Ordens dos Cavaleiros Teutônicos e dos Cavaleiros Hospitalários. Foram raros os fugitivos de cujo destino nunca se soube.
 

Castelo de Gisors na França onde muitos acham terem os Templários escondido
o tesouro em uma câmara secreta dos seus subterrâneos
           
A história que virou instigante lenda é a seguinte: desconfiado da timidez do Papa Clemente V e ciente da desesperada situação financeira de Felipe, o Grão Mestre Jacques de Molay suspeitara de que o Rei poderia cometer um ato de extrema violência contra a Ordem, tal como aconteceu; por isso cuidara de remover o Tesouro para lugar seguro e o fizera pouco antes do golpe. Esta hipótese é confirmada pelo depoimento do Cavaleiro Templário Jean de Chalon do Templo de Nemours, diocese de Troyes, prestado em junho de 1308 e conservado no Vaticano. Segundo ele, três carroças cheias de palha e cobertas com toldos deixaram o Templo de Paris ao cair da noite do dia 12 de outubro de 1307, véspera do golpe, e se dirigiram ao oeste em direção ao mar a fim de serem embarcadas em uma frota templária. Diz ele que a frota recebera ordens de Jacques de Molay para ficar ancorada na foz do Rio Sena até receber o carregamento e depois partir para o estrangeiro. Declara ainda que as carroças partiram sob o comando do cavaleiro Gérard de Villiers, mas não sabia para onde a frota navegaria após receber o seu carregamento. Afirma também que as carroças nunca chegaram e os navios levantaram âncora sem a preciosa carga!
           
É aí que nasce a lenda. De acordo com ela as carroças já estavam na Normandia quando seus disfarçados condutores souberam do golpe e puseram em ação o “Plano B”, enveredando por estrada secundária e dirigindo-se a um abrigo seguro. Este abrigo seria o Castelo de Gisors, fortaleza dos Templários por eles mesmos construída e certamente ainda não ocupada pelas tropas reais devido à sua localização remota e pouca importância militar-comercial. Por isso ela era usada mais como retiro para cavaleiros idosos e doentes do que como quartel e base de operações. O tesouro teria sido levado para uma capela subterrânea secreta e lá permanece até hoje.
           
A lenda tem dado causa a inúmeras expedições arqueológicas profissionais e amadoras, escavando os mais recônditos lugares do Castelo de todas as formas possíveis e imagináveis, mas nenhuma capela subterrânea secreta foi encontrada. Há indicações de que o próprio Rei Felipe, informado na época do depoimento de Jean de Chalon,  ordenara buscas no local, mas disso não há qualquer confirmação. O mais provável é que o tesouro tenha sido realmente embarcado para algum país estrangeiro e o Rei tenha se resignado ao seu fracasso, amenizando-o com as horríveis torturas e execuções que durante anos infligiu aos infelizes Cavaleiros que tiveram a desdita de caírem em suas garras. É isso que nos leva à nossa própria teoria.


Alguns acham que os Templários conheciam a sabedoria do antigo Egito
e seus pergaminhos estariam em câmaras secretas como esta
             
Achamos que Jacques de Molay não previra que a ousadia de Felipe chegaria ao ponto de prender, torturar e executar os cavaleiros, apoderando-se de seus quartéis e propriedades, mas previra que ele poderia forjar um incidente para ocupar o Templo de Paris e, como refinado patife que era, apoderar-se do dinheiro lá existente. Depois de lhe dar sumiço, diria ao Papa que a ocupação fora um engano, botaria a culpa em algum ministro, negaria ter se apoderado do Tesouro e seria a palavra dele contra a dos templários. Por isso De Molay, avisado de que algo grave se preparava, cuidou de mandar o Tesouro para Portugal, cujo ilustre Rei Diniz, guerreiro e poeta a quem o povo chamava Diniz o Trovador, era fiel amigo dos Templários. A cultura, integridade, sabedoria e justiça de Diniz eram conhecidas e valorizadas por todos e acreditamos que os dois tenham se acertado previamente. Diniz não decepcionou, pois protestou duramente junto ao Papa contra a vilania de Felipe e deu asilo e proteção aos cavaleiros que chegaram fugitivos ao seu reino.
       
Em Portugal a Ordem continuou a funcionar normalmente enquanto não extinta pelo Papa Clemente V em 1312, e permaneceu funcionando depois sob o nome de Ordem dos Cavaleiros de Cristo. Os cavaleiros de uma tornaram-se cavaleiros da outra e tudo permaneceu igual, exceto o nome. Nem mesmo a sua sede em Tomar mudou, e o seu imponente Castelo lá está até hoje como orgão público e sede simbólica da antiga Ordem. 
  

Se o tesouro existe, é mais provável estar escondido em uma câmara secreta do castelo
de Tomar em Portugal do que do castelo de Gisors na França
            
Três circunstâncias fortalecem a tese de que o Tesouro dos Templários foi mandado para Portugal. A primeira é que na Península Ibérica estavam dois terços dos castelos europeus da Ordem, pois exceto na França a sua presença militar era inexpressiva em outros países, onde possuía apenas comendas não fortificadas. Nas ilhas britânicas a sua presença era simbólica na Irlanda e na Escócia e seu único estabelecimento de relevo na Inglaterra era a sua grande loja em Londres, dedicada mais a atividades religiosas e comerciais do que a atividades militares. Na Alemanha e na Escandinávia ela era eclipsada pela Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. Do mesmo modo que na Inglaterra, as suas lojas no Reno e no Mar do Norte também se dedicavam principalmente à atividades religiosas e comerciais. A segunda circunstância importante é que na Península Ibérica existia o único Reino Muçulmano da Europa Ocidental, com o qual os príncipes cristãos da Península estavam sempre em guerra, fazendo com que o grosso dos efetivos combatentes da Ordem estivesse lá. A terceira e última circunstância de peso é que Portugal, proporcionalmente ao seu tamanho e população, não só possuía o maior número de Castelos Templários do continente como, ao contrário do que ocorria na França, tinha na Ordem uma poderosa aliada no fortalecimento da sua monarquia, a qual contara com a valiosa ajuda dos cavaleiros para expulsar os muçulmanos e unificar o país. Assim, a Ordem tinha no rei português dedicado amigo e aliado da mais absoluta confiança, não sendo de estranhar ela lhe confiar a guarda do seu Tesouro em momento de grande perigo e incerteza política.
 

A chegada ao porto de Lisboa de frota Templária após o golpe aumenta
a suspeita de que o tesouro da Ordem foi levado para Portugal 
            
Foi a partir da fuga dos Templários para Portugal que a prosperidade do país começou. Em 1308, pouco depois do golpe e da chegada dos navios da frota templária a Lisboa, Diniz fundou a Universidade de Coimbra, que viria a ser uma das maiores da Europa medieval, plantou vastos pinheirais para construir navios, edificou grandes estaleiros e criou a Marinha Portuguesa, que em um século se tornaria a maior da Europa e daria início às grandes navegações que mudariam a face do mundo. Curiosamente, o autor do plano de expansão marítima de Portugal foi o príncipe Henrique, chamado “O Navegador”, que era o Chanceler de direito e Grão-Mestre de fato da Ordem dos Cavaleiros de Cristo, nome sob o qual os Templários continuaram a operar em Portugal. Portanto, a pergunta que se impõe é: sendo Portugal um pequeno e pobre país, de onde veio o dinheiro para os grandes feitos administrativos e estratégicos do ilustre Rei Diniz e seus sucessores? Acreditamos que a resposta só pode ser uma: o dinheiro veio do Tesouro que os agradecidos Cavaleiros Templários puseram à disposição do bravo e progressista monarca que tão generosamente os acolhera e protegera! Tudo o mais que hoje se fala sobre o assunto são apenas imaginosas tramas de boas novelas policiais, destinadas a atender o gosto de vasto público por histórias de aventura e mistério.


Nota: o Rei Diniz (1261-1325) foi não só o maior rei da História de Portugal como também o mais culto e progressista monarca europeu do seu tempo. Foi educado por doutores da Universidade de Paris e, além de possuir vasta erudição histórica, científica e literária, era ele próprio excelente poeta, tendo mandado publicar uma coletânea dos melhores poemas que circulavam oralmente em seu país. A coletânea ficou conhecida como Cancioneiro D'el Rey Dom Diniz e o refinado estilo de vários dos poemas  indicam terem eles um mesmo autor, possivelmente o próprio rei, que por isso recebeu do seu povo o carinhoso apelido de Diniz o Trovador. Caso isto se confirme, poder-se-a dizer ter sido ele o criador do Português como língua culta independente.



terça-feira, 17 de maio de 2011

Post nº 38

O  ASSASSINATO  DO  GENERAL  STILICON,
ÚLTIMO  DEFENSOR  DE  ROMA  CONTRA
AS  INVASÕES  GÓTICAS  


Stilicon, penúltimo grande general romano. Depois só haveria Aécio.
Este é o único retrato de corpo inteiro que temos dele.

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             O general Flávio Aécio conta ao seu amigo Ambrosius Aurelianus, governador da Britannia, como ocorreu o traiçoeiro assassinato do general Stilicon, um dos mais brilhantes comandantes militares da história do Império Romano. Leiamos:

           
Em 408 o general Stilicon, primeiro ministro do Império e comandante do Exército, foi assassinado numa absurda intriga palaciana e perdemos o nosso mais competente estadista e chefe militar. Seu assassinato ocorreu do modo mais sórdido que se possa imaginar!  Ele passava a maior parte do tempo ausente da Corte, lutando no campo de batalha contra hordas bárbaras invasoras ou fazendo alianças políticas e militares que o ajudavam na sua árdua tarefa. Por isso não percebera que em torno do imbecil imperador Honório ia aos poucos tomando forma uma sinistra conspiração de aduladores e generais burocratas, covardes que fugiam dos combates como o diabo foge da cruz.

Em 402 ele se desentendera com Alarico, rei dos Visigodos, e este deixara os acampamentos onde estava provisoriamente instalado na Ilíria para invadir o nordeste da Itália. Stilicon o derrotou numa grande batalha, e ele voltou humilhado às suas bases com o seu povo infeliz, que vagava pela Europa em busca de um território para se estabelecer definitivamente. O Império enganara os Visigodos várias vezes com solenes promessas nunca cumpridas, o que fazia com que eles nos odiassem cada vez mais. De nada lhes valera serem um povo trabalhador e cristão, pois as traições que lhes fizéramos deviam-se ao fato deles serem da seita cristã ariana, tida como herética pelos cristãos católicos que dominavam a Itália e a Corte Imperial.

Stilicon se esforçava por manter os godos quietos, não os perturbando em seus acampamentos na Ilíria e ordenando fossem bem tratadas as muitas famílias góticas estabelecidas na Itália. Também alistava jovens godos no exército e dava dinheiro a Alarico, não só porque ele lutara ao seu lado na batalha do rio Frígido em 394, mas porque queria evitar que o seu antigo aliado voltasse a fazer novas estripulias na Itália. Essa hábil política de apaziguamento fazia com que as suas relações com os godos não fossem de todo ruins, e poderiam até ter sido muito boas se não fosse pelas diferenças religiosas existentes entre os godos e os italianos.

Stilicon derrotou Radagásio numa série de batalhas memoráveis
                      até que finalmente destruiu seu exército e o executou

Dois anos depois da guerra com Alarico e quando os ânimos já tinham serenado bastante, Stilicon se viu diante de uma ameaça muito mais grave: o chefe bárbaro Radagásio organizara poderosa confederação de tribos germânicas e destruíra as guarnições romanas do Rio Danúbio! Depois viera para o oeste e devastara a Gália oriental.

Mas ao invés de submeter toda a Gália, Radagásio sentiu-se encorajado pelas fáceis vitórias até então obtidas contra poucas e fracas legiões imperiais,  cruzou os Alpes e assolou o noroeste da Itália achando que estávamos muito enfraquecidos. Foi um engano fatal, pois Stilicon preparara-se com esmero e enfrentou o seu exército muito mais numeroso perto de Milão, rechaçando-o e forçando-o a marchar para o sul onde poderia minar o seu poderio e enfrentá-lo melhor. Depois o derrotou numa série de batalhas memoráveis, empurrando-o de volta ao norte numa campanha de desgaste. Por fim, o cercou nas imediações do lago Como, quase no sopé dos Alpes, massacrou o que restava do seu exército, o aprisionou e o executou como exemplo aos outros chefes bárbaros que planejavam invadir o Império.


Ao contrário de Radagásio, os civilizados visigodos
                            de Alarico tinham bom diálogo com Stilicon

A fama e o prestígio de Stilicon subiram às alturas, mas, curiosamente, suas grandes vitórias foram a causa principal da sua queda, pois a inveja dos generais palacianos atingiu níveis altíssimos e a conspiração ficou cada vez mais perigosa. Para completar, as recentes batalhas tinham deixado o Exército muito enfraquecido e Stilicon voltara-se para o único povo guerreiro que estava logo ali na Ilíria e poderia lhe prestar substancial ajuda: os Visigodos! Apesar da desavença que ele tivera com Alarico, ambos já tinham sido aliados no passado e Stilicon, mesmo depois de tê-lo derrotado e obrigado a voltar aos seus acampamentos na Ilíria, mantivera aberto um canal de comunicação entre os dois. Por isso começaram a negociar secretamente nova aliança, mas a coisa transpirou e houve enorme escândalo porque, devido às constantes estripulias dos bárbaros no território italiano, o ódio contra eles era imenso e o povo era incapaz de entender as altas considerações de ordem política, militar e estratégica que levavam Stilicon a buscá-los como aliados. A pergunta que todos se faziam era: “se ele os derrotou, por que precisa do seu apoio”? Para muitos, o general se tornara renegado e traidor.

No final, foi o excesso de confiança em seu ex-tutelado e genro, o imbecil imperador Honório, que o arruinou. Inconsciente do perigo que o cercava, Stilicon deixava as suas tropas em seus quartéis de campanha e dirigia-se a Ravena com uma pequena escolta, pois tinha absoluta confiança nos oficiais e soldados da guarda imperial, péssimos para combater, mas ótimos para conspirar e assassinar.
           
Ele estava em casa quando foi informado de que a guarda se revoltara e o imperador o mandara prender. Aturdido, o general fugiu às pressas antes que os soldados chegassem e, impossibilitado de pedir socorro ao seu exército acampado distante, refugiou-se em uma igreja. Depois de muita negociação, Honório lhe prometeu imunidade caso deixasse o santuário, dizendo que lhe seria permitido viver pacatamente o resto dos seus dias em suas vastas propriedades rurais. Confiante na palavra do seu ex-tutelado, ele saiu da igreja onde se refugiara, mas foi preso e degolado ainda nas suas escadarias. Na ocasião seu filho Euquério, noivo de Placídia, fugiu para Roma, onde pouco depois foi preso e executado. Temerosa de que a intenção dos conspiradores fosse eliminar toda a família, Serena se refugiou em um mosteiro e depois se exilou em Roma com o que dela restara.


Honório era imbecil e é difícil entender por que
                         Stilicon o deixou governar o Império

Um dos fatos intrigantes na época foi o procedimento de Placídia, irmã caçula de Honório que morava na casa de Stilicon: ela aproveitou-se da confusão e fugiu para junto do irmão no palácio imperial ao invés de ficar com a família que a acolhera durante anos! Houve mesmo um boato dizendo que ela não erguera um dedo em defesa do seu tutor ou da infeliz família que a criara.

A versão dos conspiradores para justificar a abominável atrocidade foi a de que o ex-ministro estaria preparando um golpe de estado devido à incompetência e maluquice de Honório. Isto é pura balela, pois se Stilicon quisesse tomar o trono telo-ia tomado quando Honório era ainda menor e já mostrava sinais de idiotia. Teria sido fácil fazê-lo, pois na época ele detinha todos os poderes do Estado e era muito popular no exército, bastando uma ordem sua para que a coroa lhe fosse entregue de bandeja! Também se disse que ele queria forçar o casamento de Placídia com Euquério para colocar este no lugar de Honório no trono do Ocidente ou de Teodósio II no trono do Oriente, mas isto seria de todo ilógico e só pode ser atribuído à ânsia dos criminosos em quererem justificar o injustificável.

A verdade, segundo os doutos, parece ser muito mais simples. Stilicon, a quem Teodósio pouco antes de morrer nomeara Regente do Império durante a menoridade do seu herdeiro Honório, fazendo-o também tutor do garoto e da sua filha caçula Placídia, acumulara enormes riquezas durante a Regência e fizera muitos inimigos devido a sua avidez. Tornara-se duro e orgulhoso, agindo como se fosse o imperador mesmo depois do seu pupilo ser coroado. Embora fosse um bobo, Honório ficara ressentido com a arrogância do seu ex-tutor, e nem mesmo os idiotas gostam de receber ordens de quem lhes é inferior. Stilicon, apesar de ser ainda militarmente forte, também perdera apoio no Exército depois que recrutara milhares de mercenários bárbaros e adotara vários dos seus costumes, armamentos e uniformes para agradá-los. Devido à sua impopularidade, foi fácil aos seus inimigos conspirarem e obterem o sinal verde do imperador para o golpe e a subseqüente tragédia. Estas foram as razões da sua queda segundo os entendidos em política.

Porém anos depois eu soube de outra versão através de um amigo muito bem informado sobre o que se passava na intimidade da família imperial. O imperador Teodósio tinha enorme apreço por Stilicon, não só pelo seu talento militar e lealdade política, mas também porque o tinha como membro da família imperial por ser casado com a princesa Serena, sobrinha a quem o imperador amava como filha. A principal razão para nomeá-lo também tutor de Placídia fora, portanto, o fato de haver parentesco de sangue entre a menina e a sua sobrinha, esposa do seu valoroso general.

Serena, sobrinha de Teodósio e esposa de Stilicon, criou os primos
                          órfãos Honório e Placídia pelos quais foi traída 

Sendo muito rígida, a princesa Serena criara a pequena prima órfã na mesma disciplina das filhas, e quando Placídia ficou moça quis casá-la com o seu filho Euquério sem mais demoras, pois ambos estavam prometidos um ao outro desde crianças. Placídia rejeitara cumprir o ajustado pelos pais e ocorrera grave discussão entre as duas, no curso da qual Serena a esbofeteara, fazendo-a queixar-se a Stilicon. Mas este ficara ao lado da esposa e a orgulhosa princesinha tivera que engolir a afronta; quando a oportunidade da vingança apareceu, ela não perdeu tempo: fugiu para junto do irmão e lá o aconselhou a quebrar a imunidade concedida ao ministro deposto.

Vingada do antigo tutor que dela fizera pouco caso, faltava vingar-se da prima que a criara e a insultara. A oportunidade veio no ano seguinte, quando os Visigodos cercaram Roma, onde Serena vivia exilada. Um grupo de senadores ligados a Honório foi instigado por Placídia a acusá-la de manter negociações secretas com Alarico, tal como fizera antes o seu marido Stilicon e o seu filho Euquério. Verdade ou calúnia, Serena foi presa, torturada e executada!

Placídia, depois rainha dos Visigodos e imperatriz-regente de Roma, traiu
             sua prima e mãe adotiva Serena, prendendo-a e executando-a

Olhando para o teto, Aécio concluiu com tristeza o relato do sórdido episódio: "Segundo esta abominável versão, Placídia seria a verdadeira culpada pela traiçoeira morte de Stilicon, para a qual havia razões políticas e militares, e a insensata morte de Serena, para a qual não havia razão alguma. Certa vez a questionei e ela se recusou indignada a tocar no assunto, mas conhecendo-a como a conheço hoje penso que esta cruel explicação dos fatos pode ser verdadeira, pois muitas coisas terríveis, cujas causas atribuímos a altas razões de estado, não passam de fruto podre de abjetas mesquinharias pessoais".        

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Post nº 37

UTHER  -  "O  SENHOR  DOS  DRAGÕES"  DERROTA  O  GENERAL  CORNELIUS

O príncipe Uther, apelidado "O Senhor dos Dragões" e pai do rei Arthur,
marcha contra o general romano Cornelius

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Eis como o frade Gildasius Pisanensis relata em seu manuscrito do século VI recentemente descoberto a vitória do príncipe celta Uther sobre o general romano Cornelius:
   
Ao entardecer, Uther foi com seu estado maior para um posto de observação escondido no alto de uma colina e de lá viram a chegada das tropas do general Cornelius, que logo montaram seu acampamento no vale abaixo. Traçaram um cuidadoso diagrama do mesmo e ao cair da noite voltaram para junto dos seus guerreiros. De madrugada, ocuparam no sopé das colinas ao redor do inimigo adormecido as posições que lhes tinham sido predeterminadas e quando surgiram os primeiros clarões do sol as sentinelas de Cornelius viram por entre a neblina os vultos espectrais de milhares de cavaleiros nas elevações em torno deles. Imediatamente deram o alarme e os legionários correram para seus postos de batalha, pondo-se sob o comando dos seus respectivos oficiais. Atordoados pelo barulho dos clarins e pela agitação dos soldados correndo de um lado para o outro, Cornelius e os seus nobres oficiais, que nunca tinham visto coisa semelhante, estavam confusos sem saber o que fazer. Quando a neblina se desfez e o sol brilhou com esplendor, viram que estavam cercados por milhares de cavaleiros usando capacetes com chifres e portando vistosas bandeiras com aterrorizantes figuras de dragões.
           
Apesar da afobação reinante entre o inimigo, os cavaleiros permaneciam imóveis e silenciosos com seus arcos ameaçadoramente nas mãos, prontos para dispararem uma chuva de flechas sobre as tropas cercadas. “Tragam aqui o tribuno Percival, gritou histérico Cornelius para os guardas na frente da sua tenda. Alguns minutos depois o oficial chegou e o general lhe perguntou em desespero: “Você pode  me dizer que diabo está acontecendo”? Percival olhou com desprezo a súcia de nobres aterrorizados que cercava o general e lhe disse com frieza: “Os guias fugiram durante a noite e tudo indica que fomos deliberadamente trazidos a uma emboscada. Estamos cercados por cerca de três mil cavaleiros e se reagirmos seremos todos mortos, pois da posição elevada onde se encontram poderão atirar contra nós quinze mil flechas por minuto e morreremos sem sequer combater. Seremos abatidos como patos nadando na lagoa”!

“Traição, traição”, gritou Cornelius, “fomos traídos pelo bandido Aureliano! O que mais se poderia esperar de um lacaio de Aécio? A mensagem! Cadê a mensagem dele”?  Depois de procurá-la freneticamente e achá-la, rasgou-a furioso e pisoteou os pedaços enquanto gritava: “Mentira! Tudo mentira! Não há tesouro algum! Foi tudo um ardil para me trazer aqui e matar-me”! Virou-se para o experiente tribuno e lhe perguntou suplicante: “O que devo fazer, Percival”?

Enquanto Uther almoça os romanos ao sul,  Arthur janta os scots ao norte da Britannia.
Desenhos de Luciano Felix para a quadrinização de "O Senhor dos Dragões"

           
Tão friamente quanto antes ele respondeu: "Render-se antes que seja tarde; se quisessem nos matar já o teriam feito, mas permanecem imóveis; por isso penso que esperam nosso comandante apresentar-se para negociar". Cornelius viu que tinha uma chance de sobreviver: "É isso! Certamente querem nos aprisionar para exigir resgate"! E virando-se para sua corja falou aliviado: "Felizmente somos ricos o bastante para pagar"! No seu arrogante egoísmo falou aos comparsas sem se dar conta de que este não era o caso de Percival e dos outros oficiais plebeus, mas o tribuno continuou frio e lhe disse: "Não percamos mais tempo general; assuma o comando das tropas e esperemos o ultimato"! O acovardado comandante sequer percebeu que estava recebendo ordens do seu subordinado e montou a cavalo esperançoso, no que foi seguido pelos demais. Percival os conduziu para um local de onde se via numa elevação a cerca de duzentos metros cavaleiro de capa vermelha que parecia ser o líder, pois estava ladeado por grupo compacto de cavaleiros com capa cinzenta, sugerindo tratar-se do seu estado maior. Quando Cornelius se pôs à frente dos seus oficiais, um cavaleiro deixou o lado oposto e veio galopando com uma bandeira branca até ele, ao qual falou em bom latim: "O meu senhor ordena que você compareça à sua presença; se recusar, nós o mataremos e a todos os seus homens sem piedade"! O comandante não parava de tremer e só se moveu quando Percival ordenou-lhe com voz firme: "Vamos logo general, antes que eles percam a paciência"!
           
Ambos seguiram Kay e quando chegaram diante de Uther este disse rispidamente a Cornelius: "Você é o patife que veio saquear a Britannia, mas caso queira sair daqui com vida terá de fazer tudo o que eu mandar. Se seguir à risca minhas instruções eu o libertarei em troca de um bom resgate"! Em seguida disse-lhe em detalhe tudo que deveria fazer e passou-lhe um papel ordenando: "Consulte-o se tiver alguma dúvida; as instruções estão todas aí; você e seus comparsas morrerão imediatamente se cometerem algum erro"! O covarde general viu que sobreviveria e alegrou-se, respondendo sabujamente: "Suas instruções serão cumpridas ao pé da letra meu senhor"! Uther cuspiu para o lado e ordenou: "Então vá logo fazer o que eu mandei"!

Ele voltou, ordenou que os legionários entregassem suas montarias e se enfileirassem por ordem de graduação: os tribunos e os centuriões na frente, seguidos dos oficiais inferiores e soldados rasos, e finalmente os burocratas civis. Foram todos levados a local onde lhes tomaram as couraças e as armas, mas lhes deixaram as insígnias dos seus postos; depois foram acorrentados e levados a outros locais em grupos separados, na mesma ordem hierárquica da fila. Cornelius foi o primeiro a ser despojado, mas ficou livre de correntes e conservou o cavalo para comandar o desarmamento e aprisionamento dos seus homens. Nesta operação demonstrou toda a baixeza do seu caráter, pois, certo de que seria bem tratado e libertado mediante resgate se cumprisse bem a abjeta tarefa, desdobrou-se no seu fiel cumprimento, galopando de um lado para o outro e dando ordens aos soldados e oficiais inferiores como se fosse um general vitorioso: "rápido seus preguiçosos!", “mexam-se cambada de inúteis!", “não tenho o dia inteiro a perder com gentalha como vocês!" e assim por diante, enquanto os captores permaneciam imóveis nos seus cavalos assistindo silenciosamente o sórdido espetáculo. Salvo para dar ordem a algum auxiliar, que logo se afastava para cumpri-la, Uther mantinha-se atento e silencioso, olhando Cornelius como o gato olha o rato antes de dar o bote.


O rato Cornelius ainda não sabe, mas já é almoço do infernal gato-dragão Uther.
Quadrinização de "O Senhor dos Dragões" por Luciano Felix

     
O sol estava no meio do céu quando a operação de aprisionamento terminou e Cornelius galopou até Uther para lhe dizer orgulhosamente, com a sensação do dever cumprido: "Pronto meu senhor, suas ordens foram fielmente executadas"! Pela primeira vez naquele dia Uther sorriu e respondeu com ironia: "Parabéns; você mostrou ser um grande general e possuir completo domínio sobre os seus homens, comandando-os de forma perfeita"! Cornelius fingiu não entender a ironia e respondeu servilmente: "Obrigado meu senhor; procuro cumprir meu dever da melhor maneira possível; graças a Deus tudo correu bem e terminou sem qualquer derramamento de sangue"!
            
Uther limitou-se a responder: "Até agora"! E num movimento rápido atirou seu punhal bem no coração do sorridente general. Este fez uma careta de assombro e escorregou devagar do cavalo, indo ao chão sob os olhares atônitos dos milhares de homens que observavam a cena.  Até mesmo Kay se surpreendeu, apesar de saber que no final Cornelius seria executado, mas não esperava que acontecesse de forma tão inusitada. Por isso ficou assistindo de boca aberta enquanto Uther apeava, sacava da espada e erguendo a cabeça do general pelos cabelos a decepava com um só golpe! Em seguida mandou que um dos guardas a espetasse em uma lança e galopou pelo campo exibindo-a aos guerreiros que o aplaudiam delirantemente.

O Senhor dos Dragões fazia jus à sua fama!