terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Post nº 55

SALADINO  -  O  MAIS  CAVALHEIRESCO   PRÍNCIPE  GUERREIRO  DA
 IDADE  MÉDIA
            
O sultão Saladino à frente das suas tropas - Cena do filme "Kingdom of Heaven"  (Cruzada)



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Salah Al Dihn (Saladino) nasceu no Kurdistão na primeira metade do século XII e ainda jovem foi servir como soldado na corte do Sultão de Damasco, Nurah Al Dihn (Nuraldin), onde o seu pai Ayub ocupava alta posição. Graças ao prestígio da sua família, logo chegou ao oficialato e seus talentos políticos e guerreiros o tornaram popular general em pouco tempo. Ao contrário do mundo cristão ocidental, onde o Papa centralizava o poder espiritual e o Sagrado Imperador Romano exercia a primazia política, o mundo muçulmano era fragmentado em vários Califados e Sultanatos. Os principais Califas, supremas autoridades religiosas, eram os de Córdoba na Espanha, Cairo no Egito, e Bagdá no então território do Império Persa. Por sua vez, os principais sultanatos eram os da Espanha, Pérsia e Síria. Dos três grandes, este era o mais fraco, porque meio século antes perdera para os cristãos católicos da I Cruzada a importante província da Palestina, onde estava situada Jerusalém, uma das mais sagradas cidades do Islã.

Após um dos piores massacres de muçulmanos, judeus e cristãos ortodoxos da história, os cruzados a fizeram capital do seu reino na Terra Santa e, para suprema humilhação do Islã e das outras religiões, não só proibiram os seus cultos, mas também transformaram a igreja ortodoxa-grega do Santo Sepulcro em igreja católica-romana e profanaram a majestosa mesquita de Al Akhsa (Mesquita da Rocha), erguida onde se supunha ter Maomé subido ao Céu, fazendo dela igualmente templo católico-romano. Porém isto até que foi bom, pois preservou o magnífico edifício, já que o primeiro impulso dos cruzados fora destruí-lo.

A chegada dos cruzados a Jerusalém em 1099 resultou em terrível banho
de sangue. Quadro de Francesco Hayez (séc. XIX)

O lamentável fato era um espinho atravessado na garganta dos muçulmanos e uma afronta direta ao sultanato de Damasco, que perdera Jerusalém por incompetência e não conseguira reconquistá-la. Com o passar do tempo, a Palestina se tornara um poderoso reino cristão ligado à Igreja Católica Romana (a Igreja Ortodoxa Grega, com sede em Constantinopla, não apoiou as Cruzadas) e agora ia muito além dos seus antigos limites, abarcando vastos territórios dos atuais Líbano e Síria, onde os cruzados ergueram majestosas fortalezas.

Nos anos 1130 e início dos anos 1140, os muçulmanos desfecharam grandes ofensivas contra os conquistadores cristãos católicos e obtiveram significativas vitórias, chegando a ameaçar o Reino de Jerusalém, mas foram contidos pela II Cruzada pregada por São Bernardo de Claraval e comandada pelo rei Luis VII de França. Este, acompanhado da mulher Eleanor da Aquitânia, fez brilhante campanha até ser derrotado pelo sultão Nuraldin em 1149 e ver-se obrigado a regressar a França, encerrando assim a II Cruzada.

Louis VII e Eleanor D'Aquitaine são recebidos em Antióquia pelo conde Raymond de Poitiers
na II Cruzada. Tela de Jeam Colombe e Sebastien Mermerot (séc. XIV) 

Mas, bem vistas as coisas, a II Cruzada não foi um total fracasso apesar da sua derrota no campo de batalha, pois as grandes perdas infligidas aos muçulmanos os enfraqueceu, obrigando-os a encerrarem a vigorosa campanha desfechada alguns anos antes por Nuraldin visando a reconquista de Jerusalém. Em consequência das vultosas perdas, a cidade sagrada ficaria em mãos ocidentais ainda por várias décadas, até que Saladino finalmente a retomasse. Enquanto isso não ocorresse, o sultanato de Damasco, presuntivo senhor da região, gozaria de pouco prestígio e enfrentaria sérios conflitos internos, sobretudo no Egito, pois o novo Califa do Cairo ansiava por criar um Sultanato que lhe seguisse às ordens em seu país, sem qualquer ligação com a desmoralizada Damasco. Uma grande rebelião fora duramente reprimida e só o terror mantinha o Egito submisso à autoridade do odiado emir que governava a província.

A conquista de Jerusalém pelos cruzados em 1099 desmoralizara e enfraquecera o
sultanato de Damasco. Quadro de Claude Jacquand (séc. XIX)
         
Ciente de que a qualquer momento poderia explodir nova rebelião, o sultão resolveu substituí-lo por um outro mais hábil que pudesse relacionar-se bem com o Califa e apaziguar os ânimos exaltados. A escolha recaiu em Saladino e ele não decepcionou: em pouco tempo tornou-se amigo do Califa e querido do povo, a ponto de começarem a falar dele como novo sultão do Egito. Isto enfureceu Damasco, que tentou removê-lo chamando-o de volta para “consultas”, mas na verdade para assassiná-lo. A essa altura ele já tinha bom serviço de informações que o punha a par de tudo e esquivou-se habilmente, inventando “problemas” que o impediam de viajar. Ao mesmo tempo mandava relatórios acompanhados de valiosos presentes, ótimos tributos e ardentes juras de lealdade.

Bom administrador, Saladino incentivava o comércio, mas cruzados salteadores, como o barão Reynaud de
Chatillon, roubavam e matavam os mercadores. Quadro de David Roberts (séc. XIX)

Quando o velho sultão finalmente morreu, Saladino proclamou-se seu sucessor e tomou o poder, não sem antes enfrentar árduas lutas, traiçoeiras conspirações e tentativas de assassinato. Após reorganizar o exército, a administração e as finanças do vasto, porém anarquizado e enfraquecido sultanato, ele sentiu-se firme no trono e partiu para implementar o seu grande projeto: a reconquista de Jerusalém!

O rei da Palestina era Balduíno IV, um homem decente cercado de barões cruéis e gananciosos que se preocupavam pouco com religião e muito com saques e exploração dos seus feudos. A rivalidade imperava e a desunião, que antes de Saladino era o ponto fraco dos muçulmanos, tornara-se o ponto fraco dos cruzados. Quando ele deu início à guerra de reconquista, Balduíno tentou negociar, mas a arrogância dos seus barões e dos cavaleiros das ordens religiosas combatentes, especialmente dos Templários, espinha dorsal do exército cruzado, foi mais forte e o obrigou à guerra. Com grande competência,  Balduíno mobilizou poderosas tropas e esmagou Saladino em 1177 na grande batalha de Montgisard.

O rei Balduíno de Jerusalém derrota o sultão Saladino de Damasco na grande batalha
de Montgisard (1177). Tela de Charles Phillipe Arivière (séc. XIX)

O exército de Saladino praticamente se desintegrou e ele voltou humilhado a Damasco para recomeçar do princípio. Aproveitando-se da desunião entre os adversários, pôs ordem em seus Estados, restaurou suas finanças, e só retomou a ofensiva após promover profunda reorganização do seu exército. Ao contrário da precipitação com que agira antes, muniu-se de paciência e, metodicamente, cuidou primeiro de eliminar todos os enclaves inimigos na Síria, para só retomar a ofensiva após ter a retaguarda segura e contar com todos os recursos necessários à grande empreitada.

Um a um eliminou os enclaves menores e, finalmente, atacou o grande castelo cruzado de Bahit Al Ahzan (Jacob's Ford Castle) em território hoje pertencente à Jordânia. A enorme fortaleza, considerada inexpugnável e situada numa posição de extraordinária importância estratégica próxima a Damasco, ficava numa íngreme elevação às margens do riacho Jacob e era defendida por aguerrida guarnição de oitocentos Cavaleiros Templários, mas Saladino a atacou  com inexcedível bravura e a tomou em 1179, antes que o exército mandado em seu socorro por Balduíno IV chegasse. A guerra movida pelos cruzados desconhecia a palavra "piedade", e Saladino decapitou todos os prisioneiros em represália aos inúmeros massacres de muçulmanos por eles feitos até então.

Os cruzados agiam com extremo fanatismo e crueldade, fazendo Saladino pagar-lhes na mesma moeda

A crueldade era uma constante de lado a lado e a confusão reinava entre os cruzados, pois quem mandava por trás do trono de Jerusalém era a princesa Sibila, irmã do rei enfermo e casada com o barão Guy de Luisignan, de quem vivia praticamente separada. A alta nobreza do reino de Jerusalém era toda francesa, ou de origem francesa, de sorte que a cultura, o direito e os costumes nele imperantes eram idênticos aos da França, nada tendo a ver com os seus correlatos da Ásia Menor, mesmo aqueles dos cristãos nativos. Estes pertenciam à Igreja Ortodoxa Grega e recusavam a autoridade do Papa, líder espiritual dos católicos, sendo por estes vistos como inimigos tão ou mais perigosos que os muçulmanos. Por isso os Cruzados, soldados do Papa, jogavam sobre os cristãos nativos a pecha de "heréticos" e os perseguiam duramente.

Na primeira cruzada houve horrível massacre de muçulmanos e judeus no monte do Templo onde eles tinham
se refugiado, gerando enorme ódio aos cruzados. Quadro de Francesco Hayez (séc. XIX)

O resultado dessa política fanática e intolerante era o enorme isolamento do Reino de Jerusalém, fruto exótico que sobrevivia em terra estranha devido tão somente à desunião dos muçulmanos e ao constante influxo de guerreiros, sacerdotes e aventureiros que chegavam todos os dias da Europa católica. Sem contar sequer com o apoio dos cristãos ortodoxos nativos, a corte de Balduíno e Sibila nada mais era que uma típica corte francesa, com todas as suas intrigas, torpezas e costumes dissolutos, perfeitamente naturais para os cristãos católicos, mas absolutamente escandalosos para os cristãos ortodoxos e a população local, os quais consideravam os "francos", como eram chamados os cruzados, a personificação da mais "diabólica indecência". Fato é que, para o bem ou para o mal nesse ambiente moralmente relaxado, Sibila exercia com mestria o seu papel de mulher poderosa e mantinha sob seu controle político os brutais nobres francos tanto quanto lhe era possível.

Sibila era prima de Ricardo Coração de Leão e governava Jerusalém por trás
do trono do seu irmão enfermo. Cena do filme "Kingdom of Heaven"

Apesar de hábil, valente e astuta, ela não tinha como se impor militarmente aos barões e aos cavaleiros das ordens guerreiras, seja porque não tinha competência militar, seja porque homens brutais não obedeceriam ao comando de uma mulher. Assim, contentava-se em exercer o poder político, flertando hora com um, hora com outro, para grande frustração do seu marido Guy de Lusignan, bravo guerreiro, mas pouco inteligente e de escassos méritos, que fazia de tudo para manter seu casamento de conveniência.

Enquanto isso, Saladino retomava a ofensiva e aos poucos ia conquistando um a um os castelos cruzados na Síria, buscando limpar o terreno em suas vizinhanças e garantir a sua retaguarda até sentir-se bastante forte para lançar-se sobre Jerusalém. Antes que estivesse completamente preparado, contentar-se-ia em manter o adversário em xeque e vigiaria todos os seus passos.

Os espiões de Saladino vigiaram cada passo dos cruzados até os seus exércitos se
lançarem à batalha final. Gravura de Gustavo Doré (séc. XIX)
         
Tudo indicava que Saladino reconquistaria Jerusalém em breve, mas a discórdia irrompera também no seu lado e ele teve de suspender as operações militares para cuidar dos graves problemas internos. Devido à sua continuada ausência da Corte por conta da guerra, a intriga e a corrupção lavravam e o povo, asfixiado pelos altos impostos e constante recrutamento de tropas, dava ouvidos a aventureiros que buscavam mais as benesses do poder do que as agruras das "guerras santas". As sérias dificuldades de ambos os lados causaram um armistício não declarado, durante o qual Saladino e Balduíno negociaram bastante. Sentindo o pouco entusiasmo do povo pela “jihad”, o sultão decidiu contentar-se em obter do rei o livre trânsito dos seguidores de todas as religiões e o livre culto delas na Palestina, mas para isso era essencial que a Mesquita da Rocha fosse devolvida aos muçulmanos, a igreja do Santo Sepulcro aos cristãos ortodoxos, e o muro das lamentações aos judeus.

Com isso não concordou o fanático clero católico, e as negociações foram suspensas quando o sórdido barão Reynaud de Chatillon saqueou e massacrou várias caravanas de pacíficos mercadores, forçando Balduíno a por Reynaud fora da lei e decretar sua prisão, ao mesmo tempo em que pedia perdão a Saladino pela atrocidade do seu súdito infame. Este se refugiou em um castelo dos Cavaleiros Templários e Saladino o atacou em vão, pois não havia como superar as suas poderosas defesas com as poucas tropas de que dispunha na ocasião. Ainda às voltas com graves problemas internos, decidiu levantar o inútil cerco e ficar quieto após aceitar as desculpas do rei. A vingança ficaria para mais tarde.

Em julho de 1187 Saladino esmagaria os cruzados na decisiva batalha de Hattin
e conquistaria Jerusalém. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
          
Em 1185 o decente Balduíno morreu e o seu sobrinho de apenas oito anos o sucedeu, mas viveu pouco e Sibila se fez coroar raínha de Jerusalém. Todavia os barões não queriam ser governados pelo medíocre Guy de Lusignan e a anarquia imperou, até que Sibila finalmente conseguiu convencer os barões a aceitarem o seu marido como rei. Isto fez com que Saladino tentasse recomeçar as negociações, pois achava que o novo rei, por ser guerreiro experimentado, teria mais condições de superar os entraves postos pelo clero católico. Mas enganou-se. Guy era da mesma laia de Reynaud e queria reconquistar o que Balduíno perdera. Sabendo das dificuldades do seu oponente, decidiu recomeçar a guerra e travaram-se combates mortíferos com vitórias e derrotas para ambos os lados.

Os famosos cavaleiros mamluks do Egito eram o batalhão de choque do exército
de Saladino. Gravura de Felicien de Myrbach-Rheinfeld (1806)

Mas agora os líderes muçulmanos estavam unidos, e em 4 de julho de 1187 Saladino venceu a decisiva batalha de Hattin, aprisionando e executando pessoalmente o sórdido barão Reynaud de Chatillon pelas inúmeras torpezas cometidas contra muçulmanos civis desarmados. Mas poupou a vida do rei Guy de Lusignan, mantendo-o prisioneiro para futuras negociações. A indignação dos vencedores com os ultrajes praticados pelos cruzados durante décadas chegara ao máximo e prevaleceu o sentimento pouco nobre da vingança. A enorme cruz levada por eles à frente do seu exército foi queimada, e os cruéis cavaleiros das Ordens religiosas militares, principais responsáveis pelas matanças e profanações, foram decapitados perante o sultão vitorioso, tal como ocorrera em Bahit Al Azhan.

Saladino decapitou pessoalmente o sórdido barão Reynaud de Chatillon. Iluminura medieval (séc. XIV)

Apesar das perdas sofridas, ele decidiu reconquistar de vez Jerusalém, cuja defesa fora assumida pelo barão Balian D’Ibelin, um dos poucos generais cruzados que lograra escapar da matança em Hattin. Quase sem tropas, o valoroso Balian mobilizou todos os católicos válidos e opôs valente resistência aos atacantes, mas, vendo que prolongar a batalha seria mero desperdício de vidas, mandou emissários a Saladino pedindo-lhe salvo conduto para retirar-se com os que quisessem acompanhá-lo. Caso não fosse atendido mataria os muçulmanos que ainda viviam na cidade, apesar de proibidos de praticarem a sua religião, e destruiria a Mesquita da Rocha, mas se o sultão concordasse ele deporia as armas e lhe entregaria a salvo a cidade, os lugares santos e a população civil.

A religião islâmica proíbe escultura de pessoas e animais, mas abriu
exceção para a bela estátua equestre de Saladino em Damasco
         
Balian era importante aristocrata que quando jovem fora pretendente de Sibila e prisioneiro de Saladino. Solto mediante resgate, como era de hábito entre os nobres, durante anos tivera papel de relevo na política da Palestina e lutara bravamente na malfadada batalha de Hattin. Fora um dos poucos altos cavaleiros sobreviventes que conseguira voltar a Jerusalém e por isso a rainha, sua antiga pretendida, lhe entregou o comando da defesa da cidade. O sultão o conhecia bem e não tinha queixas dele, tendo admirado bastante a sua bravura na defesa sem esperanças, por isso considerou a atroz ameaça justificável diante da desesperadora situação dos sitiados e não se ofendeu. Embora tenaz e implacável, Saladino era cavalheiresco e só derramava sangue quando necessário, por isso aquiesceu à chantagem, e não só aceitou poupar as vidas dos sacerdotes e guerreiros católicos como lhes permitiu escolher entre continuar vivendo na cidade como servos ou irem até o porto mais próximo e embarcarem para onde quisessem. Todavia fixou pesados resgates para os católicos ricos, mas isentou os católicos pobres.

Belian sagrou cavaleiros todos os católicos válidos e resistiu. Só entregou Jerusalém ao ver que a luta
era inútil e obteve de Saladino generosos termos de rendição - Cena do filme "Cruzada" 

Porém, ao contrário do que se pensa, não foram todos os cristãos que escolheram retirar-se de Jerusalém, pois os cristãos ortodoxos, que não reconheciam a autoridade da Igreja de Roma e por esta eram considerados "heréticos", haviam sofrido horrores durante o domínio dos católicos, e preferiram ficar na cidade sob o governo mais tolerante dos muçulmanos, com os quais tinham convivido, sem maiores queixas, durante séculos antes da chegada dos ferozes exércitos cruzados.

Saladino garantiu aos católicos saírem incólumes de Jerusalém. Gravura
de Alpnhonse-Marie-Adolphe de Neuville (séc. XIX)

Demonstrando a grandeza do seu caráter, Saladino deu aos católicos que se retiravam um batalhão para escoltá-los até o porto mais próximo, protegendo-os da fúria das massas islâmicas, judaicas e cristãs ortodoxas, ansiosas por vingarem-se das muitas décadas de tirania e humilhação. Após a procissão liderada por Balian e Sibila desfilar diante do seu trono armado sob uma tenda em lugar elevado e distanciar-se no horizonte, ele entrou em Jerusalém no dia 2 de outubro de 1187 sob enorme ovação do povo e do exército. Saladino atingira o objetivo da sua vida e chegara ao apogeu da sua carreira, mas um novo capítulo de memoráveis batalhas ainda o esperava.

Ricardo Coração de Leão em breve desembarcaria na Terra Santa à frente dos exércitos da III Cruzada!    

               

sábado, 21 de janeiro de 2012

Post nº 54

A  CAVALARIA  MEDIEVAL  E  O  NASCIMENTO
DO  GÊNERO  LITERÁRIO  "ROMANCE"

"Cavaleiros recebem das damas suas armas antes de partirem para suas heroicas
aventuras". Tapeçaria de Edward Burne Jones (séc. XIX)


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Após as grandes invasões bárbaras e o fim do Império Romano do Ocidente no século V, houve na Europa longo período de acomodação que durou cerca de trezentos anos, chamado “Alta Idade Média”. Ela caracterizou-se pelo desaparecimento do Estado como ente jurídico dono do poder criador da lei, e da Nação como ente social dono da soberania criadora do Estado, predominando a tradição no lugar do primeiro e o tribalismo no lugar do segundo. A destruição das instituições imperiais criou enorme vácuo de poder e intensa fragmentação territorial prejudiciais à troca de mercadorias e idéias, o que resultou em imenso retrocesso social, econômico e cultural. No final do século VII, comércio, artes, escolas e livros tinham praticamente desaparecido, e se não fosse pelas livrarias dos mosteiros cristãos, pois apenas os sacerdotes sabiam ler e escrever, todo o enorme legado cultural da antiguidade teria desaparecido no Ocidente.

Após três séculos de escuridão a Europa começa a renascer no século VIII e o imperador Charlemagne troca
embaixadas com o califa Harum Al-Rashid de Bagdad. Tela de Julius Köckert (1864)

Uma grande letargia parecia ter se apoderado da Europa quando no século VIII foi ela acordada pela avassaladora Onda Islâmica que no século anterior varrera o Oriente Próximo e a África do Norte. A “Invasão Árabe” da Península Ibérica ocorreu quase sem luta, não só porque os senhores cristãos ortodoxos locais não tinham poder nem coesão para se opor, como porque os “árabes invasores” eram descendentes dos vândalos cristãos arianos que três séculos antes tinham emigrado da Espanha para o norte da África, onde construíram poderoso império e depois se converteram ao Islamismo devido à intensa hostilidade e perseguição dos cristãos ortodoxos. Era, portanto, mais uma “volta” que uma “invasão” e eles foram bem recebidos pelos primos que tinham ficado e sido obrigados a adotar o cristianismo ortodoxo. Não é por acaso que o ponto escolhido para a “invasão” tenha sido a Vandaluzia (Terra dos Vândalos), hoje chamada de Andaluzia.

Orlando será celebrado como o maior de todos os cavaleiros medievais.
Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Embora poemas populares em forma oral celebrando os feitos dos heróis sempre tenham existido e na época das invasões islâmicas poemas celebrando as aventuras do mítico rei Arthur e seus cavaleiros já circulassem na Europa, eles tomaram grande impulso depois dessas invasões para celebrar os feitos de valorosos cavaleiros cristãos nas lutas contra "pérfidos cavaleiros muçulmanos".
  
Orlando é tema da primeira obra-prima literária da Idade Média: o
poema "Chanson de Rolland". Iluminura medieval

O mais famoso desses heróis foi Rolland, conhecido em português como Orlando, bravo oficial do imperador Charlemagne que se tornara legendário após sua morte em batalha nos Pirineus contra cristãos bascos. O fato se passou durante guerra movida por Charlemagne contra os bascos, povo cristão do norte da Espanha, mas a lenda a transformou em "guerra contra os árabes" e originou o poema épico Chanson de Rolland (Canção de Orlando), composto oralmente e transmitido de boca em boca durante trezentos anos até ser posto em livro no século XII ao se iniciarem as cruzadas, certamente como peça de propaganda delas. O imediato sucesso do poema abriu caminho para obras em prosa sobre bravos cavaleiros, as quais constituiriam o gênero Romance de Cavalaria e de Amor Cortês ao serem temperadas com altas doses de paixão e fantasia.

No poema medieval "Orlando Furioso", de Ariosto, o cavaleiro Rogério em seu cavalo-pássaro salva a
princesa Angélica do dragão marinho. Tela de Jean Auguste Baptiste Ingres (1819)

Porém, bem antes de Charlemagne e dos seu famosos cavaleiros conhecidos como Os Doze Pares de França, mais da metade da Espanha caiu rapidamente em poder dos muçulmanos e eles se dirigiram à França, coração da Europa, onde foram derrotados na batalha de Poitiers pela coalizão formada por Carlos Martel, líder dos francos.

Apesar das lendas é pouco provável que Charlemagne e Roland tenham lutado contra os sarracenos. Suas lutas foram contra os europeus cristãos ou pagãos que recusavam o domínio dos francos. Iluminura medieval  

Com a derrota, os muçulmanos voltaram à Espanha, mas o fragor da batalha acordou a Europa e os príncipes francos, assustados com possíveis novas invasões, aceitaram Carlos Martel como chefe capaz de repeli-las. A sua liderança virou suserania e os liderados tornaram-se seus vassalos, o que permitiu mais tarde a unificação da antiga Gália em poderoso reino com o nome de “França” (país dos francos).

O combate com cristãos suevos no século VIII onde Rolland pereceu foi mudado no século XII para combate
com muçulmanos árabes por conta das Cruzadas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX) 

A França adquiriu características de verdadeiro Estado quando algumas décadas depois o seu novo rei Charlemagne, neto de Carlos Martel, além da França dominou também toda a Germania e foi coroado “Imperador Romano” pelo Papa na basílica de São Pedro em Roma. Em consequência, os muitos príncipes vassalos ou aliados deram aos seus domínios toscas instituições auridas do Direito Canônico de origem romana e o novo "Império Carolíngio" surgiu das cinzas do antigo Império Romano do Ocidente, abolido há mais de trezentos anos. Com a volta da Lei escrita e da autoridade forte, o sistema feudal se solidificou, o comércio renasceu e o estudo readquiriu importância pela pena dos burocratas e dos legistas, possibilitando no século XI a fundação da Universidade de Bolonha, mãe das que surgiriam depois. É no final desse século que se iniciam As Cruzadas, fenômeno que causará a “Primeira Renascença” e a criação do gênero literário “Romance”.

A bravura feminina está no romance medieval. No poema Jerusalém Libertada a guerreira
islâmica Clorinda salva os amigos Sofronia e Olindo. Tela de Delacroix (séc. XIX)
          
Embora a Cavalaria Medieval tenha surgido no reinado de Charlemagne, ela só viria a ter crucial importância militar e social com o surgimento das Ordens Religiosas Guerreiras, criadas para combater os muçulmanos durante as Cruzadas. Sobretudo porque os seus membros ao invés de terem título de Frei tinham título de Cavaleiro e, como só os nobres dispunham de tempo e dinheiro para gastar com cavalos e auxiliares para cuidá-los, ser Cavaleiro era privilégio da nobreza. Plebeu somente entrava nas Ordens Militares como auxiliar, geralmente como faxineiro e cozinheiro. Entrar como escriturário ou almoxarife só se tivesse instrução, e como escudeiro, posto reservado ao plebeu com experiência militar e no trato de cavalos, só se fosse bom combatente de infantaria. Se no correr do tempo ele mostrasse valentia, lealdade e muita fé religiosa, podia ser sagrado Cavaleiro pelo seu mestre depois de ouvidos os demais cavaleiros.
  
Enquanto repousa em bosques remotos das lutas do dia o cavaleiro sonha
com a sua dama. Tela de Henry Meynell Rhean (séc. XIX) 

Logo o crescimento do poder, riqueza e prestígio das Ordens Militares estendeu-se não só aos seus cavaleiros, mas a todo e qualquer cavaleiro leigo, agrupados pelos seus monarcas em nobres ordens de cavalaria laica destinadas a servi-los em suas campanhas. Dessa forma a Nobre Ordem da Cavalaria tornou-se ao mesmo tempo instituição militar e social, cujos belos uniformes e feitos heróicos dominaram o imaginário popular, gerando infinidade de lendas, poemas e contos que corriam de boca em boca, criando em torno dela toda uma aura de admiração e respeito.
 
Castelos de sonhos e bravos cavaleiros buscando o ideal e o amor povoam o
imaginário do romance medieval. Tela de Martin Weygand (séc. XIX)

Após seiscentos anos de trevas a cultura começou a renascer e no século XII os mais famosos poemas populares, recitados oralmente durante séculos, adquiriram forma escrita para satisfazer o gosto literário de uma elite enriquecida pela enxurrada de mercadorias e conhecimentos trazidos do Oriente pelos cruzados e mercadores que os acompanhavam. Isto promoveu intenso movimento cultural no Ocidente a que se deu o nome de “1ª Renascença”, a qual se caracterizou pelas seguintes grandes realizações que marcaram nossa Civilização: as Catedrais Góticas, as Universidades, o Renascimento da Filosofia com Tomás de Aquino, o Renascimento da Pesquisa Científica com Rogério Bacon, o Renascimento do Direito com a “Escola dos Glosadores”, o Renascimento da Poesia com Dante e Petrarca, e, finalmente, a criação do Romance Moderno por Chrétien de Troys, criador do gênero literário Romance de Cavalaria e de Amor Cortês.
  
Lutar pelas damas e salvá-las de grandes perigos é a principal tarefa do cavaleiro no
romance medieval. Tela de William Hatherel (séc. XIX)
         
Digo romance moderno porque alguns acham que houve um romance antigo, representado por curtas estórias em versos de amores campestres a que chamavam Idílio. Este gênero literário foi criado pelo poeta grego Teócrito e muitos poetas o cultivaram não só na antiguidade como nas Idades Média e  Moderna, mas caiu em desuso e o último poema idílico a ser publicado foi a obra “Os Idílios do Rei”, de autoria do grande poeta inglês do século XIX Alfred Tennyson. Curiosamente, o poema de Tennyson é uma homenagem ao Romance de Cavalaria e de Amor Cortês da Idade Média, pois versa sobre as aventuras galantes do Rei Arthur e dos seus Cavaleiros da Távola Redonda.

A arrebatadora paixão por nobres e belas damas é o que motiva os bravos cavaleiros
em suas aventuras. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Porém o Idílio é do gênero poesia que não pode ser confundido com o romance ou novela, pois o que caracteriza este é ser uma estória longa em prosa sobre assunto não necessariamente romântico, razão por que os ingleses ao invés da palavra romance preferiram usar a palavra novel derivada do francês nouvelle para designar o novo gênero literário.

As nobres damas socializavam com os bravos cavaleiros e tórridos amores nasciam nas festas
da Corte e nos torneios. Tela de Herbert James Draper (séc. XIX)

Há até pouco tempo a grande maioria achava que não houvera verdadeiro romance na Antiguidade, apesar da estória curta em prosa ter sido bastante cultivada e constituído o gênero literário conto. Todavia, há menos de duzentos anos foi descoberto em um palimpseto texto surpreendente da autoria de um romano chamado Petrônio, a respeito de quem nada se sabe. Exaustivas análises do texto não só certificaram a sua excelente qualidade como também a suposição de ter sido o autor um rico aristocrata do século I, amigo e cortesão do imperador Nero. O livro chama-se Satyricon e contém todos os elementos do romance moderno, mas é também uma extraordinária crônica ficcional da qual se pode dizer ser o único valioso testemunho da ociosa vida dissipada, luxuosa e ostentosa das classes ricas no apogeu do Império Romano.

Em suas aventuras o cavaleiro medieval dos romances enfrentava todo tipo de perigos, incluindo
monstros e seres sobrenaturais. Tela de Ary Scheffer (séc. XIX)
             
Do mesmo modo a obra dá notável retrato da miséria e corrupção reinantes em suas classes baixas e é o terrível contraste entre os dois fatos que século e meio mais tarde produzirá à revolução ética do Cristianismo. O Satyricon, portanto, mostra a existência do gênero literário romance na Antiguidade e, embora não haja evidência de ter sido ele na época cultivado por outros autores, a notável exceção prova que houve pelo menos um!

Antes de entrar no torneio o cavaleiro recebia da sua dama o lenço símbolo
do amor de ambos. Tela de Edmund Leighton (séc. XIX)

Mas se a existência do romance antigo está sujeita a debates, tal não acontece com o romance moderno, pois não há dúvida de que o seu criador é Chrétien de Troys, que o construiu  focado nas aventuras e desventuras dos bravos Cavaleiros Medievais e das suas nobres damas, nele misturando todos os ingredientes de uma boa trama ficcional em prosa: bravura, paixão, lealdade, intriga e traição, tudo envolto num halo de mistério e fantasia onde o Cavaleiro assume o status de moderno herói cinematográfico. Como matéria-prima, Chrétien usa as Lendas Arturianas narradas em incontáveis poemas populares compostos anonimamente ao longo de quinhentos anos, alguns dos quais adquiriram forma escrita. Vários deles chegaram ao século XII e o erudito bispo Geoffrey of Monmouth transformou Arthur em personagem histórico real ao publicar em 1135 a História dos Reis da Inglaterra. O livro teve grande sucesso e várias outros surgiram relatando "a vida e proezas de Arthur e dos seus cavaleiros".
 
O romance de cavalaria e amor cortês cultiva as lendas arturianas. Tela "Mort
D'Arthur" (detalhe) de Edward Burne Jones (séc. XIX)

Em 1170 a fidalga Marie de France publicou uma coletânea de curtos poemas românticos chamados Laís, onde aborda a vida dos heróis pelo lado galante ao invés do histórico-guerreiro. A obra tocou o coração de pessoas cansadas de guerras e violências, sobretudo as nobres mulheres cultas, e o livro obteve também enorme sucesso, dando a Chrétien a ideia de fazer o mesmo em longas narrativas em prosa poética para divertir a sofisticada sociedade de sua época, enriquecida pelas Cruzadas e com o gosto literário apurado pelos poemas musicais dos Trovadores, também surgidos há pouco tempo para grande escândalo daqueles que consideravam a música profana pecaminosa.
 
A corte principesca era o cenário preferido para os amores e as intrigas do
romance medieval. Tela de Edmund Blair Leighton (séc. XIX)

Seu primeiro livro, Erec et Enid, teve sucesso ainda maior que os Laís e durante vinte anos ele explorou o filão que lhe deu fortuna e celebridade, morrendo rico e famoso no castelo de riquíssima condessa sua amante e fiel propagandista junto ao seu largo círculo de amigas, todas senhoras ricas ansiosas por românticas estórias de amor e aventuras, onde a emoção e a paixão de nobres damas e bravos cavaleiros se misturavam em perfeitas proporções com o fantástico e o maravilhoso. Vários escritores seguiram o exemplo de Chrètien e a Europa foi inundada com romances de cavalaria e de amor cortês, avidamente disputados pelo público leitor abastado que podia se dar ao luxo de comprar livros e sonhar acordado.

Tancredo mata Clorinda por engano no poema Jerusalém Libertada e faz até os anjos chorarem enquanto desesperadamente tenta salvá-la. Tela de Louis Jean François Langrenee (séc. XVIII)

Porém, como um último tributo aos grandes poetas da antiguidade, as obras-primas do gênero romance de cavalaria e de amor cortês não foram as narrativas em prosa a que chamamos de romance, mas narrativas em versos publicadas no final e no pós Idade Média a que chamamos de poema épico. O primeiro foi o poema Orlando Furioso, escrito pelo poeta Ariosto no século XV, e o segundo foi o poema Jerusalém Libertada do poeta Torquato Tasso, escrito no século XVI. Referidas obras tornaram-se clássicos da literatura universal e seus vários episódios celebrando os amores de damas e cavaleiros são os melhores que o romantismo medieval produziu, pois neles o lírico e o trágico se casam de maneira perfeita, prendendo a atenção e produzindo no leitor o mais intenso deleite e encantamento.

No poema Jerusalém Libertada a princesa islâmica Armida pratica as artes mágicas
e seduz o cavaleiro cristão Rinaldo. Tela de Tiepollo (séc. XVIII)

Ainda hoje é isto que sucede quando lemos uma boa trama de amor e aventuras, mostrando o mágico fascínio que o romance, em suas mais diferentes formas e categorias, exerce sobre as pessoas, a ponto de continuar sendo o mais popular e requisitado de todos os gêneros literários dos últimos séculos.

          

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Post nº 53

A  LEGIÃO  ROMANA  FANTASMA
DE  YORK

Imagem idealizada da visão do jovem Harry Martindale dos legionários fantasmas de York

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York é uma das cidades mais antigas e mais bem preservadas da Inglaterra. Na Idade Média foi a segunda mais importante cidade do país e sua imensa catedral gótica, majestosas muralhas e prédios várias vezes centenários o atestam. Nos tempos romanos, a estratégica cidade de Eboracum (York é nome que os invasores anglo-saxões lhe deram na Alta Idade Média) era quartel de poderosa Legião que, por estar sediada no extremo norte do Império, era chamada “A Última Legião”. Ela fez jus ao nome quando os romanos retiraram-se definitivamente no século V, pois foi a última a sair da antiga Britannia. Além disso, foi em Eboracum (York) que faleceu o imperador Constâncio Cloro durante guerra contra os caledônios (escoceses) e o grande Constantino foi aclamado imperador no início do século IV. As ruínas do quartel da grande Legião onde fatos tão marcantes ocorreram foram descobertas e escavações vêm sendo realizadas por competentes arqueólogos com a atenciosa assistência de historiadores e intelectuais.

A antiguidade e a boa preservação da cidade têm feito com que ao longo dos séculos ela tenha sido palco de contos fantasiosos e aparições fantasmagóricas dos mais variados tipos, todos eles registrados pelos cronistas e, sobretudo, pela imprensa local no lucrativo intento de atender à sede do público por histórias extraordinárias. Todavia é um prédio moderno pelos padrões de York, pois foi construído em 1648, o palco das mais extraordinárias aparições: a Treasurer’s House! O prédio foi erguido sobre as ruínas da antiga Minster’s Treasurer ("Tesouraria da Catedral"), fechada um século antes durante a Reforma Religiosa do rei Henrique VIII. Sabe-se que o prédio anterior já gozava da fama de mal-assombrado há séculos, mas ninguém esperava que o mesmo ocorresse com o seu “moderno” sucessor. Porém, desde o começo estranhas ocorrências e aparições bizarras eram constantemente relatadas pelos visitantes e servidores da repartição do Fisco, a ponto de até mesmo guardas e vigias terem medo de passar a noite por lá. Curiosamente, os fenômenos tinham sempre caráter militar, pois eram geralmente ruídos surdos de homens marchando ao toque de tambores e clarins embora não houvesse quartel nos arredores e não estivesse ocorrendo desfiles na cidade. Os relatos das visões falavam sempre de homens envoltos em peles, portando lanças e usando saias, levando muitos a acreditarem tratarem-se de fantasmas de antigos soldados escoceses que por várias vezes ocuparam a cidade nas guerras da Idade Média.


Portão principal das muralhas de York, uma das cidades mais antigas da Inglaterra.  
Restauradas e acrescidas na Idade Média, elas datam da época romana.
          
Nos tempos modernos, tais histórias fantásticas foram esquecidas ou passaram ao folclore e sempre que algo estranho acontecia logo se descobria explicação “racional e científica” para o fato. Foi quando em 1953 um adolescente aprendiz de encanador, Harry Martindale, trabalhava no vasto porão com o seu mestre durante reformas que se fazia no prédio na ocasião. Devido à urgência dos serviços, os operários tinham entrado noite adentro e o mestre saíra em busca de ferramenta que esquecera, deixando Harry trabalhando sozinho. Eis que de repente ouviu passos próximos de homens marchando, produzindo ruído muito diferente dos ouvidos no local das obras. Embora não prestasse atenção no início e não se desviasse do que fazia, ficou de cabelo em pé quando o recinto foi inundado por estranha luz com tonalidades rosa, vermelha e verde. Assustado, correu para o lado oposto, de onde divisava todo o salão, e ficou petrificado ao ver sair da grossa parede ao lado cavalo montado por estranho soldado com capacete enfeitado e capa. Com a língua engrolada e incapaz de produzir sons ou mover-se, Harry viu que atrás do cavaleiro saiam da parede soldados mais estranhos ainda, usando armaduras, saiotes e portando esquisitos estandartes. Alguns se cobriam com peles de lobos ou de ursos a guisa de capote e estavam armados com lanças, espadas e escudos. À medida que cruzavam o salão sumiam na parede oposta, não sabendo Harry dizer depois quanto tempo durou a aparição, pois quando o seu mestre voltou, bem depois de ter saído, ainda o encontrou encostado à parede, paralisado. Harry só tinha instrução primária e nada sabia de História, mas, apesar da galhofa dos colegas mais velhos, manteve-se firme e o caso chegou aos ouvidos da imprensa, que não perdeu tempo e o publicou em manchete, dobrando as vendas e atraindo multidões ao local. Harry foi tão honesto que não ocultou detalhes que ninguém conseguia entender: o primeiro era que os soldados pareciam canhotos, pois levavam suas espadas no lado direito; outro era que as espadas eram muito menores que as atuais; finalmente, o mais estranho de tudo: as pernas dos cavalos e dos soldados só apareciam acima do piso a partir de cerca de um palmo abaixo do joelho! Segundo Harry, era como se marchassem com água no meio das pernas. Para isso não havia explicação, pois o piso era sólido e seco, não havendo indícios de que tivesse havido água no local.

Finalmente grupo de eruditos, não tão descrentes dos fenômenos paranormais, concluiu que os prováveis fantasmas eram romanos e não escoceses, porque só os romanos usavam espadas curtas e as portavam do lado direito. Assim, o erudito grupo aventou a hipótese de que talvez ali passasse antiga estrada romana, tendo sido ela ocultada não só pelos séculos de abandono e acumulação de terra trazida pelo vento, mas também pelo rebaixamento que o solo sofre com o passar do tempo. Marchando as aparições por estrada abaixo do solo do porão, era lógico que seus pés e parte das pernas se movessem abaixo dele, ficando ocultos aos olhos de quem os visse. Obtida a autorização para escavar, removeram o velho piso e constataram que a hipótese era correta: cerca de 30 centímetros abaixo havia trecho intacto de milenar estrada romana pavimentada com largas pedras polidas!
A catedral gótica de York é uma das mais belas e maiores catedrais medievais da Europa. Substituiu
igreja cristã da época romana edificada sobre ruínas de um templo pagão
    
A estória virou verdade e o garoto Harry virou celebridade, mas, como sempre acontece, boatos maldosos surgiram dizendo que fora tudo uma farsa montada pelos intelectuais e jornalistas em conluio com a Prefeitura para escavarem o local e criarem sensacionalismo, pois há muito sabiam que ali passava antiga estrada romana. Por isso teriam subornado Harry e o instruído com a estória fantasiosa para em seguida faturarem com matérias jornalísticas, publicidade e turismo. O boato era absurdo, pois York é tão rica em edifícios antigos e vestígios arqueológicos que não seria a descoberta de simples trecho de estrada romana, de resto bastante comum na Inglaterra, que iria aumentar a atração que a cidade exerce sobre amantes da História e das coisas antigas.

De qualquer forma, modernos “caça-fantasmas” fizeram pesquisas no local com sofisticada aparelhagem e nada detectaram. Os fenômenos cessaram após as investigações e a única explicação que se tem é que talvez fantasma não goste de publicidade ou de shows para divertimento dos incrédulos. Mas para os que acreditam no sobrenatural fica uma pergunta: por que os fantasmagóricos soldados romanos insistiam em aparecer marchando naquele trecho da estrada desde remotas eras, como atestado por seculares relatos de fatos estranhos e bizarros não só nos séculos de existência do prédio atual como nos séculos de existência do que o antecedeu?

Como creio no sobrenatural, acho o seguinte: hoje se sabe que a marcha era em sentido oposto ao do quartel da Legião, mostrando que os soldados distanciavam-se dela seguindo para alguma missão. Portanto é possível que tenham caído em uma emboscada logo em seguida, na qual todos morreram, e estariam apenas reproduzindo os seus últimos passos na terra antes de se despedirem definitivamente da vida!

Pode não ser uma explicação, mas é uma boa hipótese.


Nota: York foi muito próspera durante o domínio romano, quando se chamava Eboracum e era a cidade mais importante do norte do Império. Com a retirada romana da Britannia no século V, ela foi assolada durante dois séculos pelos bárbaros pictos, caledônios e scots, que destruíram seus grandes edifícios e a reduziram a pouco mais que uma vila. Este longo período de brutal decadência explicaria o soterramento do grande quartel da "Última Legião" e das magníficas estradas pavimentadas que partiam dela em várias direções. Com a chegada em massa dos anglo-saxões, que já ocupavam há tempos o sul da ilha, ela recuperou parte do seu antigo esplendor e passou a chamar-se York. No século VIII foi assolada novamente por hordas vikings altamente destruidoras, mas no século seguinte (anos 800) o rei anglo-saxão Alfredo o Grande unificou toda a Inglaterra sob o seu cetro e fundou a 1ª dinastia de reis ingleses. Nos 200 anos seguintes York floresceu como nunca e no século XII era a 2ª cidade mais rica e importante do país, sede de um dos dois únicos Arcebispados da Inglaterra. Isto lhe possibilitou construir a maior catedral do norte da Europa e os duques de York passaram a ser tão poderosos quanto os reis, às vezes tomando-lhes o trono. No século XVI o centro econômico do norte mudou para outras cidades e York entrou em marasmo e decadência. Isto possibilitou que as suas características medievais ficassem admiravelmente bem preservadas até os dias atuais.



domingo, 4 de dezembro de 2011


Post nº 52

AS  ORIGENS   DA  CAVALARIA  MEDIEVAL

Belo auto-relevo mostrando o imperador Marco Aurélio partindo para a guerra. Por ele se
vê que o estribo não existia na antiguidade


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Importa detalhar melhor a evolução da cavalaria através dos séculos para entender as razões pelas quais ela se tornou predominante na Idade Média, a ponto de constituir uma elaborada instituição não apenas militar, mas sobretudo social e política. 
             
Como efetiva arma de guerra ela começa a ganhar importância no século IV AC com a vitória de Alexandre Magno sobre Dario na batalha de Gaugamelas, atinge o apogeu no século XII DC durante as cruzadas com as batalhas na Terra Santa entre o rei Ricardo Coração de Leão e o sultão Saladino, findando no século XV DC com a esmagadora vitória da plebeia infantaria inglesa sobre a fidalga cavalaria francesa na Batalha de Agincourt. Temos, portanto, uma "Cavalaria Antiga", que marca a Idade Clássica Greco-Romana, e uma "Cavalaria Medieval" que domina a Idade Média Europeia.
             
Três coisas diferenciam a Cavalaria Antiga da Cavalaria Medieval: a) aquela não conhece o estribo e esta não existiria sem ele; b) a primeira é basicamente arma de guerra e acessoriamente categoria social; já a segunda é o contrário; c) por ser basicamente arma de guerra, a Cavalaria Antiga é usada taticamente dentro de contextos teórico-militares onde atua como auxiliar da infantaria de exércitos a serviço de países, mas por ser basicamente categoria social a Cavalaria Medieval é usada estrategicamente em contextos teórico-militares onde a infantaria é mero auxiliar de exércitos a serviço de grupos de interesses.
             
Porém a própria Cavalaria Antiga tem a sua origem, pois ela não surgiu apenas porque existiam cavalos, mas porque foram inventadas novas táticas de combate por gênios militares. No caso da Cavalaria o gênio militar que a inventou foi Alexandre Magno durante a conquista do Império Persa, pois antes dele a arma que reinava soberana no Oriente Médio era o carro de combate, equivalente ao moderno tanque de guerra. Todos os grandes impérios anteriores a Alexandre possuiam grandes esquadrões dessa arma letal, na época considerada eficiente e moderna.

Carro de combate hitita do século XII AC

Há evidências de que seus inventores foram os Egípcios, mas não há certeza. Até onde sabemos, os Egípcios, Hititas, Assírios e Babilônios os usaram amplamente. Os últimos foram os persas, cujos esquadrões sobre rodas foram destruídos por Alexandre que os substituiu por esquadrões de cavalaria altamente treinada. O grande mérito de Alexandre não foi descobrir que os carros eram inúteis em terrenos acidentados, pois de há muito os gregos sabiam disso, embora alguns príncipes como Aquiles os tivessem, porém os tinham mais por exibição de riqueza e prestígio do que por utilidade bélica, pois a Grécia era pobre em pastagens e por isso cavalos eram raros. O mensageiro que levou a Atenas a notícia da vitória de Maratona contra os persas correu 42 km a pé, mostrando que cavalos na Grécia quase não existiam e apenas os muito ricos os tinham.

            O carro militar egípcio era mais leve e veloz que o hitita. Todos os impérios antigos o tiveram como
                 arma principal dos seus exércitos, mas no século IV AC Alexandre o substituiu pela cavalaria
             
Como ela não era um país no sentido moderno do termo, cada cidade grega gozava de soberania absoluta e tinha o seu próprio exército, formado apenas por cidadãos voluntários que desde a adolescência treinavam táticas de combate e tinham em casa seu próprio equipamento para usos eventuais, geralmente guerras contra cidades rivais. Tais exércitos raramente tinham mais de três mil homens e mesmo no auge da Guerra do Peloponeso os exércitos de Atenas e Esparta jamais chegaram a cinco mil soldados cada um. Toda a coalizão grega que enfrentou os persas na Batalha das Termópilas tinha cerca de seis mil combatentes, mas o hoplita (guerreiro grego de infantaria) tornara-se célebre em todo leste do Mediterrâneo e muitos viraram mercenários a serviço de poderosos reinos estrangeiros, como o egípcio e o persa. A obra de Xenofonte, A Retirada dos Dez Mil, narra o regresso de milhares de mercenários gregos que serviam ao rei da Pérsia e com ele romperam, sofrendo enormes vicissitudes no árduo caminho de volta.

             Após derrotar os carros de guerra persas e subjugar o seu império, Alexandre derrotou os elefantes de
                                                 guerra indianos e fundou um reino grego no noroeste da Índia
             
O mérito principal de Alexandre foi criar táticas que derrotaram os soldados sobre rodas e deram supremacia à infantaria, pois o seu exército era pequeno e quase não tinha cavalaria. Por isso teve de elaborar modos inovadores para vencer os carros de combate nas planícies da Ásia Menor, onde eram senhores absolutos. Suas geniais táticas os aniquilaram, permitindo-lhe destruir a infantaria persa, muito inferior à grega, como evidenciado nas Guerras Médicas 150 anos antes. Com a fartura de cavalos capturados, seu segundo maior mérito foi abolir de vez o carro de guerra, substituindo-o pela cavalaria e marchando velozmente até os confins do mundo conhecido na época. Com o cavalo, ele tornou-se o único general até hoje que conseguiu dominar o Afeganistão. Depois conquistou o Paquistão e invadiu a Índia, derrotando os elefantes do rei Poros na batalha do rio Indo e fundando um reino grego no noroeste do subcontinente indiano.

                Alexandre foi o primeiro Grande Rei a combater a cavalo e substituiu os esquadrões de carros por
                     esquadrões de cavalaria. Com a nova arma ele conquistou todo o mundo conhecido na época 

Apesar de mesmo com Alexandre a cavalaria não ser a arma principal e funcionar apenas como valioso auxiliar da infantaria, vê-se que utilizando-a inteligentemente ele não somente derrotou grandes esquadrões de carros como também grandes esquadrões de elefantes, o que é quase inacreditável. As suas façanhas militares não têm igual na História e nos deixam ainda mais abismados ao sabermos que ele, assim como todos os generais dos mil anos seguintes, conseguiu usar a cavalaria como eficiente arma de guerra sem contar com um apetrecho equestre essencial ao bom manejo do cavalo: o estribo!
             
Embora não saibamos onde e quando o estribo foi inventado, nem quem o inventou, sabemos que no final do século V surgiram na Europa as primeiras pinturas de cavaleiros usando-os. Assim, é provável que os seus inventores tenham sido os hábeis cavaleiros das estepes russas, onde o cavalo era abundante, e tenha sido trazido ao Império pelos godos no final do século IV, quando emigraram em massa para o seu território fugindo dos temíveis cavaleiros hunos, mas isso é muito duvidoso porque não há evidências de que hunos usassem estribos. Também não está excluída a hipótese de que os próprios romanos o tenham inventado no mesmo período, pois, embora não possuíssem o dom da originalidade, eram práticos e criativos quando se tratava da arte da guerra, mas disso também não temos provas.

Estátua equestre do século II DC mostrando o imperador
                           Marco Aurélio a cavalo sem o uso de estribos

O que sabemos de concreto sobre o papel da cavalaria no final do Império Romano é que devido à anarquia política e militar do século III o Império ficara empobrecido e a famosa Legião Romana, com seus milhares de homens agrupados em esquadrões de infantaria, teve os seus efetivos reduzidos. Isto trouxe a necessidade de adaptá-la aos novos tempos, compensando maior fraqueza com maior mobilidade, o que só poderia ocorrer com o uso mais intensivo do cavalo. Aos poucos, as coortes a pé foram substituídas por coortes montadas e no final do Império a cavalaria finalmente se tornou mais importante que a infantaria no exército romano, embora não tanto quanto se tornaria na Idade Média.

                     A legião romana era constituída basicamente pela infantaria. Só no último século
                                do Império foi que a cavalaria sobrepujou a importância da infantaria

No final do século IV, no reinado de Teodósio, o exército era bem menor do que fora no reinado de Trajano três séculos antes, mas um terço dele estava montado a cavalo e era muito mais ágil do que no passado. Devido à nova importância da cavalaria, não é de se duvidar tenham os práticos fabricantes de arreios criado o estribo para torná-la mais eficiente, mas não há certeza. Tudo que sabemos é que o ótimo equipamento eqüestre não existia antes, pois não há pinturas, gravuras ou esculturas mais antigas onde ele esteja presente. Os gregos e os romanos não cultivavam o gênero estátua eqüestre, só o fazendo muito raramente. A única que nos chegou é a do imperador Marco Aurélio, esculpida no final do século II, na qual o estribo não aparece.
             
Devido à pobreza artística dos séculos posteriores, muitos argumentam que as poucas gravuras supostamente da época são bem mais recentes e que o estribo só apareceu na Europa no século VII ou VIII, final da Alta Idade Média, o que nos parece bem mais provável, pois é só no século VIII que surgem grandes exércitos inteiramente a cavalo e travando importantes batalhas, como a de Poitiers entre cristãos e muçulmanos no sudoeste da França.
                                           O pesadamente couraçado cavaleiro medieval não poderia ter existido
                                                                           se não fosse a invenção do estribo

Após as invasões bárbaras e a queda do Império Romano, a invenção do estribo permitiu que a cavalaria se tornasse a principal arma de guerra durante a Idade Média, mas o alto preço das sofisticadas armaduras do cavaleiro e do cavalo a tornaram privilégio dos nobres ricos. Um nobre que não tivesse suficiente fortuna jamais poderia ser cavaleiro, pois aos custos das couraças e armas somavam-se as despesas com cavalos, escudeiros, pagens, demais criados e todo o necessário aparato ao seu cuidado e manutenção.

 A Cavalaria Medieval nascerá e viverá à sombra dos castelos de poderosos senhores
          feudais, sedes do poder temporal na Europa após o fim do Império Romano
            
De sua origem modesta no século IV AC como veloz transporte de tropas e excelente auxiliar da infantaria pelas mãos de Alexandre, a Cavalaria evoluiu de simples arma de guerra para tornar-se categoria sócio-militar no século VIII DC e reinar suprema como máxima expressão militar da nobreza européia durante toda a Idade Média, só vindo a eclipsar-se às vésperas do seu final no século XV.