quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Post nº 60

RICARDO  CORAÇÃO  DE  LEÃO  -  O  MAIS
VALENTE  DOS  REIS  MEDIEVAIS

As batalhas entre o rei Ricardo e o sultão Saladino fizeram da III Cruzada a mais famosa
de todas - Tela de Phillipe Jacques de Loutherbourgh (século XVIII)


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I

A Marcha Para o Trono em Uma Família Disfuncional

            
Nenhum rei na história teve vida mais aventureira, cheia de lendas e relembrada ao longo dos séculos do que Ricardo I da Inglaterra, cognominado O Coração de Leão. Isto surpreende porque, quando se examina o seu governo, verifica-se que foi ruim e nada de útil fez para os governados em particular nem para a humanidade em geral. Na verdade Ricardo foi um rei ausente, pois dos seus dez anos de reinado passou apenas seis meses na Inglaterra e dela só se lembrou para cobrar impostos e leiloar cargos públicos afim de angariar fundos para suas aventuras guerreiras! Então qual a causa de ser tão celebrado, a ponto de ser o único rei inglês conhecido por seu cognome e o único a ter uma estátua eqüestre diante do vetusto Parlamento Britânico?

Creio que a resposta está na admiração que as pessoas dedicam aos guerreiros, sobretudo quando além de bravos são belos, cultos, boêmios, simples e aventureiros, esquecendo todas as suas demais virtudes e defeitos. Isto é exatamente o que ocorre com Ricardo, de quem ilustre historiador disse com acerto: foi mau filho, mau marido e mau rei, porém foi o mais esplêndido dos guerreiros! Fato curioso simboliza bem essa sua condição: foi o primeiro príncipe reinante que buscou ser sagrado cavaleiro!

Embora a “Cavalaria” estivesse no auge, nenhum monarca até então buscara a condição de cavaleiro, achando que a sua coroa já lhe dava esse status, mas Ricardo, provado em combate e duque reinante da Aquitânia, buscou a honraria, conferindo-lhe excepcional valor ao ser sagrado cavaleiro por seu primo, o rei Luis VII de França. Daí em diante, todos os príncipes buscaram ingressar nas Ordens da Cavalaria, pois se um duque coroado, veterano de guerra, fazia questão de se tornar oficialmente cavaleiro, que dirá outros nobres muito menos importantes!


Sarcófagos de Henry II e Eleanor D'Aquitaine, pais
de Ricardo, na abadia de Fontevraud na França

Ricardo nasceu em 1157 em Oxford, terceiro filho homem do rei da Inglaterra Henrique II e de Eleanor, duquesa da Aquitânia. Bravo, inteligente e com talento musical e poético, recebeu ótima instrução cultural e militar, tocando com maestria instrumentos de corda e cantando bem aos doze anos de idade, conversando bem e versejando com facilidade aos treze, disputando torneios com habilidade aos quatorze e combatendo com valentia aos quinze. Relatos dizem que era bonito, louro, olhos claros, forte e com 1,90 m de altura. O pai era bom general e estadista, mas era também ganancioso, violento e devasso. A mãe era mulher séria que, além de boas qualidades políticas, possuía ótimos dotes intelectuais, mas era serpente gulosa e astuta que pariu ninhada de iguais, e dedicou o seu amor a mais bela, culta e valente de todas: Ricardo!

Ambiciosa e sem escrúpulos, ela fez o marido dividir em vida seus domínios com os três filhos guerreiros provados, conservando sobre eles a suserania e cabendo a Ricardo a Aquitânia. Esta era o riquíssimo ducado da mãe, que por isso fez coroar o filho duque reinante e investi-lo no poder com os símbolos da sua soberania: anel, cetro e estandarte! O caçula João, ainda menino, ficou fora do arranjo e não ganhou nada, por isso recebendo o apelido de "João Sem Terra”!
 
Ricardo lutou anos na França, mas foram as cruzadas
que lhe deram fama . Gravura de G. Doré (séc. XIX)
            
Eleanor era não só a princesa mais rica e culta da Europa, como a maior patrocinadora das artes na época. Aficionada da trova, gênero poético-musical profano surgido há pouco tempo para escândalo dos tradicionalistas, os quais achavam que a poesia e a música só deviam ocupar-se de temas religiosos, ela passou a patrocinar os trovadores talentosos e a sua corte tornou-se a mais brilhante do seu tempo. Talvez tenha sido o fato de Ricardo ser bom músico e poeta, muito mais do que o fato de ser bravo e bonito, que o tenha feito ser o seu "filho predileto", embora não do seu marido.

Valente e aventureira, Eleanor participara da II Cruzada ao lado do primeiro esposo, o seu correto primo-irmão Luis VII da França, de quem se divorciaria mais tarde por questões de consanguinidade para casar com Henrique II da Inglaterra, pois na época a Igreja não era muito zelosa da indissolubilidade do vínculo matrimonial quando os interessados eram príncipes poderosos. Todavia ela continuou amiga do decente ex-marido, de quem parece ter sido mais irmã que esposa, tudo indicando que teve relação apaixonada com o brutal Henrique pela filharada que produziu, mas as evidências são de que sua inteligência e valentia, junto com sua veia artística e aventureira, transmitiram-se ao filho Ricardo em dose concentrada e fizeram dele o que ele foi.

Eleanor e Henrique II foram personificados no cinema pelos grandes atores Katherine Hepburn
e Peter O'Toole. Há evidências de que se amavam, mas eram como cão e gato
  
Fosse como fosse, Ricardo e os irmãos foram instigados pela mãe, indignada com os excessos do marido e pelo primo rei de França Luis VII, cansado dos saques e extorsões de Henrique, a se rebelarem contra o pai devasso e brutal. Ansiosos por livrarem-se do jugo paterno e governarem sozinhos os seus domínios, incendiaram o reino, espalhando morte e destruição. Ressalte-se que o “Estado”, como o conhecemos, desaparecera na Idade Média, e “países” eram apenas vastos feudos de famílias poderosas que os exploravam em sociedade com outras iguais, numa incrível teia jurídica de senhorio e vassalagem.


O rei Henrique II foi à coroação de Felipe por ser seu vassalo em vários
feudos. Iluminura medieval em "Grands Chroniques de France"

Os títulos significavam o que diziam, pois rei, duque ou conde desse ou daquele lugar, sobre ele reinava absoluto, tendo apenas que pagar ou receber a vassalagem da terra dada ou recebida em feudo. Nesta incluíam-se também a obediência e o auxílio, caso necessário, mas estes só eram prestados quando havia interesse do vassalo em prestá-los. Assim, o rei ou o duque nada mais eram que grandes senhores a quem outros pagavam tributo pelo uso da terra, e não um chefe de “Estado”, pois este não existia. Aos olhos de hoje, às vezes chegava-se ao ridículo, porque embora reis e duques estivessem no alto da hierarquia, não era raro serem eles vassalos neste ou naquele feudo de seus pares ou mesmo de seus inferiores. Reis vassalos de duques e duques vassalos de condes era comum e não surpreendia ninguém.

Ricardo nada fez pela Inglaterra, mas é o único rei inglês que mereceu a honra de ter
uma estátua equestre em frente ao vetusto parlamento britânico
            
A rebelião de Ricardo e dos irmãos contra o pai foi uma guerra sem amor, como disse um historiador do século XII, e quando eles finalmente se renderam, pedindo perdão e jurando obediência, Henrique se garantiu da sua duvidosa lealdade mantendo a venenosa matriarca Eleanor prisioneira na Inglaterra, vigiada com rigor dia e noite. Ambos há muito viviam separados, mas enquanto Eleanor aparentemente levava vida casta, Henrique deitava e rolava com inúmeras amantes, entre as quais Alys, irmã de Felipe Augusto e noiva de Ricardo, capturada durante a rebelião dos filhos. A sua poderosa família, portanto, era uma das mais acanalhadas no turvo cenário europeu da época.

Manter a decência em sua disfuncional família não parece ter sido uma das
principais preocupações da intelectual e boêmia Eleanor
            
Querendo provar a “lealdade” de Ricardo, o pai o mandou punir os senhores da Aquitânia que se recusavam renderem-se, pondo Ricardo na ingrata tarefa de punir seus próprios ex-aliados. Mas gratidão e decência eram coisas raras no período e o filho tratou de servir com desvelo o pai que lhe seduzira a noiva, arremetendo contra os barões rebeldes. Indignados com a sua “traição”, opuseram-lhe tenaz resistência, mas Ricardo os venceu um a um em brilhante campanha militar, realizando prodígios de bravura e ganhando o apelido com o qual passaria à História: Coração de Leão!
 
Enquanto Ricardo lutava Felipe Augusto era coroado aos dezesseis
anos . Iluminura medieval em "Grands Crhoniques de France"
            
Os relatos dessa campanha são contraditórios, pois, embora nenhum lhe negue a bravura, alguns o acusam de frios assassinatos, horríveis destruições, cruéis massacres e até mesmo incontáveis estupros, mas fosse por interesse, arrependimento ou inclinação, Ricardo foi cavalheiresco com os vencidos e ganhou também, merecidamente ou não, a fama de generoso e correto. Daí em diante foram dez anos de morticínios, traições e intrigas, com todos agindo como cobras vorazes engolindo umas as outras, enquanto a morte dos seus irmãos mais velhos Geoffrey e Henrique o colocava à testa da linha sucessória.

Enquanto a família de Ricardo se entredevorava, o seu valoroso primo Felipe Augusto, com quem tinha difícil relacionamento, e mais tarde viria a ser seu tenaz inimigo, substituíra o bondoso Luis VII no trono francês e aos poucos ganhava força, mostrando-se temível ameaça às possessões inglesas no continente. Muito hábil, jogava os seus primos contra o pai e também uns contra os outros, tirando o melhor partido possível. Como resultado da sua inteligente política, recuperou várias possessões extorquidas por Henrique, entre as quais a importante cidade de Tours, façanha brilhante para a qual contou com a ajuda de Ricardo. Assim, quando o violento rei inglês faleceu em 1189, Ricardo mais que depressa foi a Londres e se fez coroar na catedral de Westminster duque da Normandia e rei da Inglaterra, fazendo armas da monarquia inglesa os quatro leões do seu escudo e o seu lema Pour Mon Dieu Et Mon Droit!

II
O Cavaleiro Cruzado

Apesar de nada fazer de realmente útil, as Cruzadas fizeram de Ricardo o rei mais popular e
famoso da Idade Média - Tela de Merry-Joseph Blondel (séc. XIX)

Mas Ricardo estava se lixando para a Inglaterra, pois, apesar de lá ter nascido e vivido algumas temporadas quando jovem, nunca buscara aprender inglês ou estabelecer laços mais profundos com o povo inglês. Isso não era excepcional, pois a dinastia reinante era francesa e a língua falada pela elite inglesa era o francês, mas o fato mostra o quanto eram frágeis suas ligações com a Inglaterra. Os escassos seis meses vividos em seu reino após a coroação foram dedicados somente a levantar dinheiro e soldados para o que passara a ser o seu principal objetivo: conquistar Jerusalém! Nisto não havia devoção ou cobiça, pois não era apegado à religião ou riquezas, donde se conclui que o projeto se devia apenas à sua insaciável fome de guerras e aventuras. Para ele, quanto mais longínquos e exóticos fossem os países onde elas ocorressem, melhor!
 
Em 1189 Felipe Augusto ocupou Tours e juntou forças antes de ir para
as Cruzadas. Iluminura medieval em "Grands Chroniques de France"

Ricardo corria contra o tempo porque, enquanto estava na Inglaterra, o seu primo Felipe Augusto se fortalecia em Tours, tomada de Henrique II pouco antes com o seu apoio, lá arregimentando o seu grande exército antes de partir para as Cruzadas. Ricardo enfrentava agora um sério dilema, pois se fosse disputar Tours com o primo nenhum dos dois conseguiria viajar à Terra Santa, e isso era a última coisa que desejava. Portanto, confirmou a posse de Felipe e o "tratado de colaboração" existente entre os dois desde a guerra com o seu pai Henrique II. Combinaram também somar forças e partir juntos para a Palestina, onde já estava o famoso imperador alemão Frederico Barba-Roxa à frente de poderoso exército.
          
O imperador Barba-Roxa iniciara a III Cruzada e Ricardo
ansiava partir ao ser coroado. Tela de Max Barack

Logo após a tomada de Jerusalém pelo sultão Saladino em 1187, o Papa convocara nova Cruzada para reconquistar a cidade santa e para lá partira o poderoso imperador alemão Frederico Barba-Roxa, por isso Ricardo não via a hora de partir, pois temia que o imperador ganhasse a guerra antes que ele chegasse e dela pudesse participar. Porém Barba-Roxa morreu afogado quando o barranco do rio por cujas margens passava cedeu e ele caiu nas corredeiras com vários cavaleiros, fazendo com que a cruzada ficasse paralisada devido ao trágico acidente. Ricardo viu então que ainda teria bastante guerra pela frente, podendo se preparar melhor antes de partir porque o filho e sucessor de Barba-Roxa decidira ficar na Alemanha e não participar da campanha.
 

Barba-Roxa e vários cavaleiros cairam em um rio e se
afogaram. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
            
Durante os seus preparativos, massas fanáticas massacraram judeus em toda a Inglaterra, mas, ao invés de se aproveitar da irracional fúria popular para reforçar o seu projeto, Ricardo mandou prender e enforcar vários massacradores sem dar importância aos protestos de importantes prelados da Igreja, tão fanáticos e brutais quanto as ignorantes massas que eles incitavam. Ao partir, ordenou aos regentes que não admitissem perseguição aos judeus e defendessem com firmeza suas pessoas e propriedades, ordem que na sua ausência não foi seguida à risca, pois muitos massacres ainda ocorreram. Mas a sua generosa atitude fora coisa rara na época, e ele não tinha motivos egoísticos para assim agir, o que fez sua fama de justo e generoso aumentar ainda mais.

Antes de partirem para as cruzadas os reis recebiam contritos as bênçãos da Igreja, mas permitiam que
massas fanáticas massacrassem os judeus. Quadro de Jean Baptiste Mauzaisse (séc. XIX)
            
Após fazer pública penitência para se purgar dos pecados antes de iniciar a sagrada missão, ele e o primo Felipe Augusto partiram na primavera de 1191 e chegaram com suas tropas à Sicília, cujo rei, casado com sua irmã Joana, falecera recentemente e fora sucedido pelo príncipe Tancredo, parente próximo e aliado de Henrique, sucessor de Barba-Roxa no trono do império alemão. Querendo haver para si também o patrimônio do tio, Tancredo despojara a rainha viúva e Ricardo exigiu a sua devolução, mas o ganancioso príncipe recusou e a guerra irrompeu.
 
Barba-Roxa e o seu filho Henrique, futuro inimigo de Ricardo e que
mais tarde o prenderia durante meses. Iluminura medieval

Como um raio, Ricardo tomou e saqueou Messina, onde instalou sua base de operações, mas antes que a ilha fosse devastada Tancredo aceitou pagar gorda indenização à rainha viúva, e o “Coração de Leão” rumou para a Terra Santa com a irmã, que levava o Tesouro ganho de Tancredo, e a noiva Berengária, filha do rei de Navarra. Os dois já se conheciam de um torneio, durante o qual ela se apaixonara perdidamente, e quando se organizara a Cruzada ela se fizera simpática ao alistar um pelotão de soldados, coisa bem ao gosto de Ricardo. Eleanor, que patrocinava com ardor o casamento por querer para o filho também o reino de Navarra, vizinho aos seus domínios, a levou à Sicília e lá acertaram o noivado. Precisando do selo do pai da noiva no contrato nupcial, a interesseira raposa Eleanor voltou à França, mas a inocente Berengária e a rainha-viúva Joana viajaram com a frota para a grande aventura.

              E tratando-se de Ricardo aventura era o que não faltaria!


Escultura de Berengária na abadia de L'Epau, na França,
onde viveu como freira após enviuvar de Ricardo
             
Já navegavam próximos à Palestina quando um tufão dispersou a esquadra e o navio, que transportava Berengária e Joana com o seu tesouro ganho na Sicília, aportou na Ilha de Chipre, província do Império cristão-ortodoxo de Constantinopla. Mostrando que as Cruzadas nada mais eram que expedições de rapina, onde religião era apenas pretexto para mobilizar massas fanáticas do Ocidente, o príncipe Isaac Komnenos, governador “cristão” da ilha e primo do duque da Áustria, ignorou tratarem-se de “cruzados” e aprisionou a noiva e a irmã de Ricardo, confiscando o navio e o tesouro!

Ricardo em combate na Palestina. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
         
Quando os demais navios chegaram, nova guerra estourou entre “príncipes cristãos” por conta de pura e simples ladroeira. As coisas estavam difíceis, mas a sorte veio na pessoa de Guy de Lusignan, nobre francês e ex-rei de Jerusalém que o sultão Saladino aprisionara e depois libertara num gesto de generosidade que lhe seria danoso, pois Guy voltara a pegar em armas e desde então lhe movia intensa guerrilha na tentativa de reaver o reino perdido. Guy era parente distante e súdito feudatário de Ricardo na França, mas era também viúvo de uma sua prima muito próxima, a famosa princesa Sibila de Jerusalém, coisa que o fazia membro da família. Assim, foi admitido no estado-maior do rei inglês e mostrou ter sido sua chegada providencial, pois a essa altura Felipe Augusto, que nunca se dera bem com Ricardo, fazia corpo mole e quase não participava da luta.

Com o auxílio de Guy e das Ordens militares, Ricardo triunfou, aprisionou o governador salteador e o humilhou pondo-o a ferros, proclamou-se rei de Chipre e casou-se com Berengária em meio a grandes festas. Na oportunidade, proclamou a mulher também rainha da Inglaterra, onde ela nunca pisara, mas a sua lua de mel durou pouco porque logo a deixou na ilha com a irmã para desembarcar na Palestina e conquistar, junto com Felipe Augusto, a estratégica cidade-fortaleza de Acre após sangrenta batalha. Saladino a tinha ocupado algum tempo antes, impulsionado pela reconquista de Jerusalém, mas agora ela voltava ao domínio dos cristãos pelas espadas de Ricardo e de Felipe Augusto, fazendo a balança da guerra novamente inclinar-se a favor dos cruzados.
  
Ricardo era bom em todo combate, mas seu forte era a conquista das cidadelas
inimigas. Tela de Merry-Joseph Blondel (séc. XIX)
   
Foi aí que ocorreu incidente que prejudicaria a Cruzada e traria funestos resultados futuros a Ricardo. Logo após a custosa vitória, o duque Leopoldo da Áustria, já desgostoso por Ricardo ter posto a ferros em Chipre seu primo Isaac Komemnos, chegou por terra e, sem ter tomado parte na luta, fincou suas bandeiras na cidade como se fosse um dos seus conquistadores. Isto deixou indignados Ricardo e Felipe, que mandaram retirá-las e expulsaram o “usurpador de vitórias”. Fanfarronice e arrogância eram coisas que não faltavam aos príncipes cruzados!

Felipe Augusto diante das muralhas de Acre. Ele tinha grande valor militar, mas era inferior a
Ricardo, de quem tinha grande inveja. Quadro de Merry-Joseph Blondel (séc. XIX)
             
Com Acre segura em suas mãos, Felipe e Ricardo romperam definitivamente e o rei francês voltou à França, mas Ricardo decidiu marchar sobre Jerusalém sem sua ajuda e dos exércitos austro-alemães, que tinham abandonado a Cruzada após vários infelizes acontecimentos, entre os quais o afogamento do famoso imperador alemão Frederico Barba-Roxa. Contando apenas com as próprias forças e as das ordens militares, sobretudo Templários e Hospitalários, Ricardo derrotou Saladino novamente na grande batalha de Arsuf, mas sérios problemas na retaguarda o impediram de ir adiante. Imobilizado no sul após a vitória, Ricardo voltou à fortaleza de Acre e cometeu absurdo ato de crueldade, que se não fora pelas brutais necessidades da guerra teria manchado para sempre a sua honra de cavaleiro.

Ricardo derrotou sozinho Saladino na grande batalha de Arsuf, mas recuou devido a
problemas na retaguarda. Tela de Eloi Firmin Feron (séc. XIX)

Durante a luta fizera dois mil e setecentos prisioneiros, e não tendo como mantê-los nem como afastar-se da sua base sem correr o perigo de perdê-la por conta de possível rebelião dos presos, propôs a Saladino libertá-los mediante resgate, mas o sultão viu o fardo que eles eram para o seu adversário e recusou. Furioso, Ricardo os executou  a sangue frio, promovendo enorme carnificina que horrorizou até mesmo os seus mais brutais soldados.

A matança de dois mil e setecentos prisioneiros em Acre é a mancha mais
negra na vida de Ricardo. Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Porém Saladino vira que esticara demais a corda e reconheceu que não lhe deixara opção, por isso foi moderado ao condená-lo pelo horrendo ato de crueldade, contentando-se com uma lição de moral e a "modesta represália" de durante duas semanas decapitar todos os cruzados que caíssem em suas mãos! Isto mostra que os critérios de "humanidade" da época eram bastante diferentes dos de hoje. O próprio Ricardo estava confuso com a infame desgraça que praticara, mas a resposta elegante e "moderada" de Saladino, com poucos insultos e maldições, o tranquilizou e parece que este foi um dos atos cavalheirescos do seu opositor que o fez para sempre estimar o sultão.

Contando apenas com o apoio das Ordens religiosas, Ricardo retomou a
ofensiva contra Saladino. Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)
             
Mas uma desgraça nunca vem sozinha. Guy de Lusignan lhe prestara grande ajuda em Chipre e ele retribuíra apoiando-o na luta pelo presuntivo trono de Jerusalém contra Conrad de Montferrat, primo do novo imperador alemão e preferido pelos barões. Feita uma eleição, Conrad ganhou e Ricardo teve de se conformar ao voto majoritário, mas pouco tempo depois Conrad foi assassinado e Ricardo casou depressa a viúva com um seu sobrinho, levantando fundadas suspeitas sobre o seu envolvimento no crime.

Além da inimizade do duque da Áustria, Ricardo tinha agora também a inimizade do imperador alemão, a quem já ofendera ao humilhar outro seu parente próximo: o rei Tancredo da Sicília! Suas tensas relações com Felipe Augusto já tinham sido rompidas e o rei francês voltara à França para sabotá-lo, o mesmo tendo acontecido com o duque Leopoldo, que voltara à Áustria após tornar-se seu inimigo, de sorte que Ricardo agora conduzia a Cruzada quase sozinho, contando apenas com o apoio de Guy e dos Cavaleiros das Ordens religiosas. Fosse outro desistiria, mas o Coração de Leão não esmoreceu e rechaçou várias contra-ofensivas de Saladino, retomando a iniciativa e de novo aproximando-se de Jerusalém.
  
Felipe Augusto tornou-se inimigo de Ricardo e o sabotou. O fracasso da III Cruzada deve-se
a ele. Tela de Louis-Félix Amiel (séc. XIX)

O esforço dos dois lados até então fora enorme e todos estavam esgotados. Uma trégua extra-oficial instaurou-se, permitindo que durante meses Ricardo e Saladino negociassem intensamente, trocando presentes e gentilezas, sem todavia chegarem a uma conclusão satisfatória. Fala-se que o casamento da sua irmã Joana, rainha-viúva da Sicília, com um irmão de Saladino chegou a ser tratado, mas a rainha recusou quando soube que seria apenas a "1ª esposa" em um harém de várias outras. Dizem que foi também sugerido seu casamento com uma irmã de Saladino, pois a poligamia era legal entre os muçulmanos, mas não entre os cristãos, porém Ricardo teria dito ao sultão que se este lhe desse Jerusalém como dote da noiva ele obteria do Papa a anulação do seu casamento com Berengária e o matrimônio cristão-muçulmano se realizaria sem empecilhos, pois a Igreja era muito solícita com os príncipes nessas questões e concedia anulações de casamentos nobres com grande facilidade. Erroneamente Ricardo pensara poder conquistar Jerusalém por meios familiares ao invés de militares, porém, verdade ou lenda, Saladino achou o dote exigido alto demais e a ideia foi esquecida.

Ilustração em obra do século XIX sobre lendário encontro de Ricardo e
Saladino para tratar do casamento de Joana com o irmão do sultão

Fosse por estas ou por outras razões, Berengária e Joana também abandonaram a Cruzada e voltaram à Europa, mas Ricardo não se perturbou com a partida delas e aproveitou a ausência da mulher para vender Chipre aos Cavaleiros Templários, pois precisava desesperadamente de dinheiro. Com a fortuna obtida, se fortaleceu e reiniciou a ofensiva, tendo vitórias e derrotas parciais até obter vitória maior que lhe abriu o caminho para o seu objetivo final.


Ricardo marchou sobre Jerusalém com todas as suas forças após o fracasso das conversações
com Saladino. Tela de James William Glass (séc. XIX)

Bem mais velho que o seu adversário, Saladino estava bastante doente e morreria no ano seguinte, mas ainda tinha suficiente ânimo combativo para arregimentar o seu grande exército e preparar-se com invulgar energia para travar a batalha decisiva em frente às muralhas de Jerusalém. Ricardo, muito mais jovem e saudável, estava possuído de enorme determinação e marchou para a batalha à frente de suas motivadas tropas abrindo caminho a ferro e fogo, mas quando já avistava as torres da cidade santa, onde o aguerrido exército muçulmano o esperava para o tudo ou nada, recebeu urgente mensagem da Europa: seu irmão João sem Terra tramava com seu primo Felipe Augusto usurpar-lhe o trono e despojá-lo dos seus domínios!

De nada adiantaram a Ricardo suas vitórias, pois a sabotagem  dos seus parentes
o venceu. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
           
Vendo que não mais poderia se demorar no Oriente, Ricardo interrompeu a marcha e pediu um armistício. Após rápidas conversações, fez um apressado Tratado de Paz com Saladino e escreveu-lhe carta de despedida que é um dos mais perfeitos exemplos de cavalheirismo da História: saiba vossa alteza que em minha vida tive muitas honras, porém a maior delas foi o privilégio de ter como adversário o grande Saladino, o mais bravo e honrado de todos os guerreiros!

Saladino respondeu à altura: mais privilegiado do que vossa alteza fui eu, pois se não houvera nascido Saladino quisera a honra de ter nascido Ricardo!

Este foi por certo o momento mais alto da Cavalaria Medieval.


III
O Infeliz Regresso

Ricardo diz adeus à Terra Santa sem ter conseguido conquistar Jerusalém.
Gravura de Alphonse-Marie-Adolphe de Neuville (1883)
           
Uma das coisas que mais contribuíram para a imensa popularidade de Ricardo foi não gostar dos ambientes sofisticados, com suas etiquetas e frivolidades. Estivesse ocupado nas guerras ou relaxando nas caçadas e nos torneios, preferia sempre as tendas aos castelos, e numas ou noutros o seu divertimento era comer e beber com os amigos, geralmente guerreiros dos mais diversos níveis sociais, tocando, cantando e travando duelos poéticos sobre temas lúbricos e chistosos, o que o fazia aos olhos do povo modelo perfeito e acabado do “bom companheiro”. Ressalte-se que as massas da época não esperavam dos senhores “boa administração”, conceito para elas desconhecido, mas tão somente simpatia, simplicidade, atenção e bom tratamento no convívio pessoal. Um rei que lhe fosse próximo, decidido, valente, aventureiro, simpático e generoso, era tudo que o povo queria de um bom monarca, e Ricardo personificava esse ideal mesmo estando centenas de léguas distante.

Levando ao extremo sua irresponsabilidade e sede de aventuras, resolveu temperar sua viagem de volta com mais algumas e, ao invés de rumar direto a França pelo mar Mediterrâneo, como seria obvio, subiu o mar Adriático e desembarcou no seu litoral norte, próximo à Áustria. Com meia dúzia de amigos tão malucos e aventureiros quanto ele, disfarçou-se de humilde peregrino e entrou a pé nos domínios do duque Leopoldo, seu inimigo. Este soube do desembarque, mas achou que Ricardo tinha algum negócio no norte da Itália e por lá resolvera passar antes de chegar à França, porém, quando não teve notícias dele em território italiano, veio-lhe a suspeita de que o rei pretendia cruzar incógnito a Áustria para depois ridicularizá-lo, vangloriando-se por toda a Europa: “passei cantando e tocando guitarra pelas barbas de Leopoldo e o imbecil nem percebeu”!

Mesmo sendo isso absurdamente irracional e improvável, Leopoldo sabia que de Ricardo se podia esperar qualquer tipo de maluquice, e colocou seus guardas à espreita. Não demoraria muito, pois arrogantes cavaleiros bancando humildes peregrinos era coisa ridícula que não enganava ninguém. Por onde passavam, a farsa logo era percebida, e quando entraram altivos numa estalagem ordenando vinho e frango assado, iguarias de ricos, a polícia local foi acionada e foram todos presos.

Versão romantizada da captura de Ricardo na Áustria. Na verdade ele e seus cavaleiros
vestiam trajes civis e não houve luta. Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Leopoldo logo libertou os cavaleiros mediante módico resgate, mas resolveu punir Ricardo com longo período de prisão em recôndito castelo, enquanto combinava com o imperador alemão o que fazer com o ilustre prisioneiro. Foi em sua solitária prisão no remoto castelo de Durstein que Ricardo recebeu a notícia da morte por causas naturais do sultão Saladino, seu galante adversário, fato que agravou ainda mais o seu triste estado de espírito. Há notícia de que em sua solidão escreveu poema lamentando a morte e exaltando as virtudes do grande estadista muçulmano, mas não há certeza e nada chegou até nós.

O islamismo proíbe escultura de animais e de pessoas, mas abriu
exceção para Saladino. Estátua sua no museu de Damasco

Ricardo esperava ser tratado com dignidade e respeito pelos seus captores, pois não podia imaginar que príncipes cristãos fossem inferiores em generosidade e nobreza no trato com seus pares a príncipes muçulmanos, como Saladino, mas enganou-se redondamente, pois cavalheirismo não era virtude comum entre os potentados do Ocidente. O imperador alemão Henrique, filho do famoso Barba-Roxa, era também inimigo de Ricardo por ter este humilhado seu sobrinho Tancredo na Sicília e possivelmente participado do assassinato de Conrad de Montferrat, também seu parente próximo. Por isso não só ficou imensamente feliz ao saber que o leão estava na jaula, como decidiu com Leopoldo não lhe dar privilégios maiores e dele tirarem a maior vantagem possível, apesar de não haver qualquer estado de guerra entre eles.

Ruínas do castelo de Durnstein na Áustria onde Ricardo foi aprisionado
e provavelmente recebeu a notícia da morte do sultão Saladino
            
Nada estava ainda decidido quando surgiram rumores de que “comandos” de audazes cavaleiros se preparavam para libertar o idolatrado chefe. O boato dizia que, incertos do castelo onde o rei estava preso, um dos cavaleiros disfarçara-se de trovador e fora de castelo em castelo cantando ao pé das muralhas canção cujo estribilho-resposta jocoso só era sabido por ele e por Ricardo. Quando finalmente ouvira ser cantado da janela de um dos castelos o estribilho, tivera certeza do paradeiro do rei e informara aos demais, que agora se preparavam para libertá-lo em fulminante operação de “comandos”. Verdade ou lenda, Leopoldo ficou amedrontado e entregou Ricardo ao poderoso imperador alemão, que tinha muito mais recursos para manter segura a valiosa presa.

Visão poética das ruínas do castelo de Durnstein onde Ricardo foi
prisioneiro. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)
            
Era ilegal prender um cavaleiro cruzado, que dirá um rei que voltava da guerra santa, e o fato causou grande escândalo, fazendo com que o Papa excomungasse o duque e o imperador. Mas os dois pouco se incomodaram e, agindo como chefes mafiosos, cobraram da riquíssima Eleanor fabuloso resgate pela liberdade do filho querido. Ela se pôs em campo para obter a alta soma exigida e foi aí que a bandalheira se tornou realmente cômica, pois João Sem Terra e Felipe Augusto ofereceram ao duque e ao imperador soma maior ainda para que NÃO O SOLTASSEM! Seguiu-se ridículo leilão onde o "PRENDE" e o "SOLTA" ficou ao sabor do “QUEM DÁ MAIS” até que Eleanor fez irrecusável lance, equivalente hoje a dois bilhões de libras esterlinas, o dobro da arrecadação anual da Inglaterra na época. Após um ano de prisão e um dos mais absurdos “leilões” da História, o imperador o soltou, mas antes escreveu aos dois cretinos parentes de Ricardo: “Cuidem-se! O diabo está novamente à solta”!

Estátua de Felipe Augusto. O seu ódio a Ricardo fê-lo oferecer alta soma
ao imperador alemão para que o mantivesse na prisão
            
Ao voltar, Ricardo encontrou seus domínios em péssima situação devido às rapinagens do seu irmão João sem Terra e dos altíssimos impostos lançados para pagar o seu resgate, mas em vez de contemporizar os elevou ainda mais, espremendo os seus súditos ao máximo e fazendo com que revoltas estourassem em toda parte. Em meio à confusão, João sem Terra encolheu-se, mas Felipe Augusto aproveitou a balbúrdia para declarar guerra a Ricardo e este o derrotou batalha após batalha, forçando-o a pedir a paz em termos extremamente desfavoráveis. Curiosamente, nos três anos de paz que se seguiram o Coração de Leão não empregou os frutos materiais das suas vitórias em exércitos e armamentos, mas em uma nova paixão artística: a arquitetura!

Seu amor pela música e pela poesia era antigo e muito conhecido, tendo um dos seus poemas-canção, Nenhum Homem Aprisionado, se tornado bastante popular em toda a Europa após compô-lo em sua prisão austríaca e o enviar a uma de suas irmãs dotada de gosto literário, a qual se encarregou de transformá-lo em importante peça de propaganda na campanha pela sua libertação. Mas sua paixão pela arquitetura era nova e surpreendeu a todos. Ele não só fez a planta como dirigiu pessoalmente a construção do famoso Chateau Gaillard, que se tornou um marco arquitetônico tanto pela beleza como pelas inovações na arte da edificação dos castelos, isto na mesma época em que as magníficas catedrais góticas eram erguidas e revolucionavam a arte da edificação das igrejas.


Desenhado e edificado por Ricardo, o Chateau Gaillard hoje está em ruínas, mas foi uma
revolução na arte da construção de castelos
    
Embora fosse um guerreiro em toda a sua essência e tenha praticado terríveis crimes e crueldades, não há evidências de que Ricardo tivesse instinto sanguinário ou perverso, pois eram conhecidos os seus atos de generosidade desinteressada. Por outro lado, são indiscutíveis os seus dotes artísticos e, se nenhuma obra poética ou musical de sua lavra chegou até nós, isto deveu-se ao seu caráter dispersivo e relaxado. Ademais, não existia escrita musical nem imprensa na época, o que fazia com que músicas apenas se transmitissem pelo ouvido e poemas apenas por cópias manuscritas. Se as músicas não fossem conservadas por corais de igrejas, e os poemas por bibliotecas de mosteiros, desapareceriam com o autor ou não resistiriam ao passar dos séculos, o que explica porque nenhum poema ou canção de Ricardo chegou até nós. Porém o Chateau Gaillard era de pedra e cal, o que permitiu aos modernos arquitetos atestarem o seu valor como obra de arte e de engenharia, mesmo estando hoje em ruínas.

Após terminá-lo, Ricardo ficou encantado com a sua obra e fez do castelo palácio real e sede de governo. Nele chegou ao auge do seu poder ao ver ser eleito Sacro Imperador Romano-Germânico o seu sobrinho Otto da Saxônia, em sucessão do falecido imperador Henrique, seu inimigo que o prendera e humilhara ao lhe extorquir o bilionário resgate.
 
Na primavera e no verão de 1198 Ricardo promoveu brilhantes caçadas, torneios e festas em seu belo castelo recém-construído, passando horas banqueteando-se em meio a desafios poéticos e musicais, nos quais demonstrava para os nobres convidados toda a sua habilidade literária e artística. Não há notícia de que Berengária tenha vivido com ele em Chateau Gaillard, embora ambos tenham estado sob o mesmo teto por um período depois que ele voltou do cativeiro, indo à missa juntos em obediência às ordens do Papa. Tal convivência forçada mostra que ele, além de mau filho, mau irmão e mau rei, era também mau marido. Só não se pode dizer que também era mau pai porque, apesar de jamais ter convivido com o filho bastardo Felipe de Cognac, o reconheceu e lhe deu títulos nobiliárquicos junto com valiosas propriedades.

Mas em defesa de Ricardo deve-se dizer que seu pai e irmãos não lhe eram eticamente superiores, e os príncipes do seu tempo raramente tinham conduta diferente da sua no que se refere aos cuidados com a administração dos reinos e o bem-estar dos súditos. Na verdade, por viver bastante próximo do povo, Ricardo era bem melhor do que todos eles, e foi por isso que se tornou tão popular e querido.

             
IV
O Rei Morre ao Entardecer
 
O belíssimo sarcófago de Ricardo na abadia de Fontenevraud no interior da França
            
Para quem acredita em destino, o de Ricardo não era viver e morrer no conforto aconchegante de um belo castelo, mas no campo de batalha. E assim foi!

Mal se encerrara a brilhante temporada de festas de 1198 no galante Chateau Gaillard, revoltas eclodiram em toda a Aquitânia e Ricardo pôs-se em marcha no início do outono. Como de hábito, capturou os castelos inimigos um após o outro e submeteu os barões rebelados, mas deixou atrás de si horrível rastro de miséria e destruição.
As guerras entre os príncipes feudais consistiam basicamente na conquista
dos castelos do inimigo. Quadro de Eloi Firmin Feron (séc. XIX)
            
No início da primavera de 1199, cercou um dos últimos castelos ainda insubmissos e, como era do seu costume, foi pessoalmente inspecionar as muralhas adversárias para anotar os pontos mais favoráveis ao massivo ataque que faria em breve. O fato de estar sempre na linha de frente e de jamais ter sofrido ferimentos graves dera-lhe sentimento de imunidade e tornara-o descuidado, a ponto de só vestir a armadura na hora do combate, mesmo em campanha. Assim, sem sequer colocar a cota de malha, foi fazer a inspeção, durante a qual teve sua atenção atraída por guarda inimigo que fazia palhaçadas no alto da muralha, e começou a trocar piadas com ele enquanto se aproximava perigosamente para ouvir melhor. Disto se aproveitou outro guarda para disparar flecha certeira que se cravou no seu ombro, próximo ao pescoço.

O sarcófago de Ricardo está junto aos dos seus pais e de uma cunhada
em imponente galeria da milenar abadia
             
O ferimento não foi grave e ele voltou andando a tenda, onde “cirurgião” de mãos imundas extraiu a flecha, mas causou-lhe grave infecção que se espalhou rapidamente, impedindo-o de participar da conquista do castelo, a que assistiu febril da sua maca. Esta derradeira vitória permitiu-lhe praticar o seu último ato de cavalheirismo, pois o quase adolescente autor do disparo foi capturado e levado à sua presença. Perguntado por que atirara durante conversa amigável entre o rei e seu colega, respondeu que Ricardo matara seu pai e dois irmãos mais velhos, razão pela qual aproveitara a sua distração para vingar-se. O rei disse-lhe que a vingança era nobre, mas como qualquer outro ato da vida jamais deveria ser feita à traição. Em seguida o perdoou por ser muito jovem, e para que se lembrasse a cada nascer do sol de que o seu novo dia se devia à generosidade de Ricardo! Por fim, mandou dar-lhe 100 xelins, uma boa quantia na época, e o libertar.

Baseada em sua máscara mortuária, a escultura do seu rosto no sarcófogo
é o retrato mais fidedigno que temos de Ricardo
            
Mas os soldados não eram tão compreensivos e disseram ao rapaz que rezasse para que um milagre salvasse a vida do rei, pois se ele morresse suas ordens não seriam cumpridas. E foi o que aconteceu. Após sua morte o jovem assassino foi cruelmente torturado e depois enforcado. Nem todos possuíam o coração cavalheiresco daquele a quem chamavam o "Coração de Leão"!

Chamada às pressas, Eleanor chegou com os mais importantes ministros para anotar suas últimas vontades e assistir seus momentos finais. Após fazer legados e donativos em profusão aos amigos e aos mosteiros, pediu o perdão daqueles a quem ofendera e, nos braços da sua querida mãe, deixou este mundo ao por do sol do dia 06 de abril de 1199 e foi viver para sempre no mundo da aventura e da fantasia.

A coincidência do “fim dos seus dias” com o “fim do dia” fez um cronista da época escrever: Ao entardecer o rei partiu com o seu amigo Sol para novas aventuras em firmamentos distantes!

           

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Post nº 59

LEGIÃO  ROMANA  -  O  MELHOR  EXÉRCITO  DE  TODOS  OS  TEMPOS

As legiões romanas também sofreram graves derrotas, como na batalha de
Tautenburgo (9 DC), mas estas foram poucas e se deveram basicamente
à incompetência do general comandante

Embora não fossem imunes a eventuais derrotas, as legiões romanas foram as maiores
colecionadoras de vitórias de todos os tempos


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Na história dos Impérios nenhum foi tão duradouro e tão extenso em relação ao mundo conhecido da sua época quanto o Império Romano. Tampouco outro marcou ou influenciou tanto a História da Civilização quanto ele, a ponto de podermos afirmar que passados 1.600 anos ainda vivemos cultural e espiritualmente à sua sombra, pois todas as nossas instituições políticas, administrativas e religiosas, assim como muitas outras menos importantes, descendem diretamente dele. A mais visível é o Papa em Roma dando a sua bênção semanal URBI ET ORBI na enorme Praça de São Pedro!

As causas do seu surgimento, duração e sucesso têm sido objeto de acurados estudos desde que a moderna historiografia foi criada no século XVIII, mas entre todas as apontadas três se destacam: a organização jurídica da sociedade, a organização administrativa do Estado e a organização militar do Exército; em resumo: o Direito, o Estado e o Exército! Sobre este faremos uma breve descrição e teceremos algumas considerações sem qualquer pretensão acadêmica, visando tão somente dar ao leitor uma idéia da máquina de guerra que durante meio milênio assegurou a uma cidade de modesta origem no interior da Itália o domínio ou influência sobre três quartos do mundo conhecido no seu tempo.

O Império Romano em sua máxima extensão durante o governo do imperador Trajano - século II DC

Ao primeiro exame, o Império de Roma surpreende por sua enorme extensão: das praias de Portugal no oceano Atlântico às praias da Turquia no mar Negro; do estreito de Gibraltar no Marrocos às praias do mar Vermelho no Egito; da nascente do rio Tâmisa na Inglaterra à foz do rio Eufrates no Iraque; das florestas do alto rio Danúbio às areias do deserto da Mauritânia; da foz do rio Reno às cataratas do rio Nilo, sendo de notar que na época do imperador Trajano (início do século II DC) ele foi ainda mais longe, chegando às praias do mar Cáspio e do golfo Pérsico no oceano Índico. Porém, mesmo depois que o imperador Adriano o fez recuar para suas fronteiras vigentes no século I DC, o Império era enorme unidade política que tinha o mar Mediterrâneo como lago interior e da qual faziam parte todas as nações civilizadas da Europa, África do Norte e Oriente Próximo! A pergunta que se impõe, portanto, é: como pôde uma imensa parcela da superfície terrestre, que os mapas atuais mostram abranger dezenas de países, com povos, línguas e culturas diferentes, ser submetida durante séculos à autoridade de uma cidade do interior da Itália, por maior e mais próspera que ela fosse, sobretudo quando se sabe que era menor e menos próspera que outras cidades da sua época, como Cartago e Alexandria por exemplo?

As legiões tinham número, nome e estandartes próprios. A XX Legião "Valeria Victrix"
                 tinha por símbolo o javali e ficou três séculos aquartelada na Britannia

O Estado Romano e sua sabedoria política têm papel fundamental na ocorrência e durabilidade do fenômeno, mas deste sequer poder-se-ia cogitar se não fora por seu Exército. A primeira coisa que nele chama a atenção é o fato de ter surgido como um exército voluntário de cidadãos, tal como ocorria com os exércitos das cidades gregas. Cada adolescente romano era desde cedo educado não só no entranhado amor à pátria e às suas instituições como nas artes marciais, de forma que ao tornar-se adulto era um soldado treinado que dispunha dos seus próprios apetrechos de guerra e já ia armado dos pés à cabeça atender ao chamado dos seus maiores para a guerra. Passada a tempestade, o soldado guardava suas armas em casa e voltava às atividades habituais da sua vida civil. Tal sistema funcionou bem durante séculos enquanto as guerras eram com cidades rivais da Península Itálica e exigiam apenas meia dúzia de milhares de homens, mas quando Roma finalmente dominou toda a Itália e tornou-se grande potência, teve que manter um exército permanente para o qual seus cidadãos disponíveis não eram suficientes nem adequados. A medida adotada foi estender a cidadania romana aos habitantes das cidades italianas conquistadas, mas isso só ocorreu a duras penas ao longo dos século II e I AC e foi de pouca ou nenhuma valia, pois apesar de abafada a hostilidade ao inimigo de ontem ela continuava a existir. A solução foi o exército voluntário de cidadãos ceder lugar ao exército de soldados profissionais, processo longo que só se completou no século I AC durante as ferozes guerras civis que sacudiram a República e preludiaram o seu fim, substituindo-a pelo regime imperial na metade final do referido século. Mas isso não causou qualquer prejuízo ao seu valor combativo, pois este se devia mais às táticas de batalha do que ao patriotismo do combatente. Ademais, a grande maioria dos soldados profissionais do exército permanente continuava a ser constituída por cidadãos romanos, que agora tinham no exército mais uma opção de vida e de realização pessoal.

Imperador Trajano (96-117 DC). Sob o seu governo Roma atingiu o apogeu político
                        e militar, mas o seu exército não ultrapassava 200.000 homens

O que nos interessa aqui é a tática de combate que permitiu transformar-se o exército romano na mais formidável máquina de guerra que o mundo já conheceu. Esta era corporificada na formação de batalha que recebeu o nome de Legião e tudo indica que no início ela confundia-se com o próprio exército, pois este não devia ter mais do que o número de soldados tecnicamente requeridos para constituir aquela: 6.660! A palavra vem de legere, que significa eleger, escolher, recrutar, e legio seria o substantivo designando o grupo de cidadãos escolhidos para as funções de combatentes na guerra que se avizinhava. Reza a tradição que a sua organização foi estabelecida pelo cônsul Camilo Fúrio no século IV AC e graças a ela nos cem anos seguintes Roma submeteu ao seu poder toda a Península Itálica, mas no século III AC as Guerras Púnicas exigiram sua reorganização para enfrentar guerras em grande escala, até então desconhecidas dos romanos. O seu novo formato durou até a invasão dos Címbrios, que lhes infligiram graves derrotas só a muito custo contornadas, e isto provocou nova reorganização feita pelo cônsul Caio Mário no final do século II e início do século I AC. Com pequenas modificações feitas por Júlio César, a estrutura da legião se manteria a mesma por mais de trezentos anos, até praticamente o reinado de Diocleciano no final do século III e início do século IV DC. Até então ela era constituída basicamente pela infantaria, mas a partir daí seus batalhões foram sendo substituídos por batalhões de cavalaria, típicos dos exércitos orientais. Com a inversão de papéis, passando a cavalaria a principal e a infantaria a acessória, mais as desastrosas reformas de Constantino, que a subdividiu e a enfraqueceu por medo de possíveis rebeliões de generais ambiciosos, a legião se amesquinhou e se descaracterizou totalmente, guardando o antigo nome mais por amor à tradição do que por rigor técnico-militar. Só no Ocidente, onde o cavalo ainda era raro, a legião manteve algo da sua estrutura tradicional, mas na grande batalha dos Campos Catalúnicos (451 DC), quase no apagar das luzes do Império do Ocidente, o seu efetivo não passava de 2.000 homens, e o general Aécio, cognominado "O Último Romano", não teria vencido Átila se não fosse pela poderosa cavalaria dos seus aliados Francos e Visigodos. 

A eficiência do legionário tornou-se célebre. Ainda hoje quando se quer dizer que um guerreiro
é letal o chamamos de "centurião" (cena de filme recente com este título)

O segredo da eficiência da legião durante o período clássico (século I AC a II DC) reside na sua divisão em unidades e subunidades altamente treinadas para funcionarem como peças destacáveis que se encaixam e desencaixam no todo ao comando do líder durante a batalha. Esse mecanismo passou por várias alterações, mas nenhuma foi radical e ele subsistiu durante os séculos mencionados. Vejamos o seu funcionamento.

A unidade básica da legião é a decúria, grupo de dez homens comandados por um decano ou decurião, posto hoje equivalente a sargento ou tenente, e que integra uma centúria, unidade militar com dez decúrias comandada por um centurião, posto que equivaleria hoje a capitão ou major. Duas centúrias formavam um manípulo, que equivaleria ao atual batalhão, e três manípulos formavam uma coorte, que equivaleria ao atual regimento. O manípulo foi abolido no começo da Era Imperial, mas isso em nada alterou a estrutura da coorte, que manteve o mesmo número de centúrias e de soldados. A coorte é a unidade operacional por excelência, pois com os seus 666 homens não é tão grande que perca sua mobilidade e capacidade de manobra, nem tão pequena que perca seu poder e eficácia. Dez coortes formam a legião com 6.660 homens caso esteja tecnicamente completa. Tanto a coorte como a legião são comandadas por altos magistrados civis dotados de experiência militar, nomeados pelo Senado na época republicana e pelo Imperador na época imperial, sendo o tribuno-militar para a primeira e o legado para a segunda. Em termos atuais, o tribuno equivaleria a coronel e o legado a general. Com o tempo, a escolha passou a recair em oficiais profissionais e os postos militares-políticos tornaram-se postos militares-de-carreira a que se chegava através de promoção, deixando de ser aquilo que nós chamamos cargo de confiança.

Havia grande variedade de postos inferiores cujos titulares poderíamos chamar de suboficial, a maioria na área auxiliar (cozinheiro, carpinteiro, ferreiro, notário, tesoureiro, enfermeiro, etc), mas havia muitos na área combatente (ajudante de oficial, tambor, mensageiro, corneteiro, porta-estandarte, etc). Todos eram comissionados com uma gratificação que lhes tornava o soldo bem maior e usavam as insignias do seu posto, mas os do área auxiliar, por não serem treinados para lutar, não faziam parte de unidades de combate e só lutavam em casos extremos, ficando por isso na reserva durante as batalhas, mas não era raro chegarem ao oficialato como prêmio ao seu bom serviço de apoio. Já os da área combatente eram legionários propriamente ditos e lutavam com suas unidades, sendo o posto de porta-estandarte muito perigoso porque o inimigo sempre o atacava visando capturar o símbolo que portava. Por isso era muito bem pago e protegido. Exercer a função de ajudante-de-oficial ou de porta-estandarte era degrau certo para rapidamente atingir o oficialato, embora não necessariamente.

O exército era meritocrático. O soldado humilde que fosse
talentoso subia. Tela de Victor Schnetz (séc. XIX)

De notar que usamos aqui o termo "auxiliar" para designar os soldados da legião que atuavam na sua área de logística e que por isso não estavam sujeitos ao duro treinamento do "legionário" destinado ao combate, todavia na terminologia romana os "auxiliares" eram tropas provinciais que se destinavam à manutenção da ordem interna local e não à guerra. Quando esta ocorria e a legião partia para a batalha, os seus quartéis ficavam aos cuidados dos "auxiliares" até o seu regresso. A grosso modo, poderíamos comparar as "tropas auxiliares" dos romanos às nossas "polícias militares" estaduais.

No que diz respeito à legião como formação de batalha propriamente dita, sabemos que quando tecnicamente completa ela tinha 6.660 homens, assim escalonados: a) decúria: 10 homens + 1 decurião = 11; b) centúria: 10 x 11 = 110 + 1 centurião = 111; c) manípulo: 2 x 111 = 222; seu comandante era o centurião mais antigo, “major”, porém o manípulo foi abolido no século II DC e centurião-major virou posto de carreira; d) coorte: 3 x 222 = 666; o tribuno-militar seu comandante era um delegado do Senado ou do Imperador e raramente era militar de carreira; Trajano mudou isto no século II DC e o cargo de tribuno-militar virou posto de carreira, equivalente a coronel ou general-brigadeiro atual; e) legião: 10 x 666 = 6.660; era comandada por um legado, geralmente assistido por 1 ou 2 legados-adjuntos; eram todos civis indicados pelo Senado ou pelo Imperador, mas com o tempo legado e legado-adjunto, equivalentes aos atuais generais de divisão e brigada, também viraram postos de carreira.

Caso queiramos comparar com o exército moderno teremos: a) decúria = pelotão, decurião = tenente; b) centúria = companhia, centurião = capitão; c) manípulo = batalhão, centurião-major = major; d) coorte = regimento, tribuno-militar = coronel; e) legião = divisão, legado = general de divisão (o legado-adjunto seria o general-brigadeiro). O general comandante de várias legiões reunidas em exército (general-de-exército) era o magister milite, devendo-se notar que a palavra "exército" é romana e decorre do fato das tropas estarem sempre treinando, fazendo exertitius (exercícios). O povo apelidou a corporação militar de exertitius e o tempo transformou o apelido no vocábulo latino exercitus, usado daí em diante para nomeá-la oficialmente. Verifica-se, portanto, que até o século II somente havia 2 postos de oficial de carreira no exercitus: o decurião e o centurião! Mesmo depois, a centúria continuou a ser a unidade-letal do exército: nem tão grande que perdesse em mobilidade, nem tão pequena que perdesse em eficácia! O centurião era e continuou sendo o seu oficial-símbolo, sinônimo de dureza e eficiência. Graças às suas periódicas transferências de guarnição, a disciplina e os usos militares eram os mesmos tanto numa legião do Oriente Médio como noutra do norte da Europa, fazendo do Exército a instituição mais sólida e homogênea do Império, não obstante as dezenas de nacionalidades diferentes dos seus soldados.

Novamente frisamos que a organização apresentada acima é a "clássica" e vários autores nos mostram a legião com organização diversa, mas devemos lembrar que ela nunca deixou de ser um organismo em constante mutação, sempre se adaptando às diferentes condições geográficas, climáticas e até mesmo políticas, sociais e econômicas em que atuava, por isso há pouca semelhança entre a legião do século I e a legião do século IV ou do século V. Mas o fato concreto é que qualquer que seja o seu formato em determinado momento histórico as suas características principais, eficiência e maleabilidade, são preservadas e fazem dela a melhor formação combativa da antiguidade.    

Mas continuemos a nossa análise. Os oficiais inferiores e soldados raramente eram transferidos, porém os oficiais superiores nunca serviam mais de quatro anos na mesma unidade, sendo três anos o tempo médio. Um soldado bravo, disciplinado e inteligente podia chegar ao posto de centurião com dez anos de serviço, de sorte que durante os restantes vinte ou trinta anos de carreira (a aposentadoria aos trinta anos de serviço não era obrigatória para os oficiais superiores, que podiam ficar nas fileiras até os sessenta anos de idade) ele serviria no mínimo em cinco legiões diferentes sediadas nos pontos mais diversos do Império. Os motivos disso eram evitar que o oficial criasse laços demasiadamente estreitos com a tropa, que o induzissem a sonhos de grandeza política, e a promover a homogeneidade do idioma, usos e costumes romanos em todas as guarnições militares espalhadas pelo vastíssimo território imperial. Assim, um oficial egípcio mandado servir na Britannia era tão romano quanto um oficial britânico mandado servir no Egito, dando-lhe a certeza de pertencer a algo muito maior do que a sua modesta província de origem. Para ele a pátria era o Império Romano e não a região onde nascera.

Disciplina e sintonia entre comandante e comandado na Legião eram
              a chave do seu sucesso militar. Cena do filme "Gladiador"

Cargo vital na estrutura militar era o de administrador de quartel fixo ou móvel (praefectus castrorum). No início era cargo civil, mas logo virou cargo comissionado de oficial de carreira e sua autoridade só era suplantada pela do comandante da tropa. Quando grandes quartéis permanentes ergueram-se em pontos fixos do Império a partir do século I DC, o encarregado de cada castrum virou o verdadeiro representante militar romano na região, embora fazendo o possível para não parecer tal ao comandante da guarnição, que podia puni-lo, demiti-lo e até mesmo executá-lo.

Mas nenhuma organização teoricamente concebida funciona na prática se não houver duas coisas: bom comando e bom soldado! Roma deu a máxima atenção aos dois. Os comandantes eram selecionados entre os melhores oficiais e estes entre os melhores soldados, os quais eram exaustivamente treinados na mais rígida disciplina para tornarem-se frios peritos na arte de matar. Esta chegou ao ponto de proibir que eles gritassem com o inimigo para economizar energia e concentrarem-se com frieza e racionalidade na tarefa de matá-lo com rapidez e eficiência. Chegou até mesmo, caso único na história e contra toda a lógica comum, a fazer o legionário conduzir a espada do lado direito, pois entre sacar e golpear poupava esforço fazendo apenas dois movimentos e golpeando com o máximo de força abaixo da cintura, ponto menos protegido pela armadura do inimigo. Ao fazer isso não só evitava sua espada de chocar-se com a dele, e talvez partir-se, como ainda submetia a outra a tal risco, fazendo com que ela se chocasse em cheio com o seu escudo!

Dando máxima atenção a mínimos detalhes como esses, os romanos tornaram-se invencíveis e se sofreram fragorosas derrotas, como as que Aníbal lhes infligiu no século III AC, foi mais porque ainda estavam no início do seu aprendizado e ainda eram um exército amador comandado por civis, sem falar da genialidade do comandante adversário e de armas pouco conhecidas pelos europeus da época, como a cavalaria e os elefantes largamente usados por Aníbal, antecessores das modernas divisões de tanques.

Os cartaginêses com seus elefantes aterrorizavam os romanos que os
               desconheciam e fugiam. Tela de Lionel Royer (séc. XIX)

Porém o mais extraordinário do Exército Romano é que ele ERA PEQUENO! Muitos pensam que dado a enorme extensão do Império o exército que o defendia era enorme, mas não era. Quando César se tornou ditador vitalício, pouco antes da sua morte, o exército tinha vinte legiões, número que Augusto aumentou para vinte e cinco, mas depois da destruição das três legiões do general Varus na Germânia no ano 9 DC ele não as refez e o número ficou em vinte e dois até Cláudio as aumentar de novo para vinte e cinco durante a conquista da Britânia. Trajano as elevou para trinta nas Guerras Dácias, mas Adriano as reduziu para vinte e sete. Daí em diante o seu número oscilou entre vinte e cinco e trinta, mas há que se levar em conta que a legião raramente estava completa com seus seis mil e seiscentos soldados, situando-se o seu efetivo usual em torno de cinco mil. No tempo de Constantino este número caiu para cerca de dois mil, mas ele aumentou para cerca de cem o número de legiões, de sorte que os efetivos totais do exército se mantiveram os mesmos. Teodósio aumentou para três mil homens os efetivos da legião, mas esse número baixou novamente para dois mil no tempo de Aécio, e para apenas mil no apagar das luzes do Império. Quando a legião desapareceu no Ocidente junto com o império, a anarquia imperante na sociedade imperou também nos exércitos bárbaros a serviço dos seus príncipes conquistadores, mostrando-se mais bandos de salteadores do que batalhões de soldados de carreira a serviço de um Estado organizado.

Claro que aqui nos referimos ao Exército do Império antes da sua divisão em 362, pois a partir daí os dois impérios, o Ocidental e o Oriental, passaram a ter seu próprio Exército. Mas como os efetivos da legião tinham baixado muito, embora o seu número tenha se multiplicado, têm-se que cada exército tinha menos de cem mil homens, ambos totalizando os mesmos efetivos do antigo exército unificado para defender a integridade do mundo romano em toda a sua imensa extensão.

Na época do imperador Constantino (306-337 DC) o Império Romano ainda era quase tão grande
                              quanto na época do imperador Trajano, mas a partir daí começou a sua decadência

Verifica-se, portanto, que mesmo no reinado de Trajano, quando o Império atingiu a sua extensão máxima e o número de legiões chegou a trinta com efetivos completos, o Exército Romano não ultrapassou a marca dos duzentos mil soldados (30 x 6.660 = 199.800), muito inferior a qualquer grande exército da atualidade sem um décimo das responsabilidades militares e do relevante papel que as legiões romanas tiveram na história da civilização ocidental. Claro que neste número estão somente as tropas combatentes, as quais eram assistidas por tropas para-militares chamadas "auxiliares", encarregadas dos serviços de escritório, almoxarifado,  armamentos,  oficinas, alimentação,  saúde, limpesa dos quartéis e transporte dos equipamentos durante os deslocamentos. Seu número correspondia em média a um quarto dos efetivos combatentes, mas não tinham treino militar e, embora pudessem vir a lutar em situações de emergência, não eram legionários.

       Constantino foi o último grande imperador romano, mas seu exército era bem menor que o de Trajano,                                                      tendo cerca de 150.000 homens. A decadência do Império começa após sua morte em 337 DC

Fato é que sendo vinte e sete o número médio de legiões em atividade com efetivos em torno de cinco mil homens cada uma, forçoso é concluir que os efetivos do Exército Romano ficavam abaixo de cento e cinquenta mil homens na maior parte do tempo, bem menos do que as Forças Armadas brasileiras. Isto nos faz concluir que embora o Exército Romano tenha tido um extraordinário papel na formação, consolidação e conservação do enorme Estado multinacional, outros fatores não menos extraordinários de sabedoria e competência juntaram-se para dar ao Império Romano o seu caráter de significativa excepcionalidade e longevidade.  Todavia, nos propomos aqui a examinar apenas o papel do Exército na façanha, deixando os demais fatores para serem examinados em estudos complementares.

De qualquer forma, importantíssimo para possibilitar a um exército tão pequeno manter o domínio imperial sobre área tão grande era a perfeição estratégica como era ele distribuído, pois só em ocasiões especiais toda a legião concentrava-se em seu enorme quartel-general. Além de sediadas em pontos nevrálgicos, suas divisões e subdivisões ficavam em quartéis menores espalhados pelo território sob sua jurisdição, guarnecendo cidades, vilas, estradas, pontes, desfiladeiros, encruzilhadas, entroncamentos e tudo o mais que tivesse valor estratégico. Na maior parte do tempo o seu QG era uma enorme fortaleza quase vazia, habitada por apenas uma das suas dez coortes e pelo pessoal burocrático do comando geral, quase sempre civis encarregados dos serviços e operações logísticas. Assim, a legião fazia sentir sua presença terrível em todo o território sob sua guarda qual um polvo de longos tentáculos assegurando e tornando visível, mais do que qualquer outra coisa, a presença e o domínio do Império.

                                          A magnífica ponte de Alcântara em Portugal construída pelo exército
                                                                      romano há 1.800 anos e em uso até hoje

O exército fazia essa presença ainda mais efetiva quando não estava em campanha e empregava o seu tempo livre em obras públicas de grande significado para a Administração e as populações locais, como estradas, pontes, esgotos, barragens e aquedutos para prover as cidades com água encanada. O soldado romano, portanto, era um misto de guerreiro, engenheiro e pedreiro, empregado pelo Estado tanto para fazer valer a sua autoridade como para desenvolver a região onde servia, enriquecendo o Império e beneficiando os cidadãos. Nisto ia também uma alta dose de pragmatismo, pois soldado ativo é soldado em boa forma, longe de conspirações e badernas!

Mas para que o soldado romano suportasse tão férrea disciplina e tão pesada carga de trabalho grandes vantagens lhe eram concedidas. A primeira era o alto salário, coisa que tornava a carreira militar super atrativa e fazia milhares de jovens pobres das províncias e dos países bárbaros limítrofes correrem aos postos de alistamento e porfiarem em serem aceitos. A segunda era a aposentadoria após trinta anos de serviço, uma notável antecipação do que viria a ser nos tempos modernos a previdência social. A aposentadoria tanto podia consistir numa pensão periódica como num significativo pecúlio pago de uma só vez, que se tornava maior caso o veterano decidisse se estabelecer na região onde estava servindo. Com isso o exército inseria na comunidade um fiel ex-servidor, testado por anos de bons serviços, que gozaria de prestígio local e poderia vir ainda a prestar relevantes serviços ao Império na vida civil. Finalmente havia a imunidade perante as autoridades civis, pois o soldado que infringisse a lei local só poderia ser processado e julgado por seus superiores. Isto fez com que além da Lei Militar o Exército Romano criasse também a Justiça Militar (jus castrorum), numa notável antecipação do que hoje ocorre em todos os exércitos modernos.

                                Aqueduto construído pelo exército romano na Espanha afim de prover  com água
                                                              abundante a cidade de Tarragona (século I DC)

Todavia, não se pense por isso que Roma ou o Exército Romano fossem "bonzinhos". Na verdade eram implacáveis quando havia qualquer ameaça à autoridade imperial e a repressão era terrível, podendo chegar até a extinção de países e a venda de povos inteiros como escravos, como sucedeu com os dácios e os judeus no século II DC, e a total destruição de uma grande cidade, como aconteceu com Palmyra no século III DC. O seu grande mérito consistiu em saber dosar com equilíbrio o quantum de tolerância e benemerência com o quantum de intransigência e violência necessários à preservação da paz e da prosperidade do Império. Este sabia que o excessivamente bom perde o respeito e o excessivamente mau perde a estima, portanto o seu lema era: in medio virtus!

Resta saber por que a legião romana de César era tão superior à falange macedônica de Alexandre, a ponto de com pouco esforço dominar toda a Grécia menos de duzentos anos depois da morte do grande Rei e a resposta é: 1) a legião era um mecanismo de batalha e a falange uma formação de combate, o que significa dizer que as peças da primeira iam se ajustando gradualmente aos acontecimentos conforme a necessidade do momento, enquanto a segunda não era feita de peças destacáveis e não possuía tal faculdade, resumindo-se todo o seu mérito à forma como entrava na luta; 2) seguindo a tradição homérica, a arma básica da falange era a lança, enquanto a da legião era a espada; a lança conduzida pelo legionário era na verdade um dardo, o pillum, arremessado contra o inimigo no início da batalha e esquecido daí em diante; depois sacava a espada, sua arma de combate corpo a corpo, e partia para cima do adversário; 3) a legião elaborou forma simples de inutilizar o porco espinho da falange: dois legionários penetravam juntos entre duas fileiras de lanças, tendo um deles o escudo no braço direito, e com os escudos iam pondo as lanças adversárias para os lados e para baixo até estarem frente a frente com o hoplita bom no uso da lança e fraco no uso da espada. O resultado já se sabe!

Com todo o enorme avanço tecnológico dos exércitos modernos, a arte da guerra jamais voltou a atingir os altos níveis de organização, eficiência e sofisticação atingidos pelo Exército Romano há mais de dois mil anos.


Notas:

1) Sustento a tese pioneira, pois até agora não a vi aventada por ninguém, de que o famoso número "666" na testa da besta do Apocalypse de São João, sobre o qual tanto se tem discutido ao longo dos séculos, nada mais é do que o número de legionários da coorte romana. O Apocalypse é uma raivosa diatribe de São João exprimindo o ódio dos cristãos primitivos a Roma, que ele chama de "a grande prostituta", e nada mais lógico que visse a besta como sendo a coorte, expressão maior do poder militar do Império nas províncias.

2) Não se pode falar em duração "de tanto a tanto" para o Império Romano. Quando se diz que durou cinco ou seis séculos, isto vai depender das datas que se toma para o início e o fim. Penso que o Império começa quando Roma domina territórios fora da Itália, ou seja, em 202 AC, apossando-se do norte da África e da Espanha após derrotar Cartago. Por outro lado, acho 476 DC, ano em que o insignificante imperador Rômulo Augústulo foi deposto pelos bárbaros, uma data puramente simbólica para o seu fim, pois o Império já se esfacelara há tempos. Data bem mais significativa talvez seja 451, quando, para derrotar Átila na grande batalha dos Campos Catalúnicos, o general Aécio, cognominado o Último Romano, viu-se obrigado a recorrer aos exércitos bárbaros dos seus amigos francos, burgundos e visigodos, tal era a fraqueza do outrora poderoso Exército Imperial. A última grande vitória das águias romanas foi também o seu canto do cisne.

3) Graças as obras de engenharia civil do exército, alguns oficiais se tornavam ótimos construtores e eram disputados por cidades para nelas servirem afim de realizarem obras importantes desejadas pelos cidadãos. Havia vantajosas ofertas "por fora" ao oficial-engenheiro e ao comandante a quem competia autorizar a transferência, ambos recebendo generosos "presentes" da cidade interessada. Alguns oficiais-engenheiros ficavam ricos e quando davam baixa se estabeleciam como prósperos empresários da construção civil.

4) Ao contrário do que geralmente sucede com tropas estrangeiras de ocupação em todos os tempos, muitas localidades viam a presença permanente de unidades do exército romano em seu território como uma bênção, seja para mantê-lo livre de salteadores, seja para realizar obras públicas desejadas por todos. A diferença do Exército Romano com exércitos de grandes potências atuais é flagrante.

5) para se aquilatar a eficiência do pequeno exército romano de 200.000 homens em manter a autoridade do gigantesco Império, basta comparar sua performance no mundo durante 600 anos da Era Antiga com a performance do Exército Americano no humilde Vietnã durante 10 anos da Era Contemporânea. Apesar de ser três vezes maior que o pequeno exército de Roma e ocupar um território cem vezes menor, o exército dos EUA reduziu o modesto país a escombros e sofreu uma das mais completas e decisivas derrotas de todos os tempos.


sábado, 7 de julho de 2012

Post nº 58

FALANGE  GREGA  -  O  MELHOR  EXÉRCITO  DA  ANTIGUIDADE  ANTES  DA  LEGIÃO  ROMANA


Combate de falange contra falange. Vaso grego do século IV AC
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Até o surgimento de Epaminondas e de Felipe da Macedônia as vitórias militares eram fruto mais da astúcia dos generais e da valentia dos soldados do que da organização tática dos exércitos na batalha e das suas estratégias na guerra, mas Epaminondas queria engrandecer Tebas, sua pátria, e Felipe a sua Macedônia, não só pondo-a em pé de igualdade com os outros Estados gregos como submetendo-os ao seu poder e unificando-os em um poderoso grande Estado. Na execução do seu projeto, Felipe começou organizando um magnífico exército de dez mil hoplitas (soldados de infantaria), o que na Grécia era enorme, mas suas estratégia e tática eram as mesmas dos demais gregos, especialmente dos tebanos após as reformas que o eminente filósofo, estadista e general Epaminondas fizera no exército de Tebas, dando à sua cidade o domínio da Grécia.

Epaminondas foi um gênio militar cuja cultura, patriotismo, desambição
      e honestidade o fizeram o mais ilustre estadista grego da sua época

Epaminondas era muito respeitado por seus concidadãos, mas era modesto e jamais aceitara cargos no governo da cidade apesar da natural liderança que exercia, coisa que o fazia ainda mais popular e acatado por todos. Quando a guerra com Esparta estourou pediram-lhe que comandasse o exército de Tebas por ser sacrifício pela pátria ao qual não poderia se recusar. Ele aceitou e rapidamente montou poderosa força de combate na qual introduziu várias inovações que a tornavam superior à falange grega tradicional. A principal delas foi a substituição das lanças de dois metros dos soldados da vanguarda pelas de seis, chamadas “sarissas”. Assim, fez da falange um bloco mais compacto, com linha de menor extensão e fileiras de maior profundidade. Os lanceiros lhe deram o aspecto de “porco espinho”, com os quatro primeiros de cada fila apontando a lança para a frente na horizontal, a do segundo passando pelo primeiro, a do terceiro pelos dois e a do quarto pelos três à sua frente. O inimigo que ultrapassasse a primeira linha se depararia com a segunda, depois com a terceira e finalmente com a quarta, de forma que teria de passar por quatro linhas de lanças longas até ficar frente a frente com o soldado da primeira fila. Os lanceiros atrás dos quatro primeiros ficavam com as lanças na vertical e a baixavam quando algum dos quatro à frente tombava e o da quinta fila lhe tomava o lugar. Ultrapassar a barreira de lanças era dificílimo porque as linhas não ficavam paradas: avançavam em formação cerrada em cadenciado passo de marcha, atropelando e pondo o adversário em fuga.

Antes da hegemonia tebana as batalhas mais ferozes de falange contra falange foram na Guerra
                                   do Peloponeso entre Atenas e Esparta. Gravura de Hermann Vogel (séc. XIX)

A segunda inovação foi adicionar às linhas de lanceiros outras de espadachins. Depois que a massa de atacantes que não conseguira ultrapassar a muralha de lanças começava a recuar e os lanceiros apressavam o passo a marche-marche transformando-o em impetuoso contra-ataque, as linhas de espadachins na retaguarda corriam para os lados, ultrapassavam velozmente os lanceiros que marchavam a passo rápido e atacavam o inimigo pelos flancos, cercando-o e destruindo-o.

Epaminondas culminou suas reformas com uma inovação que mostra toda a sua genialidade militar: pôs a infantaria pesada na ala esquerda para ficar frente a frente com a infantaria pesada da falange adversária, sempre colocada na ala direita onde ficava o supremo comando segundo o modelo espartano. Ao invés de "A x B" ele adotou "A x A" e "B x B", onde iguais enfrentavam iguais, com a diferença que o seu "A" era muito mais poderoso que o "A" adversário. Quando a batalha começava, o "A" avançava enquanto o "B" mantinha a sua esquerda firme, mas o seu centro e a sua direita recuavam como se a falange fosse os ponteiros de um relógio marcando 12 hs e 35 min no começo da batalha e no período do meio 12 hs e 50 min, transformando sua linha reta em triângulo "ponta-de-flecha", o qual depois novamente se distendia e formava nova linha reta pelo avanço da ala esquerda e finalmente se dobrava em círculo sobre o inimigo, cercando e destruindo o que sobrara dele. Como o "A" da falange tebana era bem mais estreito e profundo que o "A" das outras falanges, a sua infantaria pesada na retaguarda logo se via frente a frente com a infantaria leve do inimigo e a destroçava ainda na primeira metade do período da batalha. A partir daí eram os seus "A" e "B" juntos contra o "A" adversário isolado e cercado.

Falangistas em combate eram um tema popular na pintura dos vasos gregos (séc. IV a.c.)

Essa complicada tática de Epaminondas foi chamada de falange em diagonal e deu a Tebas a vitória contra Esparta na histórica batalha de Leuctras, implantando a hegemonia tebana sobre toda a Grécia. Isto fez com que a falange grega passasse a se chamar falange tebana. Devemos frisar, entretanto, que a quase totalidade dos historiadores credita a invenção da "sarissa" a Felipe da Macedônia e não a Epaminondas, com o que não concordamos pelas razões que aludiremos adiante.

A hegemonia de Tebas deveu-se ao talento político e militar de Epaminondas. Sua morte em combate a deixou
                      sem liderança e ela foi dominada pelos macedônios. Detalhe de tela de Isaac Walraven (1726)

Porém a hegemonia de Tebas e da falange tebana duraria tanto quanto a vida de Epaminondas, pois era preciso grande capacidade de comando e habilidade tática para operá-la. Poucos anos depois da sua morte causada por ferimentos sofridos em sua última grande vitória, Tebas eclipsou-se por falta de lideranças capazes como a dele e a Macedônia tornou-se o novo poder hegemônico da Grécia através de uma versão mais prática e mortífera da falange, criada pelo rei Felipe e que foi chamada de falange macedônica.

Busto de Felipe da Macedônia
            
Além de gênio político, Felipe era gênio militar e reformou a Falange Tebana introduzindo-lhe várias novidades. Sua maior inovação foi extinguir a sua linha contínua, dividíndo-a em blocos retangulares compactos com um largo espaço entre cada um deles, de modo que quando o inimigo se lançava em turbilhão pelos espaços vazios, para evitar bater de frente com o “porco-espinho”, se bifurcava por espaços vazios que vinham depois e os lanceiros laterais de cada bloco mudavam a direção das suas lanças, triturando-o como se ele estivesse entre duas mandíbulas. Os que escapavam eram mortos pelos espadachins.

A grande maioria dos historiadores acha que as "sarissas" foram invenção dos macedônios e não dos tebanos, mas é difícil Tebas ter obtido tantas vitórias caso não as tivesse, pois sendo o seu exército bem menor que o de Esparta não poderia a sua delgada ala direita suportar o avanço da pesada infantaria da ala esquerda espartana sem se dissolver. O fato de ser possível a ela recuar ordenadamente em diagonal até fazer a linha original de batalha girar 180 graus deve ser creditado à invenção de uma arma notável como a sarissa, capaz de triplicar o poder defensivo da falange. Ademais, a passagem de Epaminondas e de Tebas pelo cenário político grego foi rápida e não deixou grandes marcas, sendo bem plausível que numa época em que não havia nenhum dos modernos meios midiáticos para registrar os fatos nem guardar com detalhes a sua memória, certos inventos tenham sido atribuídos a personalidades mais marcantes como Felipe. Poucos relatos históricos chegaram até nós e os que chegaram são de historiadores que escreveram décadas ou séculos depois dos acontecimentos, muita coisa tendo sido escrita apenas por ouvir dizer. Não é de surpreender, portanto, que a notável invenção do humilde Epaminondas tenha sido depois atribuída ao poderoso Felipe da Macedônia, pai do senhor do mundo Alexandre Magno.

O Império Macedônico no último ano do reinado de Felipe (336 AC)

Mas não há dúvida de que até o surgimento de Epaminondas e de Felipe a valentia do soldado era o principal e a formação de batalha o acessório nos combates, mas com as reformas de Epaminondas essa relação começou a se inverter e com as de Felipe ela se inverteu de vez. Em pouquíssimo tempo a antiga e tradicional falange grega virou Falange Tebana e esta virou Falange Macedônica, sendo com ela que Felipe pretendia conquistar a Pérsia após concluída a sua obra de unificação da Grécia e de controle de toda a costa ocidental do mar Egeu. Ao concluí-la e ter a sua retaguarda segura, Felipe declarou guerra à Pérsia e preparava-se para a invasão do grande império asiático quando foi assassinado em sua capital, durante uma cerimônia religiosa propiciatória, por um cortesão traidor, possivelmente a soldo do imperador persa. Assim, quis o destino que a enorme tarefa ficasse para o seu filho e herdeiro Alexandre, que a executaria com inexcedível genialidade política e militar.