domingo, 26 de junho de 2011

Post nº 42

ROBIN  HOOD  -  O  ARQUEIRO  PLEBEU
CONTRA  O  NOBRE  CAVALEIRO

Robin Hood luta com o sórdido xerife de Nottingham no famoso filme de 1938 "As Aventuras de
Hobin Hood" estrelado pelo grande astro Errol Flyn


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A luta na Idade Média entre nobres e plebeus manifestou-se na imaginação popular através de estórias sobre homens injustiçados que viravam salteadores e roubavam dos opressores para distribuir aos oprimidos. No fundo era o conflito entre os senhores feudais exploradores e os seus camponeses explorados, o qual no campo militar assumia a forma de luta entre o pobre arqueiro plebeu e o rico cavaleiro aristocrata. A lenda de "Robin Hood" representa bem esse conflito, sobretudo pela conotação ideológica que o debate sobre a sua identidade tomou na literatura, procurando-se tirar dele a condição de homem do povo rebelado contra a aristocracia e dar-lhe a condição de "nobre" membro desta, imbuído de altos princípios cavalheirescos que o levavam a protestar contra os "desvios" do regime, castigando os "maus" aristocratas e solidarizando-se com os "bons".

O resultado disso é que caso fossem perguntados poucos diriam já terem ouvido falar de lord Robert Lockesley, conde de Hutington, mas se o nome fosse trocado para Robin Hood quase todos responderiam SIM. Mesmo quem pouco soubesse dele diria: “Era um sujeito que roubava dos ricos para dar aos pobres”! Creio que nenhum personagem literário é mais conhecido no mundo que ele, exceção talvez do Rei Arthur. Curiosamente, ambos são figuras de historicidade controversa, situando-se mais no campo da fantasia do que no campo da história, pois mesmo os que defendem a sua real existência nos dão retratos muito diferentes dos que nos são oferecidos hoje pela literatura, pela arte e pela mídia.
            
Vejamos como Robin Hood nos é mostrado nas estórias atuais, sobretudo do cinema e da TV. Com algumas variações, em sua essência elas fundem-se numa só: lord Robert, conde de Hutington, é falsamente acusado de traição pelo sórdido Xerife de Notingham, lacaio do príncipe regente João Sem Terra, que planeja usurpar o trono do seu irmão Ricardo Coração de Leão, ausente nas cruzadas. Ordenada a sua prisão, seus bens são confiscados e ele foge para a floresta de Sherwood, onde com outros proscritos cria um bando cuja liderança assume, não só por conta do seu status social como porque é generoso, simpático, astuto, bravo, bom espadachim e ótimo arqueiro! Para ter o povo ao seu lado, assalta os ricos e dá a maior parte dos roubos aos pobres, pois ele e seus homens não são movidos pela ganância ou desejo de subverter a ordem, mas pelo desejo de castigarem os poderosos desonestos e corrigirem suas flagrantes injustiças. Sua cabeça é posta a prêmio e sua fúria contra o xerife aumenta quando descobre que ele planeja seqüestrar e desposar à força sua amada lady Marion. Assim, dá-lhe tenaz combate até derrotá-lo após a volta das Cruzadas do rei Ricardo Coração de Leão, a quem fora fiel durante a tentativa de usurpação de João Sem Terra, protetor do vilão. Perdoado pelo rei, o Robin Hood "lord Robert" recupera seus bens, premia os amigos, casa com lady Marion e vivem felizes para sempre.

O casamento de Robin com Marion sob as bênçãos do rei Ricardo está na
maioria das versões do século XIX. Ilustração de Howard Pyle (1883)

Para demonstrar a falsidade desta versão basta atentar no fato histórico de que o rei Ricardo jamais pôs os pés na Inglaterra após a sua volta das Cruzadas, pois restabeleceu sua corte primeiro na Aquitânia e depois na Normandia, hoje regiões da França, mas na época domínios dos quais era duque reinante. Por intercessão da sua mãe Eleanor, a Inglaterra continuou nas mãos do antigo regente: o seu irmão caçula João sem Terra! Portanto, se examinarmos a estória de Robin Hood sob critério histórico ela terá que necessariamente ser bem diferente das versões que temos hoje. É isso o que ocorre quando nos debruçamos sobre as versões medievais. Estas aparecem primeiro em manuscritos de poemas e baladas redigidos no século XIV, mas os que temos podem não ter sido os únicos, pois na época não havia imprensa, poucos sabiam ler e predominava a tradição oral. Assim, é bem possível que muitos manuscritos tenham se perdido ao longo dos séculos e não tenham chegado até nós.

Fato é que nos anos 1400 já existiam festividades populares, denominadas May Day, onde peças contando as aventuras de Robin Hood eram representadas como dramas e comédias, pois também havia versões que o apresentavam como sujeito esperto e ardiloso, sempre enganando os ricos e poderosos, como em nossas lendas também o faz o popular Pedro Malasartes. A mais antiga representação teatral das suas façanhas de que se tem notícia foi em Exeter no ano de 1426, bem ao sul do berço do herói no norte do país, mostrando que já era popular em toda a Inglaterra da época. Porém nas peças e baladas ele era um plebeu de classe média que fora espoliado pelos nobres e pelo fisco, sendo reduzido à pobreza e tornando-se bandido por força das injustiças e voracidade dos dominadores. Seu bom caráter consistia em jamais roubar o pouco dos pobres, mas roubar sempre o muito dos ricos para dividi-lo com os miseráveis, saqueados sem piedade pelos poderosos. A sua flagrante rebeldia contra os elementos dos extratos superiores da sociedade faz com que as produções literárias e artísticas da Idade Média nunca falem da sua ligação com reis e barões, pois isso seria inteiramente contraditório com a sua atuação, e mesmo a sua ligação com Ricardo Coração de Leão, totalmente fictícia dada a impossibilidade histórica de ter ocorrido, só foi aventada na literatura de tempos recentes e deve-se mais à semelhança entre o caráter boêmio e aventureiro de Ricardo e o imaginário caráter de Robin do que à "alianças políticas" fantasiosas.

Nas lendas Robin está sempre em luta com os nobres opressores e os seus
capangas. Ilustração de Howard Pyle (1883) 

No final dos anos 1500 e início dos 1600 as estórias sobre Robin Hood eram correntes no dia a dia das pessoas e Shakespeare as menciona em sua peça Os Dois Cavalheiros de Verona. Todavia nessa mesma época ocorre fato que vem alterar completamente a origem popular de Robin Hood, pois o também famoso teatrólogo Anthony Munday faz dele personagem de duas peças e o apresenta como lord Robert, earl of Hutington! A partir daí ele deixa de ser “plebeu” e passa a ser “nobre”. A mudança é radical porque, como visto, até então ele era descrito como um yeoman (homem de classe média) que se alia aos camponeses e a outros homens da sua classe para combater a nobreza e desafiar as leis opressoras, roubando e matando os ricos exploradores e os seus capangas, coisa que o faz ídolo das massas. A mudança de status do herói, portanto, tem a clara finalidade política de torná-lo membro da elite e fiel vassalo de um “monarca legítimo”, Ricardo Coração de Leão, e rebelde contrário a um “usurpador”, João Sem Terra. A nova versão tirava ao povo um herói plebeu, que lhe dava exemplos de rebeldia contra os donos do poder, expropriava os ricos e liquidava seus prepostos, e se o substituia por um herói nobre, intolerante com usurpadores da autoridade real, ladrão apenas dos ricos desonestos, caridoso com os pobres e romântico com as damas. Assim nascia lord Robert Lockesley, conde de Hutington por justiça do rei e criminoso Robin Hood por injustiça do usurpador!

Outro elemento de natureza sócio-política que atesta a falsidade da versão moderna é a conjuntura histórica da Inglaterra do século XII. Em uma época onde o tempo passava devagar, a Conquista Normanda era recente e a animosidade entre os nativos anglo-saxãos e os ocupantes franceses, minoria fortemente armada e opressora que desapossara a maioria nativa dos seus títulos, bens e posições, era enorme. A solidariedade da minoria governante para manter o seu domínio em um meio hostil era fortíssima, levando-a a proteger os seus membros e a conservar seus hábitos aristocráticos, somente falando e escrevendo em francês e reduzindo o Inglês a condição de “idioma da gentalha”.

O "Robin dos Bosques", bandoleiro plebeu da Idade Média, é muito mais conforme à realidade
que o "Robin conde" das versões modernas. Ilustração de Howard Pyle (1883)

Em tal ambiente é improvável que um “conde Robert”, certamente de origem francesa, tivesse sido perseguido por seus próprios pares. Ademais, os poemas, peças e baladas foram produzidos no “idioma da gentalha” e é impossível que esta o tivesse feito para exaltar um nobre de origem francesa, membro da casta opressora. Somente esta circunstância é suficiente para desacreditar a versão criada a partir do século XVII. Há que se lembrar também roupas e armas. Os nobres as usavam de linho ou lã especial e sua arma era a espada, artefato caríssimo e destinado somente ao combate. Por outro lado, as pessoas comuns usavam roupas de couro ou lã grosseira e sua arma era a faca, destinada basicamente ao trabalho. Os que viviam nos bosques (greenman) usavam também o arco, pois geralmente eram caçadores, e em todas as gravuras medievais Robin Hood é pintado em roupas simples de caçador, portando faca e arco, como típico dos plebeus. Ele jamais aparece em roupas de cavalheiro portando espada, arma privativa dos nobres e de posse proibida aos demais. A imagem fixada nas gravuras medievais é tão forte que mesmo hoje é assim que o herói nos é apresentado. Como, pois, se sustentar a versão de Robin Hood ser um lord e não um commoner?

Na versão moderna Robin Hood é apresentado como um nobre destituído dos seus direitos pelo Rei usurpador.
Rebela-se e passa a roubar dos cúmplices do tirano para dar aos pobres e lutar pelo Rei legítimo.

Porém há que se reconhecer que a mudança de status do herói 400 anos depois, quando de há muito desaparecera a antiga animosidade entre franceses e anglo-saxãos, amalgamados na moderna nação inglesa, não diminuiu a popularidade do herói e até a aumentou, pois o público letrado das classes altas passou a consumir avidamente o que se publicava sobre ele e o seu alegre bando de foras da lei (merrymen), criando um rentável mercado para escritores imaginosos. Na primeira metade do século XIX Robin Hood ficou mundialmente conhecido através do famoso romance histórico Ivanhoé de Sir Walter Scott, sucesso não só na Inglaterra como na Europa e nas Américas, pois foi publicado em todas as línguas cultas da época. Na esteira de Ivanhoé, livros e mais livros surgiram sobre o “conde” príncipe dos ladrões até que na segunda metade do mesmo século foi publicada pelo americano Howard Pyle uma versão sob o título de As Alegres Aventuras de Robin Hood, originalmente destinada a crianças e adolescentes. Porém o livro se tornou sucesso entre públicos de todas as idades, não só por ser divertido e bem escrito, mas por ser também belamente ilustrado, tornando-se a versão definitiva do herói e a base de todos os modernos enredos do teatro, cinema e televisão sobre ele. A quantidade de filmes é enorme, pois até uma ótima versão em desenho animado foi feita pelos estúdios Disney, mas na minha opinião o melhor exemplar até hoje produzido foi o Aventuras de Robin Hood, estrelado pelo famoso ator Errol Flyn nos anos 30 do século passado.

Os estudios Disney fizeram um ótimo filme em desenho animado sobre Robin Hood
         
Todavia, diante da falta de menções à sua nobreza antes dos anos 1600, devemos perguntar se existe alguma base para a atual versão de "Robim nobre" e a resposta é que existe, embora bastante frágil. Nos antigos papéis de um nobre prelado, Deão da Catedral de York no século XIII,  foi encontrada uma anotação datada de 24 de dezembro de 1247 onde é mencionada a morte de Robert Earl of Huntigu aos 87 anos de idade. Ela termina com versos em Inglês Medieval, ao invés de Latim ou Francês como era próprio dos papéis oficiais na época, e dizem o seguinte: Hear undernead dis laitl stean / Lais Robert Earl of Huntingu / Near arcir der as hie sa geud / An pipl kauld im Robin Heud / Sic utlaws as hi an is men / Vil England nivr si agen. O fato de ser em inglês e em versos tira à nota o caráter de documento oficial e indica ter sido ela escrita pelo Deão como lazer literário e não como parte do seu trabalho, parecendo ser o trecho de uma balada. A coisa se torna intrigante ao se verificar que os mesmos versos servem de epitáfio a um antigo túmulo no cemitério do priorado de Kirlees Hall, na região de York.

Aqui Robin é um "greenman" com arco e punhal, no entanto Marion lhe dá atenção,
como se o conhecesse por ele ter sido nobre. Ilustração de Howard Pyle (1883)

Teria o Deão escrito o epitáfio ou simplesmente o copiado? Isto tiraria qualquer dúvida sobre a existência do conde bandido Robin Hood no final do século XII e início do século XIII, época de Ricardo Coração de Leão e de João sem Terra, se não fosse por duas coisas: 1) Não existe nos registros da nobreza britânica dos séculos XII e XIII nenhum Earl of Huntingun e os registros de nascimentos e óbitos das paróquias da região, assim como das cortes de justiça e do fisco, sobretudo de York e Notingham, não mencionam nenhum portador do referido título; 2) A lápide com o epitáfio é de autenticidade duvidosa e exames científicos fazem suspeitar serem os seus entalhes pelo menos dois séculos mais recentes, situando-os nos anos 1400, quando começaram as representações em festivais do mês de maio por toda a Inglaterra que tornaram nacionalmente famoso o bandido cujas façanhas eram cantadas em prosa e verso pelos nortistas há mais de 200 anos. Cidades e vilas começaram a disputar a honra de terem sido o seu berço, ou local de final repouso, sendo possível que uma farsa tenha sido montada com base em velha balada talvez composta pelo próprio aristocrático clérigo, Dean of York.

Porém há um detalhe de natureza semântica, com repercussão na nobiliarquia inglesa, que pode exonerar o nobre prelado da acusação de tentativa de fraude: o título de Earl! Todos os títulos de nobreza ingleses são de origem francesa, prince, duke, marquis, viscount e baron, com exceção de count. Este na Inglaterra é designado pelo título anglo-saxônico de EARL, mas há evidências de que isto só aconteceu a partir do final do século XIII, quando o rei Eduardo I ordenou que todos os documentos oficiais passassem a ser redigidos em inglês ao invés de latim ou francês.

Assim, é possível que o termo usado antes para o título fosse a palavra count, de origem francesa (cont) como as demais que designam títulos nobiliárquicos ingleses. O fato de ter sido substituída pela palavra anglo-saxônica earl certamente deve-se ao fato de que esta designasse o único título nativo existente antes da invasão francesa no século XI cuja memória o povo guardara, possivelmente significando "nobre senhor da guerra", mas tudo indica que com o aviltamento da nobreza local pelos invasores a palavra passou a designar simplesmente "senhor de bando armado". Como não havia palavras anglo-saxônicas substitutas para os demais títulos de que o povo se lembrasse, estes guardaram a sua forma afrancesada, mas earl foi resgatada do seu antigo significado e passou a equivaler ao count de origem francesa. A conclusão lógica, portanto, seria a de que na primeira metade do século XIII, quando o Deão de York escreveu ou anotou o trecho da balada, a metamorfose ainda não ocorrera e ele usou o termo Earl of Huntingum no sentido de "chefe bandoleiro de Huntingum"!

As populações medievais continuaram a ver em Robin Hood um "greenman"
em luta contra os ricos opressores. Ilustração de Howard Pyle (1883)

A "nobilitação" de Robin, portanto, seria fruto da ignorância sobre a evolução histórica do significado da palavra "earl" pelos escritores do século XVII e não de uma deliberada intenção de modificar a estória do herói, nem deles nem do Deão de York, o qual teria usado a palavra honestamente com o sentido que ela tinha na época, mas o fato do clérigo ter se dado ao trabalho de anotar o óbito do famoso "chefe bandoleiro" nos leva a supor que ele e seu bando talvez tivessem participado ativamente da luta dos barões contra o nefasto rei João Sem Terra anos antes e por isso tenha obtido cabal anistia após a vitória, o que lhe teria permitido viver tranquilamente seus últimos anos cercado de temor e respeito por suas celebradas façanhas de antigo fora-da-lei.

Seja de uma forma, seja de outra, fato concreto é que nunca passou pela cabeça das populações medievais da Inglaterra darem a Robim status de "nobre" e as obras literárias populares continuaram a ser representadas e cantadas sem nenhuma menção a qualquer tipo de nobreza do personagem. Antes muito pelo contrário. Todavia, passados mais 200 anos, o significado da palavra "earl" mudou novamente e surgiram as peças de Anthony Munday, já em plena era da imprensa e da publicação em massa. O resultado é que a versão “nobre” foi adotada e prevalece até os dias de hoje.

Tudo bem examinado, chega-se a conclusão de que a versão do Robin Hood “conde” nada mais foi do que um equívoco semântico, o qual possibilitou uma bem sucedida manobra política visando “domesticar” o turbulento herói de um povo sempre disposto a rebeliões democráticas, como atestado pela revolucionária adoção da Magna Carta, extorquida ao rei João Sem Terra pelos barões rebeldes no início do século XIII, e as revoluções do século XVII, quando houve a “domesticação” do herói e a deposição de dois reis tirânicos, um deles executado e o outro exilado pelo povo em armas.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Post nº 41

CONDE  DRÁCULA - O FALSO   VAMPIRO  QUE  DESAFIOU  O  IMPÉRIO  TURCO  

Após vencerem os húngaros em 1444 na batalha de Varna os turcos exigiram a submissão da Transilvânia
e da Valáquia, mas o conde Drácula os enfrentou durante anos. Tela de Stanislaw Chlebowski (1885) 
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Nenhum personagem fez brotar tantas lendas nem incendiou tanto a imaginação das pessoas em apenas um século quanto o Conde Drácula e, com certeza, nenhum se tornou uma mina de ouro tão rentável para escritores e cineastas em tão curto espaço de tempo, se considerado este do amplo ponto de vista histórico. O personagem foi tão vulgarizado e banalizado que hoje causa mais riso que terror, ao contrário do que ocorria na primeira metade do século XX, quando o romance gótico “Drácula” de Bram Stocker se tornou best-seller mundial e os filmes que inspirou aterrorizavam as platéias dos cinemas.

Essa extrema vulgarização fez com que quase todos tenham “Drácula” como ficção e não como personagem real de forte presença na História do sudeste europeu no final da Idade Média. Para o historiador quatro perguntas se impõem e exigem respostas: 1) Drácula realmente existiu? 2) Se existiu, quem foi ele? 3) Era realmente um “vampiro” que bebia o sangue das pessoas?  4) Se era, ele ressuscita à noite, assume formas de animais, voa, não se reflete nos espelhos, alho e água benta o afastam, não entra em local sagrado, treme diante da cruz e só a luz do sol ou uma estaca de madeira no coração podem matá-lo?

Comecemos pela primeira pergunta e a resposta é sim. Drácula realmente existiu e sua vida é relatada pela História da Romênia, é presente nos castelos que construiu e é registrada nas crônicas da Igreja Ortodoxa Romena, inclusive no seu destacado túmulo em um dos mais antigos, belos e venerados templos cristãos ortodoxos. Isto mostra que ele não somente existiu, como foi também pessoa muito importante, coisa que nos leva à segunda questão: “Quem foi ele”?

Conde Drácula, príncipe da Valáquia e da Transilvânia. Defensor da
fé cristã ortodoxa e herói da independência romena
        
Drácula nasceu nas primeiras décadas do século XV e era filho do Conde Vladislau, apelidado "Vlad Dracul”, Príncipe da Valáquia, vizinha da Transilvânia e no território do que é hoje a Romênia. “Dracul” em romeno significa “dragão” e era apelido que os súditos deram ao seu pai em homenagem à sua valentia, chamando-o de “Vlad o Dragão”. Como o garoto herdeiro da coroa tinha o mesmo nome do pai, o povo passou a chamá-lo de "Vlad Drácula”, ou seja, “Vlad o Dragãozinho”. A Valáquia era parte autônoma do Império Romano do Oriente com sede em Constantinopla, mais conhecido como “Império Bizantino”. Este enfrentava séria crise na época dos dois Vlad, pois estava cercado pelos turcos muçulmanos que o atacavam por todos os lados, reduzindo-o quase que só à cidade de Constantinopla e arredores. Foi quando os conquistadores chegaram à Valáquia e exigiram a integração do principado no Império Otomano. Incapaz de resistir ao inimigo muito mais poderoso, o velho “Dragão” contemporizou e para resistir tentou obter ajuda financeira dos mercadores alemães que dominavam a economia do país e ajuda militar da Hungria, reino cristão e quase vizinho.

Não conseguiu nada, seja porque os mercadores alemães só pensavam em lucros e punham o dinheiro acima de tudo, seja porque eram de religião cristã católica em um país de religião cristã ortodoxa e lhes era indiferente terem como senhores cristãos ortodoxos ou muçulmanos sunitas. Os húngaros tinham sido derrotados pelos turcos em 1444 na grande batalha de Varna e desde então pagavam tributo aos vencedores em consequência de um Tratado de Paz humilhante, por isso  seu maior interesse era mantê-los afastados, mas o fato de serem católicos e não quererem briga com o poderoso Império Otomano os impedia de maiores amizades com os ortodoxos romenos, por quem não morriam de amores, e deram ao ortodoxo príncipe Vladislau apenas pequena ajuda militar. O resultado foi que o “Dragão” e o “Dragãozinho” foram derrotados, refugiando-se ambos na Hungria que os auxiliara, embora de forma modesta e quase simbólica.

A literatura e o cinema fizeram do conde Drácula vampiro aterrador.  Cena
 do filme mudo "Nosferatu" do diretor alemão Frederico Murnau

O velho morreu no exílio e o jovem começou a tramar secretamente a retomada da Valáquia com os muitos partidários que lá deixara, pois os conquistadores tinham colocado no trono um títere inimigo da sua família, muito odiado pelo povo por suas estreitas relações com os opressores “infiéis”. A oportunidade surgiu em 1453 quando os turcos tomaram Constantinopla e dedicaram-se a cuidar apenas da riquíssima conquista, esquecendo lugares pobres e remotos como a Valáquia. Foi o bastante para Drácula destronar o usurpador e se firmar no poder sob os aplausos do povo e da Igreja Ortodoxa, pois além de fervoroso patriota era muito devoto e moralista: ladrões, blasfemadores, estupradores, sodomitas, adúlteros, incestuosos e demais tipos de pecadores eram sistematicamente executados pelo austero e severo príncipe.


O ator húngaro Bela Lugosi encarnou em filme falado de 1932 o mais célebre "Drácula" do cinema

Para resistir aos turcos, ele viu que precisava de um poderoso exército, mas o país era pobre e quase toda a riqueza estava nas mãos dos mercadores alemães que exploravam o povo sem piedade. Eles eram originários das cidades mercantis alemães do mar Báltico e tinham se instalado na região há mais de 200 anos com a preciosa ajuda militar da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, seus conterrâneos. Quando a Ordem foi expulsa pelos húngaros e mudou-se para a Prússia, os mercadores alemães continuaram a dominar a economia regional sem se integrar à sua sociedade, porém eram os donos do dinheiro e Drácula foi a eles fingindo humildade e amizade, prometendo-lhes ainda mais lucros caso o ajudassem. Disseram-lhe que pensariam no assunto e aceitaram o seu gentil convite para um banquete no castelo a fim de celebrarem o possível reatamento da “velha amizade”. Todos foram, e em meio à festa Drácula os prendeu e deu-lhes pavoroso castigo por seu agir ganancioso, alheio aos interesses do país: a EMPALAÇÃO! Tudo indica que Drácula descobrira que o "Terror de Estado" podia ser usado com tremenda eficiência.

Drácula tinha vários castelos nas montanhas de onde guerreava os turcos otomanos. Este
construído pelos Cavaleiros Teutônicos no século XIII é o mais famoso
        
Cerca de 200 ricos mercadores alemães foram espetados pelo ânus em estacas pontudas espalhadas pelo país e todos viram que o “Dragãozinho” virara terrível dragão de verdade. Drácula confiscou seus bens e armou poderoso exército, rapidamente conquistando a vizinha Transilvânia e lá também empalando os prisioneiros turcos junto com os seus títeres e colaboradores. A Igreja e o povo viram que um campeão da causa nacional havia surgido e correram a apoiá-lo, aclamando-o também Príncipe da Transilvânia. Quem não o apoiasse com dedicado empenho já sabia que a empalação o esperava. Surpresos, os turcos lhe mandaram um embaixador para informá-lo de que caso não se submetesse seria esmagado como um inseto. Sua resposta foi mandar ao Sultão a cabeça do embaixador numa rica caixa de presentes! Indignados, os turcos o atacaram com força, mas ele os venceu, fazendo dez mil prisioneiros e os empalando numa fileira que se estendia por toda a fronteira dos seus pobres principados com o rico e poderosíssimo Império Otomano.

Irados com o atrevimento e a extrema crueldade de Drácula, os turcos lhe mandaram várias expedições punitivas, mas ele as venceu e solidificou o seu reino de terror, pois se tornara muito desconfiado e empalava qualquer suspeito. Quando os otomanos finalmente o derrotaram, ele refugiou-se em castelos nas montanhas e continuou a luta até exaurir-se e de novo exilar-se na Hungria. Lá, casou com uma jovem da família real e ficou por vários anos, até que nova oportunidade surgiu e ele voltou, reeditando as façanhas anteriores. Por fim, foi derrotado e morto. Os turcos lhe cortaram a cabeça e a mandaram para Constantinopla, onde ficou durante semanas em uma estaca fincada em praça pública para gáudio popular. Porém, ainda no campo de batalha, piedosos padres ortodoxos suplicaram ao general turco que o corpo do seu príncipe lhes fosse entregue para ser sepultado, no que foram atendidos. O limparam e o vestiram com roupas riquíssimas, sepultando-o com pompa em importante templo sob genuínas manifestações de pesar do povo. A partir daí, Drácula passou a ser tido como bravo defensor da fé cristã ortodoxa e herói da independência romena.


Um dos castelos de Drácula. Estava em ruínas, mas foi totalmente restaurado pelo governo romeno


Como então surgiram as absurdas histórias constantes das 3ª e 4ª questões? A resposta é que não sabemos e podemos apenas especular. Temos uma teoria relatada a seguir sem qualquer pretensão à verdade, mas tudo indica que é a mais lógica. Acreditamos que com o passar do tempo, numa época em que havia poucos livros e quase ninguém sabia ler, a história real foi aos poucos substituída pelo mito, como sempre ocorre com fatos e pessoas que incendeiam a imaginação popular e se incorporam à tradição oral, passando de boca em boca e de geração a geração com todos os acréscimos e modificações implícitos em tal processo. Depois de décadas, a única lembrança de Drácula na mente ingênua do povo comum era a da sua crueldade, pois a gente simples geralmente se ocupa mais de fatos concretos ligados à sua dura luta diária pela sobrevivência do que de fatos abstratos, como “defesa da fé”, “independência da pátria” e outros fora do seu estreito horizonte existencial. A lenda de que Drácula, além de empalar os inimigos, também lhes bebia o sangue deve ter surgido naturalmente e o fizeram “bicho papão” imortal, do tipo que as mães invocam para assustar as crianças: “se você não se comportar, o DRAGÃOZINHO virá voando morder o seu pescoço e beber seu sangue”!

As histórias ouvidas na infância certamente viraram contos na idade adulta e deviam ser relatados nos serões noturnos sempre com novos ingredientes que faziam o “monstro” ainda mais poderoso e terrível. Isto deve ter se generalizado cerca de dois séculos após sua morte quando os padres reformaram a igreja onde ele fora sepultado e os operários ao abrirem o seu túmulo por necessidade de serviço o acharam vazio. A história espalhou-se como vendaval e até mesmo os descrentes passaram a acreditar nas lendas: Drácula ressuscitara, fugira do solo sagrado e escondera-se em túmulo secreto num dos seus castelos nas montanhas, de onde saía à noite em forma de lobo ou de morcego para beber sangue humano, único alimento capaz de mantê-lo vivo dormindo no seu túmulo durante o dia!

O “mistério do túmulo vazio” jamais foi esclarecido e é o mais poderoso elemento da lenda de Drácula, mas nenhum registro histórico o acusa de vampirismo. Até porque se ele realmente fosse um vampiro a conservadora Igreja Cristã Ortodoxa jamais lhe daria o status que lhe deu. O secular atraso e a localização remota da Romênia impediram durante séculos que a lenda de Drácula se espalhasse pelo mundo, até que Bram Stocker a descobriu em pesquisas no Museu Britânico e nela viu ótimo material para um romance gótico. Nascia assim o "vampiro" Conde Drácula! 


quinta-feira, 2 de junho de 2011

Post nº 40

A  MORTE  DO  REI  ARTHUR

"Morte D'Arthur" - Quadro célebre de Edward Burne Jones (séc. XIX). Escola Rafaelita

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Há várias versões sobre a morte de Arthur, todas elas mais ou menos lendárias, porém a mais provável diz que ele morreu por ferimentos causados por seu sobrinho Mordred na batalha do rio Camlaan, na qual Arthur o matou. Vejamos como frei Gildasius Pisanensis conta o fato em seu manuscrito do século VI há pouco descoberto.

           
Arthur estava confiante em uma vitória definitiva ainda no outono, mas Mordred já descobrira a posição de cada batalhão e sabia exatamente onde estava o batalhão do rei. Assim, reuniu os mil e quinhentos homens que lhe restavam depois das perdas sofridas até então, preparou a emboscada em um vasto local descampado cercado de florestas às margens do riacho Canlaan, onde havia uma velha ponte romana que Arthur deveria atravessar em sua marcha, e se escondeu na floresta na noite anterior à sua presumível passagem. Porém Arthur tivera uma ligeira indisposição e resolvera atrasar a marcha em um dia, de sorte que papéis foram trocados e quem chegou ao local foi o batalhão de Gwain, que estava à sua esquerda.

Arthur e suas tropas. Note-se as bandeiras com imagens de dragões herdadas do seu pai Uther, cognominado "O Senhor dos Dragões" - gravura medieval

     
Amanhecia e o nevoeiro não permitiu Mordred ver a diferença, atacando o seu primo e o esmagando após uma hora de luta feroz. Gwain e quase todos os seus homens morreram, mas alguns escaparam e foram relatar a Arthur o desastre, dizendo-lhe que o inimigo possuía tropas quatro vezes mais numerosas do que qualquer batalhão real isolado, fazendo-o decidir-se a esperar a chegada dos batalhões de Kay, Tristan e Bors, acampados próximos e imediatamente chamados. Quando Kay e Tristan chegaram, ele resolveu marchar para o local da batalha, apesar da prudência dos seus generais que o aconselhavam a esperar a chegada de Bors para só então atacarem em igualdade de condições. Porém Arthur estava temeroso de que Mordred fugisse antes e decidiu atacar de qualquer maneira, pois ficara furioso com o tratamento que ele dera a Gwain, pendurando-o nu pelos pés no galho de uma árvore após mutilar seu cadáver. Gwain lutara bravamente e infligira às tropas de Mordred severas baixas, porém ele ainda dispunha de boa superioridade numérica sobre os batalhões de Arthur que marchavam ao seu encontro, mas como não sabia disso decidira fugir após constatar o seu engano, tal como o rei previra.

O cavaleiro negro estava dividindo novamente seus homens em bandos e lhes designando as áreas de operações quando Arthur atacou com toda força. Apesar da superioridade numérica, os indisciplinados facínoras de Mordred não eram adversários à altura dos soldados de Arthur e começaram a recuar lentamente para o outro lado do riacho através da velha ponte, pois as chuvas dos dias anteriores o tinham transformado em caudaloso rio, impossível de ser cruzado a nado por homens vestidos com pesadas armaduras. Um quarto dos rebeldes já estava do outro lado quando Bors chegou pela mesma margem e os enfrentou de igual para igual. Mordred era um carniceiro brutal, mas era astuto e inteligente: percebeu que se todos os seus homens fossem para o outro lado e ele bloqueasse a passagem, poderia aniquilar Bors sob o olhar impotente do rei: quando finalmente fugisse teria destruído os batalhões de dois dos seus mais importantes generais. Assim, ordenou que suas tropas a cruzassem depressa e liquidassem Bors enquanto ele e seus ferozes seguidores detinham o adversário na margem oposta. Vendo o seu velho camarada ser massacrado, o rei redobrou seus esforços e em desespero foi abrindo largos claros à sua volta até deparar-se frente a frente com o cavaleiro negro na entrada da ponte. Parou diante dele e autoritário ordenou aos demais: “Deixem o canalha comigo”!

Era uma velha tradição celta que quando dois líderes inimigos se enfrentassem cara a cara os seguidores de ambos se afastariam e deixariam os dois combaterem até que um vencedor surgisse. Neste caso os seguidores do líder derrotado se renderiam. Iniciou-se então o mais famoso duelo individual de que se tem notícia. Embora tivesse a metade da idade do tio, logo ficou claro que Mordred não era adversário para Arthur, e foi lentamente recuando até o meio da ponte.

Galahad. Embora seja considerado um
dos maiores cavaleiros de Arthur, ele
não lutou na batalha do Canlaam

       
Bors e seu batalhão já tinham sido esmagados e todas as tropas rebeldes estavam na margem atrás de Mordred enquanto as tropas reais estavam na margem atrás de Arthur, de modo que ambas as margens estavam ocupadas pelos partidários dos seus respectivos campeões e assistiam em silêncio mortal o terrível embate. De repente a espada de Arthur, apelidada excalibur, fez um gracioso volteio no ar e penetrou fundo no peito de Mordred por entre as brechas da sua armadura. O cavaleiro negro cambaleou e caiu pesadamente ainda segurando a sua espada, enquanto o rei voltava-se para os seus soldados com excalibur erguida para o alto em sinal de vitória e era por eles aplaudido delirantemente. Então fez uma coisa idiota: na embriaguez da vitória, ao invés de aproximar-se do inimigo por trás para dar-lhe o golpe final na garganta, aproximou-se de frente para tirar-lhe o capacete e cortar-lhe a cabeça como o seu pai costumava fazer. Quando se curvou confiante para executar a tarefa, Mordred reuniu suas últimas forças e com a espada que ainda segurava golpeou a ilharga do tio; ele recuou um pouco, mas voltou e deu o golpe de misericórdia no traiçoeiro inimigo. Curvou-se novamente, tirou-lhe o elmo, suspendeu-o pelos cabelos e cortou-lhe a cabeça, exibindo-a triunfante enquanto as tropas adversárias fugiam em pânico e embrenhavam-se na floresta adjacente. Foi só então que o rei se apoiou em um dos seus soldados e todos viram que ele estava gravemente ferido. Prestaram-lhe os socorros de emergência, mas a ferida era profunda e por mais que tentassem não conseguiram parar a lenta sangria. Kay ordenou que o rei e todos os soldados feridos fossem postos em padiolas e levados ao castelo de Avalon na manhã seguinte, pois embora o castelo ficasse bastante próximo, a tarde já chegava ao fim; a esperança era de que se Arthur conseguisse atravessar a noite os poderes mágicos de Morgana lhe salvariam a vida e curariam os demais feridos no outro dia. Ele dormiu a noite inteira, e quando todos partiram ao amanhecer a sangria cessara e ele estava lúcido, chegando a trocar palavras com os enfermeiros. 

Ao meio-dia a longa procissão avistou o castelo e todos ficaram encantados com a sua beleza: era cercado de vasto pomar em um alto que se elevava do lago criado pelas últimas chuvas, de forma que para alcançá-lo tinham de usar balsas e canoas. Avisados da catástrofe, Merlin, eu e a rainha chegamos dois dias depois e demos graças a Deus por encontrarmos Arthur vivo e conversando: a opinião de Merlin de que Morgana possuía poderes excepcionais era verdadeira. Ambos tiveram uma longa conversa que ele me resumiu apreensivo: Morgana lhe dissera que se a ferida tivesse sido feita por mão estranha Arthur escaparia, mas como fora feita por gente do seu sangue as chances eram remotas.

O romance medieval tinha uma visão irrealista
do Graal, pois sendo cálice de um carpinteiro
ele devia ser de madeira
           
     
A grande maioria dos soldados tratados por Morgana se recuperou rápido, mas após uma semana a febre de Arthur se elevou e ele começou a delirar, alternando momentos de lucidez com momentos de inconsciência. Desde que chegara, Merlin não saíra da sua cabeceira, aplicando toda a sua ciência médica no tratamento do sobrinho, porém no fim da segunda semana me chamou e disse: “Não há mais esperança; ele morrerá dentro de algumas horas; vamos rezar uma missa na sua presença e ministrar-lhe os últimos sacramentos”. Falou que não tinha condições emocionais de rezar o ofício e me pediu para fazê-lo. Senti-me honrado e o rezei em frente à cama do rei, que estava ladeado pelo tio, a esposa e a irmã acompanhada de algumas seguidoras. Quando pus na sua boca a sagrada hóstia ele saiu do torpor e tomou das minhas mãos o cálice de ouro reluzente exclamando: O Graal! O Santo Graal! Eu finalmente o encontrei!

Apertou o cálice contra o peito e morreu.







domingo, 22 de maio de 2011

Post nº 39

O  MISTÉRIO  DO  TESOURO  DOS  CAVALEIROS
TEMPLÁRIOS


O paradeiro do tesouro dos Cavaleiros Templários tem sido alvo de minuciosas
buscas nos últimos setecentos anos, mas até hoje nada foi encontrado

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Um dos grandes mistérios da História é o do Tesouro dos Cavaleiros Templários, pois é certo que ele existia, mas não se sabe nada sobre o seu destino. As hipóteses são muitas e aqui examinaremos algumas, mas temos nossa própria teoria, a qual até agora não vimos ser apresentada por ninguém. Ao final a apresentaremos, mas antes recapitulemos os fatos.
             
Na madrugada da sexta-feira 13 de outubro de 1307 (a fama de dia aziago da sexta-feira 13 vem daí) o rei Felipe IV da França desfechou golpe devastador contra a poderosa Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém que tinha a sua sede em Paris e filiais espalhadas por todo o mundo cristão. Ela fora uma estranha novidade na época da sua criação porque era uma Ordem Religiosa formada por monges que ao invés de viverem reclusos rezando nos mosteiros viviam nos campos de batalha lutando contra os muçulmanos. Geralmente eram jovens nobres fanaticamente religiosos, treinadíssimos nas artes marciais e habilíssimos cavaleiros, cujos esquadrões couraçados pesadamente armados equivaliam aos modernos batalhões blindados, capazes de destroçar exércitos inteiros. Este misto de monge fanático e guerreiro temível infundia o mais completo terror ao inimigo e fez dos Cavaleiros Templários a espinha dorsal dos exércitos cruzados.
 

A Ordem fora criada apenas para defender os lugares santos,
mas ficara riquíssima. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
             
O seu objetivo fora defender o Santo Sepulcro e manter o Reino Cristão da Palestina, mas com o fim deste e a reconquista de Jerusalém pelos muçulmanos os fracassos das tentativas de retomá-la diminuíram o prestígio da Ordem, que se viu finalmente obrigada a abandonar o Oriente e mudar sua sede para a cidade de Paris. Todavia, ao longo de dois séculos de lutas, montara extraordinária estrutura logística que lhe permitira acumular enorme riqueza e experiência comercial, tornando-se a primeira empresa multinacional da História. Possuía grande esquadra e entrepostos comerciais nas cidades e portos mais importantes da Europa, não só da costa Mediterrânea, mas também da costa Atlântica, tornando-se banqueiro da Igreja e dos príncipes europeus de relevo. Isto resultou na substituição das suas antigas virtudes religiosas e militares pelos vícios da  pompa e da arrogância, que sempre andam juntos com a riqueza e o poder.

Aos poucos a sua imensa popularidade foi virando intensa antipatia, criada por seus defeitos e fomentada por seus devedores, entre os quais estavam príncipes estroinas aliados a inimigos invejosos, sobretudo bispos despeitados por não terem jurisdição sobre os monges guerreiros e serem eles muito mais ricos, poderosos e prestigiados. Mas o pior de tudo era que sua riqueza provocava não só inveja, mas também boatos no meio do povo de que eles lidavam com as "ciências ocultas" e tinham aprendido a fabricar ouro com os "diabólicos" sábios do Oriente. Numa época de intenso fanatismo e enorme ignorância, isso era visto como feitiçaria e mais que suficiente para mandar qualquer cientista ou pesquisador à fogueira.
 

Achava-se que os templários tinham aprendido a ciência da Alquimia no Oriente
e fabricavam ouro em seus mosteiros. Tela de Joseph Wright (séc. XVIII)
         
Em 1307 a tensão entre a riquíssima Ordem Templária e o poderoso Rei da França chegou ao máximo e uma surda luta diplomática travou-se entre os dois junto ao Papa, único que sobre ela tinha jurisdição e a quem devia obediência. Felipe advogava a sua extinção sob o argumento de ser ela inútil e um insulto à autoridade dos Reis em cujos domínios operava, mas o Grão-Mestre Jacques de Molay defendia-se alegando ser ela útil à Igreja por ser o “Tesoureiro e o Exército do Papa”. A luta era tão secreta que dela ninguém, do mais humilde plebeu ao mais poderoso nobre, tinha a menor suspeita e só quem dela sabia eram os mais altos círculos da Igreja, do Reino e da Ordem. Impaciente com a demora do Papa, Felipe decidiu enfrentá-lo e destruir a Ordem com um golpe militar devastador, planejado em absoluto segredo e desfechado de surpresa, deixando a todos inertes e estupefatos.
  

O rei francês queria apoderar-se do imenso Tesouro da Ordem, mas
ao ocupar sua sede em Paris nada encontrou 
             
Já relatamos anteriormente o golpe contra os Templários, por isso nos ateremos apenas à questão do Tesouro Templário. Com todos os cavaleiros presos ou mortos e as suas fortalezas em poder das tropas reais, Felipe dirigiu-se ao Templo (nome como eram chamados os mosteiros da Ordem, sobretudo sua sede em Paris) e lá se apoderou de tudo que encontrou. Ninguém sabe o que foi achado porque ele e seus ministros jamais revelaram coisa alguma, mas logo surgiram boatos de que, afora registros de transações comerciais e propriedades imobiliárias, nada havia em ouro, prata, pedras preciosas ou jóias, que todos sabiam lá existir em quantidade. Isto talvez explicasse o seu tremendo mau-humor e fúria contra os Templários nos dias que se seguiram à sua arrasadora vitória, pois, ao invés de festejar com seus asseclas, se trancara com eles em intermináveis reuniões das quais sempre saía sério e aborrecido. A justificativa era que o Rei agora precisava “se explicar” ao Papa, mas isso não convenceu ninguém porque os problemas com a Igreja, que inevitavelmente se seguiriam ao golpe, já deviam ter sido prévia e cuidadosamente avaliados pelo Rei astuto e implacável. Portanto, uma pergunta formigava na cabeça de todos: onde está o Tesouro dos Templários?
           
Decorridos setecentos anos a pergunta continua sem resposta. Uns dizem que Felipe realmente o achou e o gastou pagando as suas dívidas, mas como tal pagamento pode ser explicado pelos imóveis confiscados a hipótese não parece válida. Ademais, não houve aumento no luxo da Corte ou no progresso do Reino, o que mostra que nenhum montante significativo lhe veio às mãos de imediato. Outros dizem que as reservas sonantes da Ordem estavam espalhadas por suas comendas em cidades portuárias do Mediterrâneo e do norte da Europa, onde suas grandes operações comerciais e financeiras eram feitas. Os cavaleiros administradores as teriam embolsado e fugido para lugares distantes onde não poderiam ser reconhecidos e lá vivido confortavelmente o resto dos seus dias. É uma boa hipótese, mas nenhum desses cavaleiros jamais foi encontrado e não há notícia de comenda templária sendo fechada à socapa e seus encarregados fugindo disfarçados no meio da noite. O que se sabe é que os fugitivos ou foram para Portugal, onde obtiveram asilo e proteção, ou se abrigaram nas Ordens dos Cavaleiros Teutônicos e dos Cavaleiros Hospitalários. Foram raros os fugitivos de cujo destino nunca se soube.
 

Castelo de Gisors na França onde muitos acham terem os Templários escondido
o tesouro em uma câmara secreta dos seus subterrâneos
           
A história que virou instigante lenda é a seguinte: desconfiado da timidez do Papa Clemente V e ciente da desesperada situação financeira de Felipe, o Grão Mestre Jacques de Molay suspeitara de que o Rei poderia cometer um ato de extrema violência contra a Ordem, tal como aconteceu; por isso cuidara de remover o Tesouro para lugar seguro e o fizera pouco antes do golpe. Esta hipótese é confirmada pelo depoimento do Cavaleiro Templário Jean de Chalon do Templo de Nemours, diocese de Troyes, prestado em junho de 1308 e conservado no Vaticano. Segundo ele, três carroças cheias de palha e cobertas com toldos deixaram o Templo de Paris ao cair da noite do dia 12 de outubro de 1307, véspera do golpe, e se dirigiram ao oeste em direção ao mar a fim de serem embarcadas em uma frota templária. Diz ele que a frota recebera ordens de Jacques de Molay para ficar ancorada na foz do Rio Sena até receber o carregamento e depois partir para o estrangeiro. Declara ainda que as carroças partiram sob o comando do cavaleiro Gérard de Villiers, mas não sabia para onde a frota navegaria após receber o seu carregamento. Afirma também que as carroças nunca chegaram e os navios levantaram âncora sem a preciosa carga!
           
É aí que nasce a lenda. De acordo com ela as carroças já estavam na Normandia quando seus disfarçados condutores souberam do golpe e puseram em ação o “Plano B”, enveredando por estrada secundária e dirigindo-se a um abrigo seguro. Este abrigo seria o Castelo de Gisors, fortaleza dos Templários por eles mesmos construída e certamente ainda não ocupada pelas tropas reais devido à sua localização remota e pouca importância militar-comercial. Por isso ela era usada mais como retiro para cavaleiros idosos e doentes do que como quartel e base de operações. O tesouro teria sido levado para uma capela subterrânea secreta e lá permanece até hoje.
           
A lenda tem dado causa a inúmeras expedições arqueológicas profissionais e amadoras, escavando os mais recônditos lugares do Castelo de todas as formas possíveis e imagináveis, mas nenhuma capela subterrânea secreta foi encontrada. Há indicações de que o próprio Rei Felipe, informado na época do depoimento de Jean de Chalon,  ordenara buscas no local, mas disso não há qualquer confirmação. O mais provável é que o tesouro tenha sido realmente embarcado para algum país estrangeiro e o Rei tenha se resignado ao seu fracasso, amenizando-o com as horríveis torturas e execuções que durante anos infligiu aos infelizes Cavaleiros que tiveram a desdita de caírem em suas garras. É isso que nos leva à nossa própria teoria.


Alguns acham que os Templários conheciam a sabedoria do antigo Egito
e seus pergaminhos estariam em câmaras secretas como esta
             
Achamos que Jacques de Molay não previra que a ousadia de Felipe chegaria ao ponto de prender, torturar e executar os cavaleiros, apoderando-se de seus quartéis e propriedades, mas previra que ele poderia forjar um incidente para ocupar o Templo de Paris e, como refinado patife que era, apoderar-se do dinheiro lá existente. Depois de lhe dar sumiço, diria ao Papa que a ocupação fora um engano, botaria a culpa em algum ministro, negaria ter se apoderado do Tesouro e seria a palavra dele contra a dos templários. Por isso De Molay, avisado de que algo grave se preparava, cuidou de mandar o Tesouro para Portugal, cujo ilustre Rei Diniz, guerreiro e poeta a quem o povo chamava Diniz o Trovador, era fiel amigo dos Templários. A cultura, integridade, sabedoria e justiça de Diniz eram conhecidas e valorizadas por todos e acreditamos que os dois tenham se acertado previamente. Diniz não decepcionou, pois protestou duramente junto ao Papa contra a vilania de Felipe e deu asilo e proteção aos cavaleiros que chegaram fugitivos ao seu reino.
       
Em Portugal a Ordem continuou a funcionar normalmente enquanto não extinta pelo Papa Clemente V em 1312, e permaneceu funcionando depois sob o nome de Ordem dos Cavaleiros de Cristo. Os cavaleiros de uma tornaram-se cavaleiros da outra e tudo permaneceu igual, exceto o nome. Nem mesmo a sua sede em Tomar mudou, e o seu imponente Castelo lá está até hoje como orgão público e sede simbólica da antiga Ordem. 
  

Se o tesouro existe, é mais provável estar escondido em uma câmara secreta do castelo
de Tomar em Portugal do que do castelo de Gisors na França
            
Três circunstâncias fortalecem a tese de que o Tesouro dos Templários foi mandado para Portugal. A primeira é que na Península Ibérica estavam dois terços dos castelos europeus da Ordem, pois exceto na França a sua presença militar era inexpressiva em outros países, onde possuía apenas comendas não fortificadas. Nas ilhas britânicas a sua presença era simbólica na Irlanda e na Escócia e seu único estabelecimento de relevo na Inglaterra era a sua grande loja em Londres, dedicada mais a atividades religiosas e comerciais do que a atividades militares. Na Alemanha e na Escandinávia ela era eclipsada pela Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. Do mesmo modo que na Inglaterra, as suas lojas no Reno e no Mar do Norte também se dedicavam principalmente à atividades religiosas e comerciais. A segunda circunstância importante é que na Península Ibérica existia o único Reino Muçulmano da Europa Ocidental, com o qual os príncipes cristãos da Península estavam sempre em guerra, fazendo com que o grosso dos efetivos combatentes da Ordem estivesse lá. A terceira e última circunstância de peso é que Portugal, proporcionalmente ao seu tamanho e população, não só possuía o maior número de Castelos Templários do continente como, ao contrário do que ocorria na França, tinha na Ordem uma poderosa aliada no fortalecimento da sua monarquia, a qual contara com a valiosa ajuda dos cavaleiros para expulsar os muçulmanos e unificar o país. Assim, a Ordem tinha no rei português dedicado amigo e aliado da mais absoluta confiança, não sendo de estranhar ela lhe confiar a guarda do seu Tesouro em momento de grande perigo e incerteza política.
 

A chegada ao porto de Lisboa de frota Templária após o golpe aumenta
a suspeita de que o tesouro da Ordem foi levado para Portugal 
            
Foi a partir da fuga dos Templários para Portugal que a prosperidade do país começou. Em 1308, pouco depois do golpe e da chegada dos navios da frota templária a Lisboa, Diniz fundou a Universidade de Coimbra, que viria a ser uma das maiores da Europa medieval, plantou vastos pinheirais para construir navios, edificou grandes estaleiros e criou a Marinha Portuguesa, que em um século se tornaria a maior da Europa e daria início às grandes navegações que mudariam a face do mundo. Curiosamente, o autor do plano de expansão marítima de Portugal foi o príncipe Henrique, chamado “O Navegador”, que era o Chanceler de direito e Grão-Mestre de fato da Ordem dos Cavaleiros de Cristo, nome sob o qual os Templários continuaram a operar em Portugal. Portanto, a pergunta que se impõe é: sendo Portugal um pequeno e pobre país, de onde veio o dinheiro para os grandes feitos administrativos e estratégicos do ilustre Rei Diniz e seus sucessores? Acreditamos que a resposta só pode ser uma: o dinheiro veio do Tesouro que os agradecidos Cavaleiros Templários puseram à disposição do bravo e progressista monarca que tão generosamente os acolhera e protegera! Tudo o mais que hoje se fala sobre o assunto são apenas imaginosas tramas de boas novelas policiais, destinadas a atender o gosto de vasto público por histórias de aventura e mistério.


Nota: o Rei Diniz (1261-1325) foi não só o maior rei da História de Portugal como também o mais culto e progressista monarca europeu do seu tempo. Foi educado por doutores da Universidade de Paris e, além de possuir vasta erudição histórica, científica e literária, era ele próprio excelente poeta, tendo mandado publicar uma coletânea dos melhores poemas que circulavam oralmente em seu país. A coletânea ficou conhecida como Cancioneiro D'el Rey Dom Diniz e o refinado estilo de vários dos poemas  indicam terem eles um mesmo autor, possivelmente o próprio rei, que por isso recebeu do seu povo o carinhoso apelido de Diniz o Trovador. Caso isto se confirme, poder-se-a dizer ter sido ele o criador do Português como língua culta independente.