sábado, 27 de agosto de 2011


Post nº 45

ALARICO  REI  DOS  GODOS
CONQUISTA  ROMA

Vindos da Ucrânia e do norte da Romênia, os godos invadem e ocupam Roma em 
agosto de 410 DC. Tela de Ulpiano Checa (séc. XIX)



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Se houve um Império que caiu mais pela incompetência dos seus dirigentes do que pelas suas reais condições, foi o Império Romano do Ocidente. Quando olhamos as coisas retrospectivamente, vemos que apenas algumas atitudes corretas teriam evitado a catástrofe, pois o poder de conciliação e de adaptação dos romanos era um dos traços mais peculiares da sua civilização. Fora assim nas disputas patrícios x plebeus, republicanos x imperiais, nacionalistas x internacionalistas, jus civile x jus gentium, religião local x religiões estrangeiras, raça latina x outras raças, uniculturalismo x pluriculturalismo, paganismo x cristianismo, etc. Ao longo de 700 anos a palavra de ordem da civilização romana fora “inclusão”, mas na 2ª metade do século IV mudou para “exclusão”. Estudar as razões disto é tarefa árdua, mas as evidências mostram que foi ela, em última análise, a causadora da derrocada do Império.

Como já vimos anteriormente, os povos góticos que fugiam dos hunos foram admitidos no território imperial como imigrantes em 376, mas ao invés de lhes dar tratamento de súditos os romanos deram-lhes tratamento de refugiados, espécie até então desconhecida no Direito do Império, internando-os em “campos de concentração”, à exceção de alguns poucos milhares de jovens fortes e saudáveis incorporados ao exército. Porém muitos outros milhares não foram tão afortunados e, vendo os maltratos a que eram submetidas suas famílias, rebelaram-se, organizaram-se e esmagaram os romanos na batalha de Adrianópolis em 378, destruindo o exército do Oriente e matando o imperador Valente. O exército ocidental e o seu imperador Graciano, prudentemente voltaram à Itália temendo que os godos marchassem sobre Roma após dominarem Constantinopla, mas eles nem a dominaram nem saíram dos Bálcãs, onde ficaram confinados pela hábil política diplomática e militar de Teodósio, novo imperador romano do Oriente.

Mas o principal obstáculo à integração dos godos no Império era o fato de serem cristãos da seita ariana, que disputava com a seita católica o domínio da Igreja Cristã. Teodósio era católico e partilhava da intolerância e do exclusivismo de sua seita, que não tolerava nenhuma outra por mais devotos e virtuosos cristãos que fossem os seus fieis. Este era o caso dos godos, fervorosos adeptos da doutrina do bispo Ário, declarada herética pelo concílio de Niceia por considerar "politeísta" a teoria da "santíssima trindade", pilar doutrinário da seita católica, defendida com extremado zelo por seu líder, o bispo Atanásio. Na época da chegada dos godos, o catolicismo dominara a Igreja Cristã, controlava vastos setores do governo, e perseguia os arianos com todas as armas ao seu alcance. Por mais absurdo que pareça, os católicos tinham mais ódio aos arianos, apesar destes serem cristãos devotos, do que aos pagãos, que rejeitavam totalmente o cristianismo. Foi, portanto, a intolerância católica o principal obstáculo à inclusão dos godos na sociedade romana, gerando o rol de catástrofes que, conjugados a outros fatores, levariam o Império à sua derrocada final.

Após a absurda “exclusão” dos povos góticos, causadora do desastre de Adrianópolis, os romanos não voltaram à antiga política “inclusiva” e persistiram na política suicida de lidar com os incômodos “hóspedes” cruel e desonestamente, considerando-os “bárbaros” apesar de serem cristãos devotos, trabalhadores honestos e soldados valentes. Em um Império onde tudo que desejavam era a admissão como súditos leais, os godos continuaram vivendo marginalizados e sujeitos à permanente injustiça, mas por volta de 390 um novo líder surgiu entre eles: Alarico!

Após a morte de Teodósio os godos dominaram os bálcãs e Alarico entrou
vitorioso em Atenas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)

O seu valor logo atraiu a atenção do imperador Teodósio e do seu ministro Stilicon, que “compraram” a sua colaboração. No ano de 393 o usurpador Eugênio dominou a Gália e a Itália, obrigando Teodósio a marchar contra ele e derrotá-lo na batalha do rio Frígido, próximo aos Alpes Julianos. A vitória foi custosa e deveu-se principalmente aos godos, que lutaram nas posições mais perigosas e sofreram as maiores perdas. Como recompensa, Alarico obteve boa paga e o posto de general romano, mas nenhum comando importante. Ele sentiu-se injustiçado, pois devendo-se a vitória aos godos justo seria fossem eles incorporados ao exército e lhe fosse dado um comando relevante. Isto não ocorrendo, voltou às suas bases com os seus homens indignados enquanto o já gravemente enfermo Teodósio cometia mais um erro de funestos resultados ao Império: ao invés de nomear seu sucessor o competente general Stilicon, leal ministro e marido de uma sobrinha que criara como filha, nomeou seus dois filhos menores imperadores do Ocidente e do Oriente sem que nada os credenciasse aos altos cargos, a não ser o fato de serem seus filhos.

O fato do império ter sido dividido e entregue a dois idiotas, produziu enormes atritos entre eles, imobilizando na Itália o bravo Stilicon, que teve de dirigir todas as suas energias para resolver os problemas criados pela corrupta corte de Constantinopla, presidida pelo incompetente Arcádio e seus ministros ladrões, devassos e pervertidos, destituídos da mais mínima sombra de espírito público. Da confusão aproveitou-se Alarico para vingar-se da ingratidão dos romanos, devastando os Bálcãs e a Grécia, cuja capital Atenas ocupou e saqueou, sem encontrar qualquer resistência por parte dos dois decadentes impérios, mais interessados em intrigas, rivalidades pessoais e lutas intestinas do que na preservação da paz e da prosperidade pública.

Sendo apenas tutor do idiota Honório, imperador do Ocidente, e nenhum controle tendo sobre o petulante Arcádio, imperador do Oriente, Stilicon desdobrou-se na tarefa de manter de pé o Império. Para tornar ainda mais difícil a sua tarefa, os romanos confundiam os civilizados godos com os primitivos germânicos e por isso também odiavam os godos. O fato impediu o bravo comandante de tomá-los como aliados e o fez persistir na política de tê-los como “traiçoeiros inimigos”. Isto produziu várias batalhas entre godos e romanos, sempre vencidas por estes devido ao talento militar de Stilicon, porém quando finalmente viu que os godos não eram problema, mas solução, procurou convencer o imbecil Honório, seu genro e ex-tutelado, a firmar um tratado de paz e colaboração com os mesmos. Todavia, enquanto ocorriam as negociações, Stilicon foi assassinado em 408, vítima de uma absurda intriga palaciana, e o tratado foi esquecido.

O assassinato de Stilicon deixou o Império indefeso e Alarico iria fazê-lo
pagar por todas as iniquidades praticadas contra os godos

Após a morte de Stilicon, seguiu-se brutal massacre de milhares de famílias góticas que viviam pacificamente em cidades italianas e a indignação dos godos chegou ao máximo. Afastado do cenário o único líder romano que respeitava, Alarico perdeu a paciência e invadiu a Itália em 409, derrotando a incompetente nova liderança militar inimiga e sitiando Roma. Isto não acontecia desde o século III AC, quando o alarme ressoara nas ruas ao saberem que o cartaginês Aníbal aniquilara as suas aguerridas legiões na batalha de Canas e marchava sobre a cidade. A diferença é que seiscentos anos antes os romanos eram guerreiros que lutavam por patriotismo e vontade própria, mas agora eram um bando de arrogantes preguiçosos, acostumados a viverem à custa do Erário, suprido por províncias cuja espoliação era garantida por um exército profissional de mercenários estrangeiros.

Para enfrentar a grave situação, tudo que podiam fazer era rezar por um milagre, e este ocorreu porque o objetivo do devoto Alarico não era fazer mal a Roma, que respeitava por considerá-la a sagrada cidade de São Pedro, mas forçar o idiota imperador Honório a negociar a INCLUSÃO dos godos no Império. Como sempre, tudo que queriam era tornarem-se cidadãos, receberem terras ociosas para os seus agricultores, cargos no Serviço Público para os seus letrados e postos no Exército para os seus guerreiros.

Efígie de Alarico em uma antiga gravação em aço

Por incrível que pareça, o que os decadentes romanos deveriam ter como generosa dádiva foi tida como humilhante chantagem e por isso negaram-se a negociar com os “saqueadores bárbaros”, como chamavam os godos, mantendo a mesma política suicida de exclusão adotada há mais de 30 anos. Seguro na inexpugnável cidade-fortaleza de Ravena, o idiota Honório e seus lacaios não deram importância ao perigo que corria Roma e tentaram cansar Alarico com negociações onde promessas jamais viravam atos. Ele então resolveu depor Honório fazendo o Senado proclamar imperador o nobre Átalo, um tolo pomposo que lhe serviria de dócil instrumento, mas isto apenas agravou a situação, pois o governador do Egito, membro da quadrilha de Ravena, cortou o fornecimento de grãos à capital e esta se viu assolada pela fome, ameaçando o próprio exército godo. Vendo que o tiro saíra pela culatra, Alarico “demitiu” o inútil Átalo e a comida voltou, iniciando-se nova rodada de negociações. O impasse já durava mais de um ano quando Honório o convidou para uma conferência em local próximo a Ravena, mas ao invés de preparar-lhe um comitê de recepção preparou-lhe uma cilada, da qual escapou após derrotar o general Saro, e voltou a sitiar Roma com as suas tropas, que já começavam a criticar a sua boa fé e a lhe questionar a liderança.

Saque de Roma pelos godos. O quadro mostra incêndios e gente apavorada nas ruas, mas roubos e depredações foram só de palacetes e prédios públicos. Os pobres pouco sofreram
         
Os muitos meses de cerco sem que os godos invadissem a cidade deram aos moradores um falso sentimento de segurança, fazendo-os acreditar que, enquanto o Imperador ficasse longe em Ravena e o Papa governasse Roma, o devoto cristão Alarico não profanaria a cidade de São Pedro. Por isso os muitos que haviam fugido no início voltaram com as suas riquezas e os poucos que tinham ficado não cuidaram de mandá-las para outro lugar. Até mesmo a princesa Gala Placídia, irmã do imperador Honório, ficara durante o cerco, mais preocupada em vingar-se por ofensas verdadeiras ou imaginárias da sua prima Serena, viúva do seu ex-tutor Stilicon, do que com os ameaçadores godos.

Assim, quando em 16 de agosto de 410 eles arrombaram os portões após desbaratarem a fraca resistência e espraiaram-se pelas ruas aos milhares, os surpreendidos romanos entraram em pânico e renderam-se. O saque começou logo após Alarico instalar-se no palácio imperial, porém, ao contrário do que se pensa, não foi um saque furioso e destruidor, mas metódico e violento apenas na medida do necessário. O clero, as igrejas e mosteiros foram poupados, assim como também as moradas humildes, de sorte que o saque foi principalmente das repartições públicas, casas comerciais, mansões dos ricos e residências de classe média. Incêndios, mortes, torturas e estupros foram poucos em uma operação de tal envergadura, e a maioria deveu-se mais à escória local do que aos conquistadores.

Terminado o saque, Alarico fez cordial visita ao Papa, a quem homenageou como bispo de Roma e sucessor de São Pedro. Depois prosternou-se e orou na basílica do apóstolo diante do seu túmulo, seguido por ordeira fila de todo o exército godo, que mais parecia uma respeitosa multidão de devotos peregrinos do que um exército de bárbaros invasores!

Alarico surpreendeu a todos ao não se proclamar imperador após conquistar
Roma. Gravura de Ludwig Thiersch (1894)
          
A boa conduta dos "heréticos" arianos conquistadores não parava de surpreender os católicos romanos conquistados, que já tinham como certo Alarico proclamar-se imperador logo que os ânimos serenassem, mas a surpresa maior veio no dia 27 de agosto quando, já estando tudo em ordem, ele e o seu exército partiram e marcharam para o sul, dizendo que iriam estabelecer o seu reino na Sicília. Levavam centenas de carroças com os tesouros saqueados e muitos nobres reféns, entre eles a princesa Gala Placídia. Antes de serem libertados mediante pesado resgate, teriam que servir aos godos como escravos a fim de provarem o gosto do trabalho, do sofrimento e da humilhação.

O que se viu nos dias que se seguiram foram patrícias romanas trabalhando como arrumadeiras, cozinheiras, copeiras e lavadeiras, além de prestando sofisticados serviços sexuais aos seus captores. Nobres latifundiários e ricos mercadores foram mandados tratar de cavalos, limparem estábulos e carregarem pesados fardos sob o chicote vigilante dos vencedores. À medida que os polpudos resgates eram pagos, iam sendo libertados e voltavam a Roma contando sua "odisseia" com as tintas piores possíveis, reivindicando para si as glórias do martírio pelo "sofrimento" durante o cativeiro entre os “cruéis bárbaros heréticos”. Ainda bem que alguns foram honestos e contaram a verdade, reconhecendo que o sofrimento fora apenas o merecido castigo por sua sórdida arrogância e pérfida mesquinhez. A única refém não libertada foi a princesa imperial Gala Placídia, seja porque Alarico quisera mantê-la como valiosa moeda de troca em futuras negociações com Honório, seja porque ela se tornara amante do príncipe godo Ataulfo.

Após dois meses percorrendo o sul da Itália, ele chegou ao estreito de Messina onde começou a preparar a travessia marítima do seu povo para a Sicília, que julgara ser a sua Canaã. Porém, em meio aos intensos preparativos, teve um súbito colapso e morreu.

O funeral de Alarico foi misterioso. Dizem que represaram um rio e o enterraram no seu leito seco. Depois
liberaram o rio e ele cobriu o túmulo para sempre. Gravura de Heinrich Leutemann (séc. XIX)

Conta-se que muitos guerreiros se suicidaram para acompanhar na morte o grande chefe morto, mas isso é improvável dado que os godos eram cristãos devotos e o cristianismo proíbe o suicídio, mas a verdade é que o povo chorou durante dias o seu Moisés, morto antes de ver a terra prometida e que além de liderá-los durante anos na travessia do deserto também derrotara o faraó romano em campo aberto e se apossara da sua capital. O seu funeral está repleto de lendas e não se sabe o local do seu túmulo, pois os milhares de godos que o acompanhavam juraram guardar o segredo para sempre, de forma que o único homem que conquistou Roma em oito séculos de História repousa para sempre em lugar ignorado. Isto dá bem a medida da seriedade e honradez dos godos, pois é o único caso na história em que um povo inteiro, com seus milhares de homens, mulheres e crianças cumpre um juramento de forma tão completa e absoluta. Nem mesmo a prisioneira princesa Placídia, presente ao funeral e mais tarde rainha dos godos pelo casamento com Ataulfo, traiu o juramento. Certamente porque na ocasião já devia se sentir mais gótica do que romana!

Todos juraram guardar segredo sobre o local do túmulo de Alarico no leito de um rio temporariamente
represado para o enterro. Gravura de Heinrich Leutemann (séc. XIX)
          
Porém, mais misterioso que o local do seu túmulo é o motivo pelo qual não se proclamou Imperador quando tinha tudo para fazê-lo e, ao invés de tornar-se “Senhor do Mundo”, preferiu abandonar a mais famosa e poderosa cidade de todos os tempos, marchando para longe na busca de criar um modesto reino para o seu sofrido povo em uma ilha supostamente paradisíaca. Jamais saberemos o que se passou em sua mente modesta naqueles poucos dias vividos como senhor absoluto no suntuoso palácio imperial em Roma, mas é razoável supor que sendo ele homem de fé tenha pressentido o fim próximo e tido uma iluminação mística, fazendo-o ver que uma metrópole de costumes duvidosos não era lugar para um povo rural de hábitos sóbrios se estabelecer. Daí sua pressa em partir à procura de um lugar apropriado à sua gente antes que os seus dias na terra findassem.

Ou talvez fosse mais lógico simplesmente pensar que ao invés de se importar com as grandezas do mundo, as delícias do poder efêmero e a vaidade da glória pessoal, Alarico fosse apenas um homem decente que desse muito mais importância à tranquilidade da sua consciência de cristão honesto e à felicidade simples do seu povo humilde.

A longa marcha dos godos das planícies da Ucrânia até a Península Ibérica, onde se
estabeleceram definitivamente, durou 42 anos 

Os godos viram a súbita morte de Alarico como mensagem divina dizendo-lhes que deviam desistir da Sicília, e o novo rei Ataulfo, parente e melhor general do falecido líder, fez a sua imperial amante Gala Placídia obter de Honório um tratado que dava aos godos a cidadania romana e um vasto reino no oeste da França e norte da Espanha, tornando-a rainha dos godos pelo casamento com Ataulfo. A justa romanização dos valorosos imigrantes permitiu a vitória de Aécio sobre Átila em 451 na gigantesca batalha dos Campos Catalúnicos, última grande vitória das águias imperiais. Nos anos seguintes, eles dominaram toda a Península Ibérica onde se fixaram definitivamente, de modo que a terra prometida dos godos terminou sendo a Espanha e Portugal e não a Sicília, como sonhara Alarico.


quarta-feira, 27 de julho de 2011

Post nº 44

TEODÓSIO  -  O  IMPERADOR  ROMANO
QUE  DETEVE  O  AVANÇO  DOS
INVASORES  GODOS  

Santo Ambrósio proíbe o imperador Teodósio entrar na catedral de Milão e o manda
fazer penitência por seus crimes. Tela de Anthonis Van Dyck (1620)


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A conseqüência imediata da esmagadora derrota romana em Adrianópolis no ano de 378 DC foi o caos geral no Oriente, abalando a estrutura do gigantesco Império que desde o século II estendia-se do norte da Inglaterra ao sul do Iraque, do oceano Atlântico ao oceano Índico, das florestas da Germânia às areias do Saara e tinha o mar Mediterrâneo como um lago interior. Com o exército destruído, como poderia o seu domínio manter-se sobre tão imensa área?

Um dos maiores mistérios da História é entender como um Império com milhões de quilômetros quadrados, centenas de povos e dezenas de idiomas diferentes, pôde durar tanto tempo apesar de calamidades e largos períodos de anarquia político-militar, mas entre as várias explicações e fatores apontados para a solução do mistério está a eficiência do Exército. Mas ele agora sumira e ninguém tinha a mínima ideia de como ficariam as coisas sem ele. O resultado foi o pânico generalizado e as autoridades locais fazendo o que podiam para manter a estrutura do Estado e a segurança dos cidadãos enquanto aguardavam pelos acontecimentos. Porém, por incrível que pareça, o temível exército imperial logo se refez do desastre, possibilitando a sobrevivência do Império por mais um século. Como foi possível o milagre?

Vejamos. Muitos pensam que o Exército Romano era enorme, mas ele era incrivelmente pequeno. Seus efetivos eram em média de 180 mil homens, podendo às vezes subir para cerca de 200.000 ou baixar para cerca de 150.000, dependendo da conjuntura político-militar. Verifica-se, portanto, que tanto em seu tamanho máximo como em seu tamanho mínimo ou médio, os seus efetivos eram muito inferiores aos dos exércitos das grandes potências atuais, relativamente bem menos importantes e poderosas do que o antigo Império. Como podia, pois, um exército tão pequeno ser máquina de guerra tão temível?

A chegada em massa dos civilizados godos cristãos ao Império poderia ter sido sua salvação, mas a
incompetência dos romanos os fez principal agente da sua destruição

O segredo estava na organização e não no tamanho. Desde o imperador Trajano o Exército dividia-se em cerca de trinta Legiões, cada uma tendo, quando completa, um total de seis mil seiscentos e sessenta legionários comandados por um general-chefe auxiliado por um ou dois tenentes-generais. Ela dividia-se em dez coortes de seiscentos e sessenta e seis soldados, as quais eram postadas em locais estratégicos da zona sob sua jurisdição. Por sua vez a coorte dividia-se em seis centúrias, as quais se compunham de dez decúrias, a menor e mais coesa unidade do exército. Cuidando da logística da legião, havia cerca de mil auxiliares sem treino militar apropriado, mas que em casos extremos podiam ser chamados à batalha. Durante esta, cada unidade encaixava-se ou destacava-se da outra como peça de um mecanismo e os legionários moviam-se obedecendo apenas ao comando dos seus oficiais, com frieza e sem gestos precipitados.

Com tão extraordinária organização e eficientes táticas uma legião podia assegurar o domínio imperial em vastos territórios com um mínimo de soldados, porém deve ser dito que seus efetivos, armas, formações e táticas de combate variaram bastante no decorrer do tempo, e no século IV raro era a Legião com mais de três mil homens e Coortes com mais de trezentos. Isto explicaria o fato dos romanos, embora lutando em Adrianópolis com cerca de cinquenta mil homens, perderem  trinta e cinco generais e dezesseis Legiões.

Porém, o mais importante durante a crise que se seguiu à batalha de Adrianópolis foi o fato da antiga localização estratégica dos quartéis, sede das tropas que tinham partido para a guerra, ter sido conservada e os quarteis terem permanecido ativos, com toda a sua estrutura burocrática em pleno funcionamento. Por isso, bastou um rápido recrutamento de novas tropas, fácil de ser obtido dado os altos salários pagos aos militares, para que as legiões destruídas fossem refeitas, mantendo-se a unidade e a segurança do Império.

Em decorrência dos alicerces sobre os quais era edificado, o exército romano era capaz de renascer rapidamente das próprias cinzas e voltar a ser a mesma máquina de guerra invencível de antes, salvo quando ocorriam circunstâncias fatais ou erros crassos de comando como em Adrianópolis. Por isso é que a esmagadora derrota causou tanta surpresa, levando todos a julgarem “o fim do mundo”. Mas como uma desgraça nunca vem sozinha, várias outras menores, porém não menos terríveis, ocorreram em seguida por todo o Império, pois gente apavorada sempre joga sua raiva em “inimigos” indefesos. E foi o que ocorreu com milhares de “bárbaros” que viviam pacificamente no Império, massacrados em casa e na rua por multidões furiosas que bradavam insultos homicidas contra os godos miseráveis! Houve mesmo um general que executou centenas de soldados godos há muito servindo lealmente em suas tropas.

Os godos recuaram diante das imensas muralhas de Constantinopla e abandonaram
 o seu projeto de tomar a capital do Império Romano do Oriente
         
Mas enquanto reinava o caos nas cidades do Império, o líder godo Fritigerno saqueou e incendiou os quartéis imperiais fora das muralhas de Adrianópolis, só não a tomando porque julgou ser muito esforço para pouco ganho. Assim, marchou sobre Constantinopla, que pensava estar indefesa, mas enganou-se: uma feroz legião árabe recém chegada, e os poucos oficiais sobreviventes do massacre, armaram os civis e simularam serem uma “grande força defensiva”! As imensas muralhas “fortemente guarnecidas” fizeram-no desistir e ir para o rico interior saqueá-lo sem maiores dificuldades; para aumentar o caos, milhares de famílias góticas cruzaram a indefesa fronteira do rio Danúbio e ocuparam as muitas fazendas desertas, ao mesmo tempo em que os seus jovens, inflamados pela vitória, iam engrossar as fileiras rebeldes.

A gravíssima situação tornou urgente a escolha de um novo Imperador, pois Graciano, Imperador do Ocidente e herdeiro do trono, estava certo da  vitória final dos godos no Oriente e resolvera voltar a Itália a fim de organizar a defesa contra uma provável marcha dos vitoriosos para o oeste. Vendo-se abandonados por Graciano, os pouco generais sobreviventes, incapazes de elegerem novo imperador um dos seus pares devido à rivalidade entre eles, escolheram um antigo colega que deixara saudades ao se demitir do Exército há alguns anos para cuidar de suas propriedades na Espanha: Teodósio!

De família nobre e riquíssima, era filho de bravo general e ilustre ministro do imperador Valentiniano I. Isto o ajudara a fazer rápida carreira no exército, mas o seu pai caiu em desgraça durante a sucessão do imperador falecido e foi executado por ordem do novo imperador Graciano. Face à desgraça, o jovem Teodósio achou prudente se afastar e ir cuidar dos seus negócios na Espanha. Estava lá quando recebeu a notícia da sua escolha para envergar a púrpura imperial, mas antes exigiu que o imperador Graciano, legítimo herdeiro de Valente, a referendasse, o que foi difícil porque havia intensa antipatia entre os dois. Com ou sem o decreto no bolso, viajou com um grupo de nobres generais espanhóis seus amigos e fixou sua capital em Salônica, ponto estratégico para a guerra em curso. Sua primeira providência foi recriar o exército, e o conseguiu em prazo breve. Após um ano de combates e intensa diplomacia, conseguiu botar ordem no caos e mudar-se para Constantinopla, de onde habilmente comandou a guerra atraindo os adversários mais receptivos e derrotando os mais recalcitrantes.

Teodósio era de riquíssima família espanhola e foi o último imperador a governar os
Impérios Romanos do Oriente e do Ocidente unificados (378-395 DC)

O seu golpe de mestre foi receber com grandes honras o velho chefe godo Atanarico, que por muitos anos guerreara os romanos e se afastara bem antes da batalha de Adrianópolis por política, velhice e doença. Embora não tivesse mais poder algum, era muito respeitado por seu povo e as grandes atenções que Teodósio lhe deu, tratando-o como seu igual, não só o comoveram, como também aos seus antigos liderados, facilitando a paz definitiva. Quando meses depois Atanarico faleceu, Teodósio o homenageou com funerais suntuosos, dignos de um imperador, e isto facilitou ainda mais as coisas, permitindo que no final de 382 um Tratado de Paz fosse celebrado. 
         
Porém, apesar de Teodósio dar aos godos boa parte do que exigiam, sobretudo terras, subsídios, ingresso no exército e na burocracia, o que mais influiu no acordo foi serem eles cristãos romanizados, ansiosos por fazerem parte do Império. Isto ajudou bastante, mas o fato de serem cristãos da "Seita Ariana”, fanaticamente combatida pela "Seita Católica”, dominante em Constantinopla, na corte e na região por eles ocupada, causou muitos empecilhos. O próprio Teodósio era um fiel Católico e isto certamente influenciou sua conduta dúplice depois do Tratado, conduta que daí em diante condicionaria os romanos a lidar com os godos sempre de forma traiçoeira e desonesta. Ademais, o extremado Catolicismo de Teodósio o levaria não só a hostilizar os Arianos, como a proibir o Paganismo, introduzindo no Mundo Antigo um conceito até então desconhecido: Intolerância Religiosa! Ao fazer isso, deflagrou o processo que findaria a Idade Clássica e iniciaria a Idade Média.

De qualquer forma, o novo imperador conseguira superar a grave crise e salvar o Império de uma catástrofe que a todos parecera inevitável. Apesar da arrogante incompetência do seu antecessor e desvairada bandalheira da burocracia, Teodósio realizara uma proeza notável: injetar vida nova a um Império moribundo e salvar Roma.
        
Pelo menos por enquanto.


Nota: a palavra bárbaro entre os romanos não tinha o sentido que lhe damos hoje, significando na época apenas "povo estrangeiro ignorante", que não sabe Latim e fala "bar-ba-bar-ba-bar-ba". Foi a piada o que deu origem à palavra. Todavia, povos civilizados ou com elites civilizadas, como cartagineses, gregos, egípcios, armênios, árabes e persas, não recebiam esse apelido depreciativo. Após a expansão do Império por quase todo o mundo conhecido, bárbaros eram apenas os povos além-fronteiras do norte e nordeste que não sabiam ler e escrever. Depois que o notável bispo godo Úfila  converteu seu povo ao cristianismo ariano em meados do século IV, dando ao seu idioma uma escrita e para ele traduzindo a Bíblia, tornou-se extremamente inapropriado chamar os godos de bárbaros. O fervor com que eles abraçaram a nova religião fez surgir em seu meio muitas paróquias com escolas, pois todos queriam aprender a ler os ensinamentos do Senhor no Livro Sagrado. Só por incrível arrogância e despeito é que os romanos continuaram a chamá-los de bárbaros após a catastrófica derrota que eles lhes impuseram em Adrianópolis, cujos antecedentes mostram que no caso bárbaros eram os romanos e não os godos. Mais do que pela competência de Teodósio, os romanos foram salvos por serem os godos cristãos devotos e preferirem confraternizar com inimigos também cristãos a destruí-los. A sua generosa atitude lhes traria muito sofrimento e decepção, mas por fim infligiriam aos romanos um castigo que eles jamais esqueceriam.     


segunda-feira, 11 de julho de 2011

Post nº 43

BATALHA  DE  ADRIANÓPOLIS  –  COMEÇO
DO  FIM  DO  IMPÉRIO  ROMANO


Em Adrianópolis os exaustos romanos ficaram horas sob o sol forte, respirando a fumaça das fogueiras
acesas pelos godos enquanto as demoradas negociações entre seus líderes se arrastavam

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Um dos grandes paradoxos da história é que, embora tenha sido travada pelo Império Romano do Oriente, a batalha de Adrianópolis em nada influenciou o seu destino, mas influenciou decisivamente o lento processo de extinção do Império Romano do Ocidente que nela não tomou parte. Para que possamos entender tão intrigante paradoxo, é preciso analisar não só o desenrolar da grande batalha, mas também as suas lamentáveis causas e as suas funestas consequências.

No final do século III, uma tribo de ferozes cavaleiros que vivia entre as montanhas do Afeganistão e o Mar Cáspio invadiu a Europa e ocupou a vasta região entre o Rio Volga e o Rio Dom. Após derrotarem os alanos, estes se tornaram seus aliados e continuaram sua implacável marcha para o oeste. Os conquistadores eram chamados de Hunos e em meados do século seguinte atacaram os greutungos e os tervíngios, tribos numerosas que habitavam as atuais Ucrânia e norte da Romênia. Referidas tribos eram da mesma etnia e possuíam língua e cultura comum, fazendo com que os romanos os considerasse um único povo ao qual davam o apelido genérico de Godos. Eles eram bastante civilizados e, ao contrário do que diz a história oficial, não tinham qualquer parentesco com os germânicos nem com os escandinavos, como a maioria dos historiadores tem insistido em repetir erroneamente através dos séculos. O erro se deve a uma obra equivocada do historiador do século IV Amianus Marcelinus, que não conseguia distinguir bem entre os inúmeros povos bárbaros, habitantes de regiões remotas além das fronteiras do império, dado as poucas informações de que dispunha.

Não se sabe se os godos eram eslavos, mas é certo que há muito viviam na atual Ucrânia e eram superiores culturalmente aos germânicos e aos escandinavos conforme provam as modernas pesquisas arqueológicas, não tendo os seus idiomas semelhanças maiores apesar de serem do ramo indo-europeu. Vivendo nas fronteiras do Império, os godos tinham intenso relacionamento comercial e cultural com os romanos, às vezes pacífico e às vezes conflitante, mas este cresceu e melhorou muito depois que eles adotaram uma escrita criada para o idioma gótico pelo bispo Úfila, seu erudito compatriota radicado em Constantinopla, o qual também lhes traduziu a Bíblia e os converteu ao cristianismo da Seita Ariana por ele professada. Esta disputava com a Seita Católica, na época chamada de "ortodoxa", a supremacia do mundo cristão. Os arianos, portanto, eram dissidentes da Igreja dominante e a quem, no contexto atual, poderíamos chamar de protestantes.

Os godos não eram parentes dos germânicos e foram convertidos ao cristianismo
ariano pelo bispo Úfila no século IV. Gravura de autor anônimo (1900)
       
Após sangrentas lutas com os invasores hunos, as tribos góticas recuaram e buscaram refúgio no território do Império Romano do Oriente, acampando na margem norte do Rio Danúbio na primavera de 376 e suplicando ao imperador Valente que os acolhesse como súditos, protegendo-os contra os terríveis conquistadores pagãos. Sempre afirmando que queriam se tornar romanos, os tervíngios (depois chamados "visigodos") foram admitidos no território imperial após árduas negociações e atravessaram o largo Rio Danúbio em centenas de barcos no verão do mesmo ano. Foi a maior migração em massa da História e não se sabe o número exato de imigrantes. Alguns autores, como o grande historiador inglês Edward Gibbon, o calculam em cerca de um milhão, pois eram dezenas de milhares de famílias com todos os seus pertences em numerosíssimas carroças. Porém o mais provável é que fossem cerca de trezentos mil na primeira leva, incluindo velhos, mulheres e crianças, número que aumentou bastante nos meses seguintes devido à chegada de novas levas menores, pois a fronteira do Danúbio havia ficado quase que totalmente aberta. Isto permitiu também a entrada dos greutungos (depois chamados "ostrogodos"), fazendo com que o número original de refugiados mais que duplicasse.

Em 376 DC os povos góticos saíram da Ucrânia fugindo dos hunos e chegaram ao rio Danúbio. Após obterem
asilo no Império Romano do Oriente, sua travessia em centenas de barcos foi dramática

Os godos eram um povo próspero, e muitos dos seus nobres traziam tesouros, vestiam-se com esmero e usavam joias valiosas. Isto despertou a cobiça das infames autoridades romanas locais, e o que sucedeu depois é um dos piores casos de incompetência, ladroeira e baixeza de que se tem notícia, pois ao invés de tratarem os godos como súditos ou aliados, os trataram como escravos, encerrando-os em campos de refugiados onde eram vilmente alimentados com carne de cachorro porque as vultosas verbas e os grandes volumes de comida vindos de Constantinopla eram desviados pelos corruptos administradores provinciais. Estes chegaram mesmo à suprema ignominia de negociarem com famílias pobres famintas a venda de seus jovens a traficantes de escravos, e nem mesmo filhos e filhas adolescentes de nobres godos em situação de necessidade escaparam à infâmia da escravidão e da prostituição forçada!

Os godos vinham da Ucrânia e Romênia, chegando ao Império como exilados políticos fugindo dos hunos,
mas foram tratados pelos romanos como escravos, gerando intensa revolta no povo e na nobreza

O descalabro administrativo e a imundície moral dos romanos orientais causaram nos infelizes imigrantes a mais terrível indignação e a revolta estourou, conflagrando o território do que é hoje a Bulgária e o sul da Romênia. Após duas médias batalhas inconclusivas, travadas em Marcianópolis e Salice, escaramuças isoladas continuaram a devastar a Trácia, até que as diversas facções godas organizaram-se em um grande exército sob o comando do líder tervíngio (visigodo) Fritigerno. Só então o imperador Valente, sempre ocupado pelas querelas com o Império Persa, acordou para o problema e resolveu liquidá-lo de vez.

Embora bravo e honesto, Valente era mau general e péssimo estadista, guiando-se mais por seus corruptos ministros do que por corretas razões de Estado. Por isso, ao invés de apurar as causas da baderna e corrigi-las, agiu com a afoiteza dos arrogantes: reuniu o seu grande exército e em julho de 378 marchou para Adrianópolis, vizinha à base dos godos, mas não sem antes pedir o auxílio do seu sobrinho Graciano, imperador do Ocidente e teoricamente seu subordinado. Ao chegar à cidade, as sórdidas autoridades locais pintaram um quadro róseo da situação, dizendo-lhe que o exército godo não passava de um bando de saqueadores e maltrapilhos famintos, que fugiriam assim que vissem no horizonte o temível exército imperial.

Apesar de honesto e de boa fé, Valente era vaidoso, arrogante e incompetente. Era também péssimo general.

Ansioso por obter uma vitória fácil somente sua contra “perigosos invasores bárbaros”, capaz de imortalizá-lo como grande general, Valente decidiu não esperar por Graciano e partir para o combate sem ter de com ele dividir as “glórias da vitória”. Devido à grande superioridade dos romanos orientais, a vitória de Valente era esperada por todos, inclusive pelo líder rebelde Fritigerno que, almejando a todo custo evitar a ruína da guerra, enviou um padre e alguns humildes cidadãos a Valente implorando paz sob o argumento verídico de que os godos eram apenas pobres exilados, expulsos de suas terras por ferozes hunos que logo fariam implacável guerra ao Império; sem terem para onde ir, tudo que desejavam eram terras na Trácia, não como soberanos, mas como bons agricultores que saberiam obter ótimas colheitas e trariam grandes benefícios ao Império e ao povo. Implorava, pois, que lhes concedesse as terras e firmassem um tratado de paz. Em troca, os godos jurariam fidelidade ao imperador e lhe dariam irrestrita e leal colaboração.

Graciano era sobrinho de Valente e imperador romano do Ocidente. Chamado por seu tio para
ajudá-lo talvez evitasse o desastre se tivesse chegado a tempo, pois era capaz e ponderado

Mas Valente não deu atenção à sensata proposta, pois queria travar uma batalha que tinha certeza de vencer. Dessa forma, deixando seus servidores civis e o seu tesouro protegidos dentro das muralhas de Adrianópolis, marchou ao amanhecer de 9 de agosto de 378 com o seu garboso exército para a planície onde Fritigerno e os seus guerreiros acampavam. Não sabemos quantos soldados tinha cada exército, mas calcula-se que entre cinquenta e sessenta mil homens de cada lado se engalfinharam naquele dia fatídico.

No final da manhã, os romanos avistaram o inimigo. Eles tinham formado uma linha defronte ao seu círculo de carroças e repousavam a sombra de toldos para terem a melhor condição possível de combate. Valente também começou a dispor suas tropas em linha, com as unidades de cavalaria em cada lado e a infantaria no centro, mas nem ele nem ninguém estava preparado para o que viria a seguir. O lado esquerdo do exército romano ainda estava em formação de marcha e os greutungos de Alateo e Safraco, aliados dos tervíngios e que com eles formavam a etnia gótica, ainda não tinham chegado.

Fritigerno então procurou ganhar tempo, enviando emissários a Valente suplicando paz, enquanto os imperiais ficavam postados sob o sol abrasador e sofriam com a fumaça das fogueiras acesas pelos tervíngios para enervá-los. Vendo as más condições das suas cansadas tropas, Valente aceitou a proposta de negociação porque, mesmo de longe, vira que o exército godo não era nenhum “bando de maltrapilhos”. Por isso talvez tenha decidido também esperar por Graciano, com quem não quisera antes partilhar as glórias da “vitória certa”. Assim, mandou uma luzidia delegação negociar com Fritigerno e a prontidão do seu exército, extenuado pela longa marcha da manhã, relaxou ainda mais.

Ataque prematuro dos romanos desencadeou a batalha e os exércitos inimigos engalfinharam-se
no sufocante calor da tarde sem ainda estarem preparados

Porém a luta começou por acaso, antes que os dois lados estivessem realmente prontos para o combate. Duas unidades das scholae palatinae de elite, os scutarii do general Cássio e os sagitarii do general Bacúrio, posicionadas ao lado direito do imperador, avançaram antes do tempo e engajaram o inimigo. Sua precipitação rompeu a linha de batalha imperial, que ficou ainda mais caótica pela súbita chegada dos greutungos de Alateo e Safraco, primos e aliados dos tervíngios. Com os greutungos vinha também um batalhão de alanos que haviam rompido com os hunos e se juntado aos ex-inimigos.

O que se seguiu foi um dos piores desastres militares de todos os tempos, pintado pelos historiadores com pinceladas terríveis. Os batalhões romanos da esquerda ultrapassaram a linha inimiga, ficando isolados, e foram aniquilados. Com o lado esquerdo desprotegido, a linha da infantaria romana desabou sobre si mesma, diminuindo a capacidade de luta dos soldados, muitos tombando por ferimentos feitos pelos próprios camaradas. No fim da tarde, todas as linhas romanas se romperam e a fuga começou. A guarda imperial e as scholae palatinae foram esmagadas, forçando Valente a juntar-se aos mattiari, disciplinado batalhão do exército regular e um dos poucos a se manter firme, lutando organizado até o amargo fim. As tropas auxiliares, que ficavam na reserva, foram convocadas, mas elas já tinham fugido para o mais longe possível do cenário da luta.

Batalha de Adrianópolis em 9 de agosto de 378 DC. Gravura "Fury of the Goths" de Paul Ivanovitz (séc. XIX)

Vendo que era inútil tentar conter a debandada e que a única salvação possível era a fuga, os importantes generais Vítor, Richomer e Saturnino abandonaram o campo de batalha, onde o massacre continuou até o escurecer. Nada se sabia do destino de Valente. Alguns diziam que fora ferido por uma flecha e morrera entre os soldados comuns; outros diziam que fora levado e escondido em uma fazenda por leais auxiliares, mas enquanto agonizava os godos tinham cercado e incendiado a casa, matando todos que lá estavam e assim perdendo a gloriosa chance de capturar um imperador romano. Qualquer que seja a verdade, nunca se achou o cadáver de Valente e como sempre ocorre nesses casos muitas lendas surgiram.
          
Na batalha de Adrianópolis, além do imperador Valente, pereceram trinta e cinco generais e a imensa maioria dos bem treinados oficiais e soldados imperiais. Quase tudo que havia de melhor no poderoso Exército Romano do Oriente desapareceu como uma sombra e um vento gelado de terror percorreu o Império de ponta a ponta. Tanto sacerdotes pagãos como cristãos de todas as seitas previram o "fim do mundo" e jogaram a culpa uns nos outros, dizendo que o desastre era "a manifestação da cólera divina por pecados, blasfêmias e contumácia no erro" dos rivais. Porém, recriminações e funestos vaticínios aparte, de um modo ou de outro todos viram que dali em diante governo e povo romanos teriam de lidar com uma até então pouco valorizada “ameaça bárbara”. Por outro lado, os godos estavam apenas iniciando a longa marcha de várias décadas que os levaria a Roma e terminaria na Espanha.

A batalha de Adrianópolis foi o começo do fim do glorioso Império.



Notas:  1) o grande número de etnias que constituíam os chamados "povos bárbaros" não permitia aos romanos distingui-los com precisão uns dos outros e por isso confundiram as tribos góticas com tribos germânicas. Porém não há evidências histórico-antropológicas disso, pois embora falassem um idioma indo-europeu, não era um dos dialetos germânicos e tinha pouquíssimas semelhanças com eles. O mais provável é que os godos fossem uma coleção de tribos primitivas do oeste da Rússia atual que marcharam até a Ucrânia e norte da Romênia, onde misturaram-se com os remanescentes dos civilizados povos dácios, massacrados pelo imperador Trajano no século II DC. Isto lhes deu uma cultura bastante superior entre os "bárbaros" da época, permitindo-lhes serem os primeiros a adotarem o cristianismo e a escrita. Diferentemente dos outros, eles não queriam saquear e destruir o Império Romano, mas tornarem-se parte dele. Foi a extrema miopia e incompetência de Valente que fez os romanos verem nos godos um problema e não uma solução.

2) O principal obstáculo à integração dos godos no Império foi o fato de serem cristãos arianos e por isso hostilizados pelos fanáticos cristãos católicos, majoritários no império e em Constantinopla, que os considerava demônios herejes. O imperador valente era cristão ariano e teria reforçado muito sua posição se tivesse acolhido melhor os godos, mas mantinha discreta sua crença religiosa, com medo de ofender seus fanáticos súditos católicos, e por covardia política e miopia administrativa preferiu hostilizar aqueles que poderiam ter sido os seus mais fieis e valorosos aliados.

3) Mais tarde os tervíngios marcharam para o ocidente e ganharam o nome de visigodos (godos do oeste), enquanto os greutungos ficaram na Trácia, o que lhes valeu o nome de ostrogodos (godos do leste). No final do século 5º, eles também marcharam para o ocidente, sob o comando do seu grande rei Teodorico, e criaram poderoso reino no norte da Itália.  

4) Um dos maiores erros de Valente foi a falta de cálculo temporal. Deveria ter marchado na tarde do dia 8 e avistado o inimigo ao crepúsculo, por volta das 21 horas, quando impossível seria combater. Acamparia, descansaria e na alvorada todos estariam repousados para lutar no frescor do amanhecer. Ao invés disso os soldados marcharam toda a manhã pesadamente equipados e avistaram o inimigo com sol a pino. Sem nenhum descanso, foram colocados em formação de batalha e assim ficaram sob sol abrasador por várias longas horas, respirando a fumaça que o vento lhes trazia das fogueiras ateadas pelo adversário. Enquanto as negociações astutamente solicitadas por Fritigerno prosseguiam, os legionários se asfixiavam e assavam sob os vigilantes olhos dos descansados godos, que afiavam suas espadas sentados à sombra e se divertiam com os exaustos romanos estupidamente posicionados pelo incompetente imperador. Quando a luta finalmente irrompeu, entre 4 e 5 da tarde, o sol estava alto e o calor era enorme. Diante do intempestivo e desorganizado ataque, todo trabalho que os godos tiveram foi o de se levantarem e encararem o exausto e irritado inimigo. Nas horas seguintes, sua única tarefa foi executar uma das maiores e mais fáceis matanças da história. Calcula-se que morreram dez romanos para cada godo, sobretudo durante a debandada final: os cansados legionários mal podiam correr e eram logo alcançados por seus perseguidores que os degolavam como carneiros.

5) O grande número de generais romanos orientais mortos na batalha deve-se ao fato de que, após a divisão do Império entre Valentiniano I e o seu irmão Valente no ano de 362, cada um passou a ter o seu próprio exército. O do Oriente tinha em torno de oitenta mil homens agrupados em cerca de vinte e cinco legiões com aproximadamente três mil homens cada. As dezesseis melhores legiões estavam em Adrianópolis, e como cada uma era comandada por um general assistido por um ou dois generais auxiliares, mais os quatro mil soldados de elite das sete scholae palatinae lideradas por importantes generais do estado-maior do imperador, é lícito supor haver mais de quarenta generais a frente das tropas. Por isso não surpreende que tenham perecido trinta e cinco generais numa batalha onde todas as dezesseis legiões e as sete scholae palatinae foram dizimadas, os sobreviventes mal dando para constituir duas ou três novas legiões.

6) Diferentemente de outras grandes batalhas, a de Adrianópolis foi travada sem obediência a planos estratégicos previamente elaborados por qualquer dos adversários. A precipitação dos generais Cássio e Bacúrio antes de que os exaustos romanos sequer houvessem completado a sua formação de batalha, mostra não só indisciplina, mas também ausência de planos estratégicos definidos. Os godos, em posição defensiva, apenas aproveitaram-se da balbúrdia criada pela incompetência dos romanos para massacrá-los.

domingo, 26 de junho de 2011

Post nº 42

ROBIN  HOOD  -  O  ARQUEIRO  PLEBEU
CONTRA  O  NOBRE  CAVALEIRO

Robin Hood luta com o sórdido xerife de Nottingham no famoso filme de 1938 "As Aventuras de
Hobin Hood" estrelado pelo grande astro Errol Flyn


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A luta na Idade Média entre nobres e plebeus manifestou-se na imaginação popular através de estórias sobre homens injustiçados que viravam salteadores e roubavam dos opressores para distribuir aos oprimidos. No fundo era o conflito entre os senhores feudais exploradores e os seus camponeses explorados, o qual no campo militar assumia a forma de luta entre o pobre arqueiro plebeu e o rico cavaleiro aristocrata. A lenda de "Robin Hood" representa bem esse conflito, sobretudo pela conotação ideológica que o debate sobre a sua identidade tomou na literatura, procurando-se tirar dele a condição de homem do povo rebelado contra a aristocracia e dar-lhe a condição de "nobre" membro desta, imbuído de altos princípios cavalheirescos que o levavam a protestar contra os "desvios" do regime, castigando os "maus" aristocratas e solidarizando-se com os "bons".

O resultado disso é que caso fossem perguntados poucos diriam já terem ouvido falar de lord Robert Lockesley, conde de Hutington, mas se o nome fosse trocado para Robin Hood quase todos responderiam SIM. Mesmo quem pouco soubesse dele diria: “Era um sujeito que roubava dos ricos para dar aos pobres”! Creio que nenhum personagem literário é mais conhecido no mundo que ele, exceção talvez do Rei Arthur. Curiosamente, ambos são figuras de historicidade controversa, situando-se mais no campo da fantasia do que no campo da história, pois mesmo os que defendem a sua real existência nos dão retratos muito diferentes dos que nos são oferecidos hoje pela literatura, pela arte e pela mídia.
            
Vejamos como Robin Hood nos é mostrado nas estórias atuais, sobretudo do cinema e da TV. Com algumas variações, em sua essência elas fundem-se numa só: lord Robert, conde de Hutington, é falsamente acusado de traição pelo sórdido Xerife de Notingham, lacaio do príncipe regente João Sem Terra, que planeja usurpar o trono do seu irmão Ricardo Coração de Leão, ausente nas cruzadas. Ordenada a sua prisão, seus bens são confiscados e ele foge para a floresta de Sherwood, onde com outros proscritos cria um bando cuja liderança assume, não só por conta do seu status social como porque é generoso, simpático, astuto, bravo, bom espadachim e ótimo arqueiro! Para ter o povo ao seu lado, assalta os ricos e dá a maior parte dos roubos aos pobres, pois ele e seus homens não são movidos pela ganância ou desejo de subverter a ordem, mas pelo desejo de castigarem os poderosos desonestos e corrigirem suas flagrantes injustiças. Sua cabeça é posta a prêmio e sua fúria contra o xerife aumenta quando descobre que ele planeja seqüestrar e desposar à força sua amada lady Marion. Assim, dá-lhe tenaz combate até derrotá-lo após a volta das Cruzadas do rei Ricardo Coração de Leão, a quem fora fiel durante a tentativa de usurpação de João Sem Terra, protetor do vilão. Perdoado pelo rei, o Robin Hood "lord Robert" recupera seus bens, premia os amigos, casa com lady Marion e vivem felizes para sempre.

O casamento de Robin com Marion sob as bênçãos do rei Ricardo está na
maioria das versões do século XIX. Ilustração de Howard Pyle (1883)

Para demonstrar a falsidade desta versão basta atentar no fato histórico de que o rei Ricardo jamais pôs os pés na Inglaterra após a sua volta das Cruzadas, pois restabeleceu sua corte primeiro na Aquitânia e depois na Normandia, hoje regiões da França, mas na época domínios dos quais era duque reinante. Por intercessão da sua mãe Eleanor, a Inglaterra continuou nas mãos do antigo regente: o seu irmão caçula João sem Terra! Portanto, se examinarmos a estória de Robin Hood sob critério histórico ela terá que necessariamente ser bem diferente das versões que temos hoje. É isso o que ocorre quando nos debruçamos sobre as versões medievais. Estas aparecem primeiro em manuscritos de poemas e baladas redigidos no século XIV, mas os que temos podem não ter sido os únicos, pois na época não havia imprensa, poucos sabiam ler e predominava a tradição oral. Assim, é bem possível que muitos manuscritos tenham se perdido ao longo dos séculos e não tenham chegado até nós.

Fato é que nos anos 1400 já existiam festividades populares, denominadas May Day, onde peças contando as aventuras de Robin Hood eram representadas como dramas e comédias, pois também havia versões que o apresentavam como sujeito esperto e ardiloso, sempre enganando os ricos e poderosos, como em nossas lendas também o faz o popular Pedro Malasartes. A mais antiga representação teatral das suas façanhas de que se tem notícia foi em Exeter no ano de 1426, bem ao sul do berço do herói no norte do país, mostrando que já era popular em toda a Inglaterra da época. Porém nas peças e baladas ele era um plebeu de classe média que fora espoliado pelos nobres e pelo fisco, sendo reduzido à pobreza e tornando-se bandido por força das injustiças e voracidade dos dominadores. Seu bom caráter consistia em jamais roubar o pouco dos pobres, mas roubar sempre o muito dos ricos para dividi-lo com os miseráveis, saqueados sem piedade pelos poderosos. A sua flagrante rebeldia contra os elementos dos extratos superiores da sociedade faz com que as produções literárias e artísticas da Idade Média nunca falem da sua ligação com reis e barões, pois isso seria inteiramente contraditório com a sua atuação, e mesmo a sua ligação com Ricardo Coração de Leão, totalmente fictícia dada a impossibilidade histórica de ter ocorrido, só foi aventada na literatura de tempos recentes e deve-se mais à semelhança entre o caráter boêmio e aventureiro de Ricardo e o imaginário caráter de Robin do que à "alianças políticas" fantasiosas.

Nas lendas Robin está sempre em luta com os nobres opressores e os seus
capangas. Ilustração de Howard Pyle (1883) 

No final dos anos 1500 e início dos 1600 as estórias sobre Robin Hood eram correntes no dia a dia das pessoas e Shakespeare as menciona em sua peça Os Dois Cavalheiros de Verona. Todavia nessa mesma época ocorre fato que vem alterar completamente a origem popular de Robin Hood, pois o também famoso teatrólogo Anthony Munday faz dele personagem de duas peças e o apresenta como lord Robert, earl of Hutington! A partir daí ele deixa de ser “plebeu” e passa a ser “nobre”. A mudança é radical porque, como visto, até então ele era descrito como um yeoman (homem de classe média) que se alia aos camponeses e a outros homens da sua classe para combater a nobreza e desafiar as leis opressoras, roubando e matando os ricos exploradores e os seus capangas, coisa que o faz ídolo das massas. A mudança de status do herói, portanto, tem a clara finalidade política de torná-lo membro da elite e fiel vassalo de um “monarca legítimo”, Ricardo Coração de Leão, e rebelde contrário a um “usurpador”, João Sem Terra. A nova versão tirava ao povo um herói plebeu, que lhe dava exemplos de rebeldia contra os donos do poder, expropriava os ricos e liquidava seus prepostos, e se o substituia por um herói nobre, intolerante com usurpadores da autoridade real, ladrão apenas dos ricos desonestos, caridoso com os pobres e romântico com as damas. Assim nascia lord Robert Lockesley, conde de Hutington por justiça do rei e criminoso Robin Hood por injustiça do usurpador!

Outro elemento de natureza sócio-política que atesta a falsidade da versão moderna é a conjuntura histórica da Inglaterra do século XII. Em uma época onde o tempo passava devagar, a Conquista Normanda era recente e a animosidade entre os nativos anglo-saxãos e os ocupantes franceses, minoria fortemente armada e opressora que desapossara a maioria nativa dos seus títulos, bens e posições, era enorme. A solidariedade da minoria governante para manter o seu domínio em um meio hostil era fortíssima, levando-a a proteger os seus membros e a conservar seus hábitos aristocráticos, somente falando e escrevendo em francês e reduzindo o Inglês a condição de “idioma da gentalha”.

O "Robin dos Bosques", bandoleiro plebeu da Idade Média, é muito mais conforme à realidade
que o "Robin conde" das versões modernas. Ilustração de Howard Pyle (1883)

Em tal ambiente é improvável que um “conde Robert”, certamente de origem francesa, tivesse sido perseguido por seus próprios pares. Ademais, os poemas, peças e baladas foram produzidos no “idioma da gentalha” e é impossível que esta o tivesse feito para exaltar um nobre de origem francesa, membro da casta opressora. Somente esta circunstância é suficiente para desacreditar a versão criada a partir do século XVII. Há que se lembrar também roupas e armas. Os nobres as usavam de linho ou lã especial e sua arma era a espada, artefato caríssimo e destinado somente ao combate. Por outro lado, as pessoas comuns usavam roupas de couro ou lã grosseira e sua arma era a faca, destinada basicamente ao trabalho. Os que viviam nos bosques (greenman) usavam também o arco, pois geralmente eram caçadores, e em todas as gravuras medievais Robin Hood é pintado em roupas simples de caçador, portando faca e arco, como típico dos plebeus. Ele jamais aparece em roupas de cavalheiro portando espada, arma privativa dos nobres e de posse proibida aos demais. A imagem fixada nas gravuras medievais é tão forte que mesmo hoje é assim que o herói nos é apresentado. Como, pois, se sustentar a versão de Robin Hood ser um lord e não um commoner?

Na versão moderna Robin Hood é apresentado como um nobre destituído dos seus direitos pelo Rei usurpador.
Rebela-se e passa a roubar dos cúmplices do tirano para dar aos pobres e lutar pelo Rei legítimo.

Porém há que se reconhecer que a mudança de status do herói 400 anos depois, quando de há muito desaparecera a antiga animosidade entre franceses e anglo-saxãos, amalgamados na moderna nação inglesa, não diminuiu a popularidade do herói e até a aumentou, pois o público letrado das classes altas passou a consumir avidamente o que se publicava sobre ele e o seu alegre bando de foras da lei (merrymen), criando um rentável mercado para escritores imaginosos. Na primeira metade do século XIX Robin Hood ficou mundialmente conhecido através do famoso romance histórico Ivanhoé de Sir Walter Scott, sucesso não só na Inglaterra como na Europa e nas Américas, pois foi publicado em todas as línguas cultas da época. Na esteira de Ivanhoé, livros e mais livros surgiram sobre o “conde” príncipe dos ladrões até que na segunda metade do mesmo século foi publicada pelo americano Howard Pyle uma versão sob o título de As Alegres Aventuras de Robin Hood, originalmente destinada a crianças e adolescentes. Porém o livro se tornou sucesso entre públicos de todas as idades, não só por ser divertido e bem escrito, mas por ser também belamente ilustrado, tornando-se a versão definitiva do herói e a base de todos os modernos enredos do teatro, cinema e televisão sobre ele. A quantidade de filmes é enorme, pois até uma ótima versão em desenho animado foi feita pelos estúdios Disney, mas na minha opinião o melhor exemplar até hoje produzido foi o Aventuras de Robin Hood, estrelado pelo famoso ator Errol Flyn nos anos 30 do século passado.

Os estudios Disney fizeram um ótimo filme em desenho animado sobre Robin Hood
         
Todavia, diante da falta de menções à sua nobreza antes dos anos 1600, devemos perguntar se existe alguma base para a atual versão de "Robim nobre" e a resposta é que existe, embora bastante frágil. Nos antigos papéis de um nobre prelado, Deão da Catedral de York no século XIII,  foi encontrada uma anotação datada de 24 de dezembro de 1247 onde é mencionada a morte de Robert Earl of Huntigu aos 87 anos de idade. Ela termina com versos em Inglês Medieval, ao invés de Latim ou Francês como era próprio dos papéis oficiais na época, e dizem o seguinte: Hear undernead dis laitl stean / Lais Robert Earl of Huntingu / Near arcir der as hie sa geud / An pipl kauld im Robin Heud / Sic utlaws as hi an is men / Vil England nivr si agen. O fato de ser em inglês e em versos tira à nota o caráter de documento oficial e indica ter sido ela escrita pelo Deão como lazer literário e não como parte do seu trabalho, parecendo ser o trecho de uma balada. A coisa se torna intrigante ao se verificar que os mesmos versos servem de epitáfio a um antigo túmulo no cemitério do priorado de Kirlees Hall, na região de York.

Aqui Robin é um "greenman" com arco e punhal, no entanto Marion lhe dá atenção,
como se o conhecesse por ele ter sido nobre. Ilustração de Howard Pyle (1883)

Teria o Deão escrito o epitáfio ou simplesmente o copiado? Isto tiraria qualquer dúvida sobre a existência do conde bandido Robin Hood no final do século XII e início do século XIII, época de Ricardo Coração de Leão e de João sem Terra, se não fosse por duas coisas: 1) Não existe nos registros da nobreza britânica dos séculos XII e XIII nenhum Earl of Huntingun e os registros de nascimentos e óbitos das paróquias da região, assim como das cortes de justiça e do fisco, sobretudo de York e Notingham, não mencionam nenhum portador do referido título; 2) A lápide com o epitáfio é de autenticidade duvidosa e exames científicos fazem suspeitar serem os seus entalhes pelo menos dois séculos mais recentes, situando-os nos anos 1400, quando começaram as representações em festivais do mês de maio por toda a Inglaterra que tornaram nacionalmente famoso o bandido cujas façanhas eram cantadas em prosa e verso pelos nortistas há mais de 200 anos. Cidades e vilas começaram a disputar a honra de terem sido o seu berço, ou local de final repouso, sendo possível que uma farsa tenha sido montada com base em velha balada talvez composta pelo próprio aristocrático clérigo, Dean of York.

Porém há um detalhe de natureza semântica, com repercussão na nobiliarquia inglesa, que pode exonerar o nobre prelado da acusação de tentativa de fraude: o título de Earl! Todos os títulos de nobreza ingleses são de origem francesa, prince, duke, marquis, viscount e baron, com exceção de count. Este na Inglaterra é designado pelo título anglo-saxônico de EARL, mas há evidências de que isto só aconteceu a partir do final do século XIII, quando o rei Eduardo I ordenou que todos os documentos oficiais passassem a ser redigidos em inglês ao invés de latim ou francês.

Assim, é possível que o termo usado antes para o título fosse a palavra count, de origem francesa (cont) como as demais que designam títulos nobiliárquicos ingleses. O fato de ter sido substituída pela palavra anglo-saxônica earl certamente deve-se ao fato de que esta designasse o único título nativo existente antes da invasão francesa no século XI cuja memória o povo guardara, possivelmente significando "nobre senhor da guerra", mas tudo indica que com o aviltamento da nobreza local pelos invasores a palavra passou a designar simplesmente "senhor de bando armado". Como não havia palavras anglo-saxônicas substitutas para os demais títulos de que o povo se lembrasse, estes guardaram a sua forma afrancesada, mas earl foi resgatada do seu antigo significado e passou a equivaler ao count de origem francesa. A conclusão lógica, portanto, seria a de que na primeira metade do século XIII, quando o Deão de York escreveu ou anotou o trecho da balada, a metamorfose ainda não ocorrera e ele usou o termo Earl of Huntingum no sentido de "chefe bandoleiro de Huntingum"!

As populações medievais continuaram a ver em Robin Hood um "greenman"
em luta contra os ricos opressores. Ilustração de Howard Pyle (1883)

A "nobilitação" de Robin, portanto, seria fruto da ignorância sobre a evolução histórica do significado da palavra "earl" pelos escritores do século XVII e não de uma deliberada intenção de modificar a estória do herói, nem deles nem do Deão de York, o qual teria usado a palavra honestamente com o sentido que ela tinha na época, mas o fato do clérigo ter se dado ao trabalho de anotar o óbito do famoso "chefe bandoleiro" nos leva a supor que ele e seu bando talvez tivessem participado ativamente da luta dos barões contra o nefasto rei João Sem Terra anos antes e por isso tenha obtido cabal anistia após a vitória, o que lhe teria permitido viver tranquilamente seus últimos anos cercado de temor e respeito por suas celebradas façanhas de antigo fora-da-lei.

Seja de uma forma, seja de outra, fato concreto é que nunca passou pela cabeça das populações medievais da Inglaterra darem a Robim status de "nobre" e as obras literárias populares continuaram a ser representadas e cantadas sem nenhuma menção a qualquer tipo de nobreza do personagem. Antes muito pelo contrário. Todavia, passados mais 200 anos, o significado da palavra "earl" mudou novamente e surgiram as peças de Anthony Munday, já em plena era da imprensa e da publicação em massa. O resultado é que a versão “nobre” foi adotada e prevalece até os dias de hoje.

Tudo bem examinado, chega-se a conclusão de que a versão do Robin Hood “conde” nada mais foi do que um equívoco semântico, o qual possibilitou uma bem sucedida manobra política visando “domesticar” o turbulento herói de um povo sempre disposto a rebeliões democráticas, como atestado pela revolucionária adoção da Magna Carta, extorquida ao rei João Sem Terra pelos barões rebeldes no início do século XIII, e as revoluções do século XVII, quando houve a “domesticação” do herói e a deposição de dois reis tirânicos, um deles executado e o outro exilado pelo povo em armas.