segunda-feira, 26 de setembro de 2011


Post nº 46

TEODÓSIO - O FIM  DA  IDADE  CLÁSSICA  E  O  INÍCIO  DA  IDADE  MÉDIA

Ruínas de Olímpia na Grécia onde realizavam-se as Olimpíadas. O devoto imperador Teodósio
as proibiu no ano de 393 porque os cristãos as julgavam um indecente festival pagão



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A história do mundo ocidental geralmente é dividida em quatro Idades para fins didáticos: a Idade Antiga, começando por volta do século XXX AC com a hegemonia da civilização egípcia no Oriente Próximo e terminando no século VI AC com a hegemonia da civilização grega na Europa; a Idade Clássica, que vai do apogeu da civilização grega no século V AC até a queda do Império Romano do Ocidente no século V DC frente aos bárbaros, seguindo-se a Idade Média, que acaba no século XV DC com a queda do Império Romano do Oriente frente aos turcos. Desde então vivemos na quarta Idade: a Moderna. Quanto às duas últimas, chega-se mesmo a fixar datas de morte e nascimento: 476 para o fim da Idade Clássica e início da Idade Média, e 1453 para o fim desta e início da Idade Moderna.

Todavia discordo, pois a passagem de uma Idade à outra não depende da ocorrência de um fato, mas de uma profunda mudança cultural que pode durar décadas e até mesmo séculos. Assim, a passagem para a Idade Clássica é sobretudo a substituição do pensamento mágico antigo pelo pensamento lógico clássico na esfera do saber, e a passagem para a Idade Média nada mais é que o advento do predomínio da fé espiritual sobre a razão material, ou seja: a vitória do teológico sobre o lógico. Já a Idade Moderna é fruto do reverso e da volta aos valores clássicos através da Renascença e dos grandes feitos políticos, geográficos e astronômicos dos séculos XV e XVI, causando a Revolução Científica que desemboca no iluminismo e no liberalismo.

Mudanças culturais profundas aparecem no modo de ver coisas triviais como o "banho". Para os clássicos é vida civilizada, para os medievais é vida pecaminosa. Quadro de Sir Lawrence Alma-Tadema (séc. XIX) 

Isto não significa rupturas súbitas, mas lentos processos durante os quais um modo de pensar vai aos poucos substituindo o outro. Mesmo quando a substituição se completa muitos elementos do pensar anterior continuam presentes pela adaptação e integração ao pensar posterior, fazendo com que tenhamos sempre conosco o essencial das Idades precedentes. Assim, uma Idade é sempre a continuação das que a precedem, para o melhor ou para o pior, e não um banho lustral que retira o passado e deixa só o presente e a perspectiva do futuro.
 

Os circos representam a pujança esportiva, os banhos a social e os teatros a  cultural da Idade Clásica.
Eles desaparecerão na Idade Média e só voltarão gradualmente na Idade Moderna 
       
No caso do fim da Idade Clássica há uma lenta corrosão dos valores antropocêntricos que a presidiam, sobretudo em seus aspectos éticos e estéticos, começada ainda no reinado de Marco Aurélio no final do século II, mas isto só fica evidente durante a anarquia político-militar do século III, quando as pessoas fustigadas pelas guerras e pela miséria econômica começam a ansiar pelas felicidades celestiais em lugar das desgraças terrenas, encontrando no cristianismo o amparo às suas aflições e o desaguadouro natural das suas insatisfações. As crises política, econômica e moral levam o imperador Diocleciano a instaurar um regime quase totalitário de controle da economia e da sociedade, vendo erradamente no cristianismo a causa e não a conseqüência do descalabro institucionalizado.

Mas a feroz repressão antes fortalece que enfraquece a nova ética, pois a sua substância e forma espirituais encontram solo fértil na religiosidade natural das pessoas simples, ao contrário das éticas eruditas dirigidas somente às escassas camadas intelectuais da população. Transformado em ética de massas o cristianismo torna-se religião oficial no reinado de Constantino, mas não há ainda nada que indique o fim da Idade Clássica, pois a liberdade de pensamento religioso, filosófico, literário, artístico e científico não é cerceada. O costume e o gosto individuais continuam dentro da esfera dos direitos privados e no próprio cristianismo várias correntes de pensamento se desenvolvem com vigor.

A requintada vida social da Idade Clássica desaparecerá na Idade
Média. Quadro de Sir Lawrence Alma-Tadema (séc. XIX)

Nem mesmo quando o imperador Juliano tenta trazer de volta os antigos cultos há repressão aos cristãos, apenas se lhes proibindo que invoquem os filósofos pagãos em apoio da sua doutrina. Os sucessores de Juliano são cristãos da seita Ariana (seguidores da doutrina cristã unitária do bispo Ário) e isto faz com que adotem a mesma política de tolerância dos seus antecessores, bem de acordo com a tradição inclusiva dos romanos.

Teodósio era bom político e general, mas seu fanatismo religioso o fez perseguir os pagãos e alijar
os cristãos arianos. Os cristãos ortodoxos o chamaram "Teodósio o Grande"
         
De notar que a passada perseguição aos cristãos não tinha motivos religiosos, mas políticos, pois sob as leis romanas podia-se adorar qualquer deus desde que não ofendesse aos demais deuses, entre os quais estava o próprio imperador. Porém os cristãos mais devotos não obedeciam à norma, não só desrespeitando como amaldiçoando os deuses alheios por considera-los demoníacos, às vezes quebrando estátuas e danificando templos. As punições criminais que sofriam os faziam revoltar-se contra as leis e autoridades, dando-lhes fama de subversivos turbulentos cuja fidelidade ao imperador era mais que duvidosa. Por isso eram considerados “inimigos” latentes do Estado e de tempos em tempos eram perseguidos, sobretudo quando havia necessidade de um bode expiatório para alguma eventual catástrofe, mas quando a religião de um não interferia com a religião do outro o culto era tolerado, e até mesmo o culto judaico do Deus Único Invisível tinha um templo em Roma.  

Porém esta liberdade religiosa sofre uma radical mudança em 378 após a batalha de Adrianópolis. Embora o falecido imperador Valente fosse cristão ariano a sua derrota pelos godos arianos foi largamente interpretada pelos cristãos ortodoxos como castigo divino tanto ao imperador “herético” como ao Império “herético” pelas mãos de “bárbaros heréticos”, de sorte que o embate entre as duas seitas deixa de ser assunto religioso para se tornar questão político-militar. Para piorar as coisas, Teodósio, sucessor de Valente, é ortodoxo devoto e endossa as razões dos seus conselheiros espirituais, não só privando os cristãos arianos de todo e qualquer favor ou privilégio face às leis e autoridades imperiais como decretando o fechamento dos templos pagãos e criminalizando os seus cultos. Assim, os templos pagãos que não se tornam igrejas ortodoxas são condenados ao abandono e as igrejas cristães arianas são privadas de personalidade jurídica, impedindo-as legalmente de transacionarem ou de receberem legados e doações por via oficial.

A ruína do Paternon começa quando cristãos ortodoxos destroem a estátua da deusa Athena esculpida 
por Fídias e entronizada no templo há oitocentos anos. Depois o transformam em igreja ortodoxa
       
Após destruir a liberdade religiosa, pilar do mundo clássico, Teodósio adota extremado zelo ortodoxo e manda fechar as Escolas de Filosofia, especialmente as de Atenas, por serem focos de “doutrinação pagã”, encerrando uma tradição cultural que se confundia com a própria Idade Clássica. Também proíbe os jogos circenses e os espetáculos teatrais por serem “ímpios”, condenando os majestosos circos e anfiteatros à destruição pela ação do tempo. Por julgar serem os banhos públicos “antros de devassidão” ele os manda fechar e luxuosas termas, como as construídas em Roma pelo imperador Caracala no início do século III, têm a mesma sorte de majestosos circos como o Coliseu.

Reconstituição gráfica das "Termas de Caracala", o maior e mais luxuoso banheiro público
de todos os tempos, fechado pelo imperador Teodósio no fim da Idade Clássica

Relegados ao abandono durante 1.600 anos, os luxuosos banhos públicos do  imperador
 Caracala ainda impressionam pelas suas majestosas ruínas 
         
Teodósio conclui a sua obra de destruição do mundo clássico proibindo as Olimpíadas, festival religioso-esportivo que se realizava quadrienalmente no santuário de Olímpia desde o século VIII AC para honrar os deuses pagãos que lendariamente habitavam no cume do Monte Olimpo. Ele nem sequer cuida de uma operação sincrética para salvar uma bela tradição milenar, fazendo dos jogos festival em honra de santos cristãos ao invés de deuses pagãos: simplesmente os proíbe!

O monumental Coliseu era o maior e mais luxuoso circo da antiguidade. Todo em mármore, em cada janela
havia a estátua finamente esculpida de um deus pagão. Tudo isso desapareceu na Idade Média
       
No início do seu reinado ainda existiam quatro das "Sete Maravilhas do Mundo", das quais duas eram monumentos pagãos, o Templo de Diana em Éfeso e a Estátua de Zeus em Olímpia esculpida por Fídias no século V AC, mas suas proibições fazem o Templo de Diana virar depósito e a bela estátua  da deusa virar entulho ao ser destruída a marteladas. A mesma sorte terá a magnífica estátua do Zeus Olímpico de autoria de Fídias, um dos maiores arquitetos e escultores da História, de modo que Teodósio ao morrer terá destruído em pouco mais de uma década duas das mais belas criações artísticas da humanidade.

O Pantheon em Roma e o Parthenon em Atenas são poupados porque transformam-se em igrejas ortodoxas, mas as artísticas estátuas de deuses que os adornavam são destruídas. Assim, a majestosa estátua da deusa Athena Parthenos, também esculpida por Fídias no século V AC e desde então entronizada no Parthenon, é despedaçada e jogada no entulho. Todavia ressalte-se que muitos dos fechamentos e destruições não foram diretamente ordenados por Teodósio, mas por super zelosas autoridades locais, ansiosas por agradar e que  julgavam estarem apenas agindo de acordo com a sua política em geral, ou sucessores como o seu medíocre filho Arcádio, imperador romano do Oriente, que em 399 mandou demolir nos seus territórios todos os templos pagãos que não tivessem condições de servir como igrejas cristãs. Diante de tamanhas provas de virtude e devoção, a Igreja Ortodoxa, que ele fizera Igreja Oficial do Império, passa a chamá-lo "Teodósio o Grande" e ele morre ainda jovem em 395 após praticar um último ato de funestas conseqüências para o Império: ao invés de nomear sucessor o seu leal ministro e eficiente general Stilicon, nomeia os seus dois filhos adolescentes Arcádio e Honório, célebres pela petulante incompetência o primeiro e pela maldosa imbecilidade o segundo.

Embora não tenha causado a morte da Idade Clássica e o nascimento da Idade Média,
o devoto imperadorTeodósio foi coveiro de uma e parteiro da outra 

Não há notícia histórica de quem mandou destruir o mausoléu de Alexandre Magno, durante setecentos anos reverenciado em Alexandria pelos maiores personagens do mundo clássico, mas se não foi o zeloso Teodósio foi algum fanático ortodoxo ansioso por agradá-lo e fiel seguidor de sua orientação demolidora de tudo que lembrasse o paganismo, possivelmente o seu filho Arcádio a cuja jurisdição pertencia a província do Egito. Como dito acima, em 399 ele expediu decreto mandando transformar todos os templos pagãos sob sua jurisdição em igrejas cristãs e demolir aqueles em que isso não pudesse ser feito, sendo bem possível que pelo seu valor simbólico o mausoléu de Alexandre estivesse no segundo caso, pois era um misto de túmulo e templo pagão com sacerdotes que por ele zelavam e celebravam cerimônias em honra do Grande Rei elevado a deus. Era conhecidíssimo na antiguidade, mas referências ao mesmo cessam a partir de 392, data de uma carta do filósofo grego Libânio contendo a última referência conhecida ao túmulo do Conquistador. Depois disso faz-se impenetrável silêncio, só agora quebrado por arqueólogos que revolvem os sítios históricos de Alexandria em busca de pistas que expliquem o mistério. Portanto, se não foi Teodósio o autor direto da sua destruição foi ele o autor indireto de mais esta façanha contra a civilização greco-romana que lhe competia preservar.
 
Efígie de Alexandre em moeda do século IV AC. A destruição do seu Mausoléu em Alexandria, onde
 fora venerado durante 700 anos, deve-se à política religiosa fanática de Teodósio
       
Teodósio salvara Roma dos godos em 378, mas praticamente lhes a entrega em 395, pavimentando o caminho para que eles a conquistem apenas quinze anos depois. A catástrofe que o fim da Idade Clássica representa para a Civilização Ocidental pode ser avaliada no seguinte dado: no ano 400 as grandes e médias cidades europeias, todas elas integradas no Império Romano, possuiam água encanada, esgotos e coleta de lixo; mil anos depois nenhuma os possuía!

Mesmo no ano de 1700, mil e trezentos anos depois, Luís XIV, "O Rei Sol", constrói o magnífico palácio de Versalhes sem água encanada, sem banheiros, sem pias e sem sanitários. Banhos só eram tomados de tempos em tempos em largas tinas levadas aos reais aposentos quando a ocasião se oferecia, e necessidades fisiológicas eram satisfeitas em caixas especiais, depois tampadas e levadas pelos luxuosos corredores, espalhando o seu odor característico por todo o palácio. Não é de estranhar, portanto, que a requintada arte da perfumaria tenha atingido entre os franceses níveis altíssimos e dela tenha se tornada freguesa assídua toda a classe alta europeia. Isto nos faz afirmar com absoluta segurança que a nossa "Renascença", no que se refere aos hábitos de higiene comuns à Idade Clássica, somente começou nos últimos duzentos anos!

A higiene some na Idade Média e diz-se que rainha famosa só se banhou
duas vezes: ao nascer e ao morrer! Tela de Alma-Tadema (séc. XIX)

Bem examinadas as coisas, verifica-se que a Idade Clássica morre e a Idade Média nasce no final do século IV durante o reinado de Teodósio, e não no final do século V com a queda do Império Romano do Ocidente. Caso se deseje fixar uma data para a certidão de óbito de uma e a de nascimento da outra, creio que a data perfeita é 393, quando ele proibiu as Olimpíadas, pois nada simbolizou tanto a grandeza e a beleza do ser humano quanto elas e portanto nada melhor que a sua morte para representar o fim da cultura antropocêntrica da Idade Clássica e o início da cultura teocêntrica da Idade Média.

Após a morte de Teodósio o poder imperial dividiu-se e enfraqueceu, pois os dois novos imperadores eram adolescentes mimados e incompetentes, sem qualquer noção de governo. O Império Romano do Ocidente ficou sob a regência do ótimo general Stilicon, mas ele foi desde logo hostilizado pela elite romana, tanto do Oriente como do Ocidente, por ser filho de modesto oficial mercenário vândalo, mesmo sendo casado com uma sobrinha do falecido imperador. Ele ficou manietado no norte da Itália por grandes invasões bárbaras e pouca atenção deu aos assuntos internos, permitindo às autoridades locais reabrirem muitos dos teatros, circos e banhos fechados por Teodósio, embora sem a extensão e o esplendor de antes. O Império decaiu ainda mais após o assassinato de Stilicon em 408 e o cenário continuou igual por mais de um século, sobrevivendo à dissolução do Império do Ocidente em 476. O Coliseu e os banhos de Caracala só foram definitivamente fechados na primeira metade do século VI após os ostrogodos, senhores da Itália, serem derrotados pelas tropas de Justiniano, devoto ortodoxo que era Imperador Romano do Oriente com capital em Constantinopla.



sábado, 27 de agosto de 2011


Post nº 45

ALARICO  REI  DOS  GODOS
CONQUISTA  ROMA

Vindos da Ucrânia e do norte da Romênia, os godos invadem e ocupam Roma em 
agosto de 410 DC. Tela de Ulpiano Checa (séc. XIX)



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Se houve um Império que caiu mais pela incompetência dos seus dirigentes do que pelas suas reais condições, foi o Império Romano do Ocidente. Quando olhamos as coisas retrospectivamente, vemos que apenas algumas atitudes corretas teriam evitado a catástrofe, pois o poder de conciliação e de adaptação dos romanos era um dos traços mais peculiares da sua civilização. Fora assim nas disputas patrícios x plebeus, republicanos x imperiais, nacionalistas x internacionalistas, jus civile x jus gentium, religião local x religiões estrangeiras, raça latina x outras raças, uniculturalismo x pluriculturalismo, paganismo x cristianismo, etc. Ao longo de 700 anos a palavra de ordem da civilização romana fora “inclusão”, mas na 2ª metade do século IV mudou para “exclusão”. Estudar as razões disto é tarefa árdua, mas as evidências mostram que foi ela, em última análise, a causadora da derrocada do Império.

Como já vimos anteriormente, os povos góticos que fugiam dos hunos foram admitidos no território imperial como imigrantes em 376, mas ao invés de lhes dar tratamento de súditos os romanos deram-lhes tratamento de refugiados, espécie até então desconhecida no Direito do Império, internando-os em “campos de concentração”, à exceção de alguns poucos milhares de jovens fortes e saudáveis incorporados ao exército. Porém muitos outros milhares não foram tão afortunados e, vendo os maltratos a que eram submetidas suas famílias, rebelaram-se, organizaram-se e esmagaram os romanos na batalha de Adrianópolis em 378, destruindo o exército do Oriente e matando o imperador Valente. O exército ocidental e o seu imperador Graciano, prudentemente voltaram à Itália temendo que os godos marchassem sobre Roma após dominarem Constantinopla, mas eles nem a dominaram nem saíram dos Bálcãs, onde ficaram confinados pela hábil política diplomática e militar de Teodósio, novo imperador romano do Oriente.

Mas o principal obstáculo à integração dos godos no Império era o fato de serem cristãos da seita ariana, que disputava com a seita católica o domínio da Igreja Cristã. Teodósio era católico e partilhava da intolerância e do exclusivismo de sua seita, que não tolerava nenhuma outra por mais devotos e virtuosos cristãos que fossem os seus fieis. Este era o caso dos godos, fervorosos adeptos da doutrina do bispo Ário, declarada herética pelo concílio de Niceia por considerar "politeísta" a teoria da "santíssima trindade", pilar doutrinário da seita católica, defendida com extremado zelo por seu líder, o bispo Atanásio. Na época da chegada dos godos, o catolicismo dominara a Igreja Cristã, controlava vastos setores do governo, e perseguia os arianos com todas as armas ao seu alcance. Por mais absurdo que pareça, os católicos tinham mais ódio aos arianos, apesar destes serem cristãos devotos, do que aos pagãos, que rejeitavam totalmente o cristianismo. Foi, portanto, a intolerância católica o principal obstáculo à inclusão dos godos na sociedade romana, gerando o rol de catástrofes que, conjugados a outros fatores, levariam o Império à sua derrocada final.

Após a absurda “exclusão” dos povos góticos, causadora do desastre de Adrianópolis, os romanos não voltaram à antiga política “inclusiva” e persistiram na política suicida de lidar com os incômodos “hóspedes” cruel e desonestamente, considerando-os “bárbaros” apesar de serem cristãos devotos, trabalhadores honestos e soldados valentes. Em um Império onde tudo que desejavam era a admissão como súditos leais, os godos continuaram vivendo marginalizados e sujeitos à permanente injustiça, mas por volta de 390 um novo líder surgiu entre eles: Alarico!

Após a morte de Teodósio os godos dominaram os bálcãs e Alarico entrou
vitorioso em Atenas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)

O seu valor logo atraiu a atenção do imperador Teodósio e do seu ministro Stilicon, que “compraram” a sua colaboração. No ano de 393 o usurpador Eugênio dominou a Gália e a Itália, obrigando Teodósio a marchar contra ele e derrotá-lo na batalha do rio Frígido, próximo aos Alpes Julianos. A vitória foi custosa e deveu-se principalmente aos godos, que lutaram nas posições mais perigosas e sofreram as maiores perdas. Como recompensa, Alarico obteve boa paga e o posto de general romano, mas nenhum comando importante. Ele sentiu-se injustiçado, pois devendo-se a vitória aos godos justo seria fossem eles incorporados ao exército e lhe fosse dado um comando relevante. Isto não ocorrendo, voltou às suas bases com os seus homens indignados enquanto o já gravemente enfermo Teodósio cometia mais um erro de funestos resultados ao Império: ao invés de nomear seu sucessor o competente general Stilicon, leal ministro e marido de uma sobrinha que criara como filha, nomeou seus dois filhos menores imperadores do Ocidente e do Oriente sem que nada os credenciasse aos altos cargos, a não ser o fato de serem seus filhos.

O fato do império ter sido dividido e entregue a dois idiotas, produziu enormes atritos entre eles, imobilizando na Itália o bravo Stilicon, que teve de dirigir todas as suas energias para resolver os problemas criados pela corrupta corte de Constantinopla, presidida pelo incompetente Arcádio e seus ministros ladrões, devassos e pervertidos, destituídos da mais mínima sombra de espírito público. Da confusão aproveitou-se Alarico para vingar-se da ingratidão dos romanos, devastando os Bálcãs e a Grécia, cuja capital Atenas ocupou e saqueou, sem encontrar qualquer resistência por parte dos dois decadentes impérios, mais interessados em intrigas, rivalidades pessoais e lutas intestinas do que na preservação da paz e da prosperidade pública.

Sendo apenas tutor do idiota Honório, imperador do Ocidente, e nenhum controle tendo sobre o petulante Arcádio, imperador do Oriente, Stilicon desdobrou-se na tarefa de manter de pé o Império. Para tornar ainda mais difícil a sua tarefa, os romanos confundiam os civilizados godos com os primitivos germânicos e por isso também odiavam os godos. O fato impediu o bravo comandante de tomá-los como aliados e o fez persistir na política de tê-los como “traiçoeiros inimigos”. Isto produziu várias batalhas entre godos e romanos, sempre vencidas por estes devido ao talento militar de Stilicon, porém quando finalmente viu que os godos não eram problema, mas solução, procurou convencer o imbecil Honório, seu genro e ex-tutelado, a firmar um tratado de paz e colaboração com os mesmos. Todavia, enquanto ocorriam as negociações, Stilicon foi assassinado em 408, vítima de uma absurda intriga palaciana, e o tratado foi esquecido.

O assassinato de Stilicon deixou o Império indefeso e Alarico iria fazê-lo
pagar por todas as iniquidades praticadas contra os godos

Após a morte de Stilicon, seguiu-se brutal massacre de milhares de famílias góticas que viviam pacificamente em cidades italianas e a indignação dos godos chegou ao máximo. Afastado do cenário o único líder romano que respeitava, Alarico perdeu a paciência e invadiu a Itália em 409, derrotando a incompetente nova liderança militar inimiga e sitiando Roma. Isto não acontecia desde o século III AC, quando o alarme ressoara nas ruas ao saberem que o cartaginês Aníbal aniquilara as suas aguerridas legiões na batalha de Canas e marchava sobre a cidade. A diferença é que seiscentos anos antes os romanos eram guerreiros que lutavam por patriotismo e vontade própria, mas agora eram um bando de arrogantes preguiçosos, acostumados a viverem à custa do Erário, suprido por províncias cuja espoliação era garantida por um exército profissional de mercenários estrangeiros.

Para enfrentar a grave situação, tudo que podiam fazer era rezar por um milagre, e este ocorreu porque o objetivo do devoto Alarico não era fazer mal a Roma, que respeitava por considerá-la a sagrada cidade de São Pedro, mas forçar o idiota imperador Honório a negociar a INCLUSÃO dos godos no Império. Como sempre, tudo que queriam era tornarem-se cidadãos, receberem terras ociosas para os seus agricultores, cargos no Serviço Público para os seus letrados e postos no Exército para os seus guerreiros.

Efígie de Alarico em uma antiga gravação em aço

Por incrível que pareça, o que os decadentes romanos deveriam ter como generosa dádiva foi tida como humilhante chantagem e por isso negaram-se a negociar com os “saqueadores bárbaros”, como chamavam os godos, mantendo a mesma política suicida de exclusão adotada há mais de 30 anos. Seguro na inexpugnável cidade-fortaleza de Ravena, o idiota Honório e seus lacaios não deram importância ao perigo que corria Roma e tentaram cansar Alarico com negociações onde promessas jamais viravam atos. Ele então resolveu depor Honório fazendo o Senado proclamar imperador o nobre Átalo, um tolo pomposo que lhe serviria de dócil instrumento, mas isto apenas agravou a situação, pois o governador do Egito, membro da quadrilha de Ravena, cortou o fornecimento de grãos à capital e esta se viu assolada pela fome, ameaçando o próprio exército godo. Vendo que o tiro saíra pela culatra, Alarico “demitiu” o inútil Átalo e a comida voltou, iniciando-se nova rodada de negociações. O impasse já durava mais de um ano quando Honório o convidou para uma conferência em local próximo a Ravena, mas ao invés de preparar-lhe um comitê de recepção preparou-lhe uma cilada, da qual escapou após derrotar o general Saro, e voltou a sitiar Roma com as suas tropas, que já começavam a criticar a sua boa fé e a lhe questionar a liderança.

Saque de Roma pelos godos. O quadro mostra incêndios e gente apavorada nas ruas, mas roubos e depredações foram só de palacetes e prédios públicos. Os pobres pouco sofreram
         
Os muitos meses de cerco sem que os godos invadissem a cidade deram aos moradores um falso sentimento de segurança, fazendo-os acreditar que, enquanto o Imperador ficasse longe em Ravena e o Papa governasse Roma, o devoto cristão Alarico não profanaria a cidade de São Pedro. Por isso os muitos que haviam fugido no início voltaram com as suas riquezas e os poucos que tinham ficado não cuidaram de mandá-las para outro lugar. Até mesmo a princesa Gala Placídia, irmã do imperador Honório, ficara durante o cerco, mais preocupada em vingar-se por ofensas verdadeiras ou imaginárias da sua prima Serena, viúva do seu ex-tutor Stilicon, do que com os ameaçadores godos.

Assim, quando em 16 de agosto de 410 eles arrombaram os portões após desbaratarem a fraca resistência e espraiaram-se pelas ruas aos milhares, os surpreendidos romanos entraram em pânico e renderam-se. O saque começou logo após Alarico instalar-se no palácio imperial, porém, ao contrário do que se pensa, não foi um saque furioso e destruidor, mas metódico e violento apenas na medida do necessário. O clero, as igrejas e mosteiros foram poupados, assim como também as moradas humildes, de sorte que o saque foi principalmente das repartições públicas, casas comerciais, mansões dos ricos e residências de classe média. Incêndios, mortes, torturas e estupros foram poucos em uma operação de tal envergadura, e a maioria deveu-se mais à escória local do que aos conquistadores.

Terminado o saque, Alarico fez cordial visita ao Papa, a quem homenageou como bispo de Roma e sucessor de São Pedro. Depois prosternou-se e orou na basílica do apóstolo diante do seu túmulo, seguido por ordeira fila de todo o exército godo, que mais parecia uma respeitosa multidão de devotos peregrinos do que um exército de bárbaros invasores!

Alarico surpreendeu a todos ao não se proclamar imperador após conquistar
Roma. Gravura de Ludwig Thiersch (1894)
          
A boa conduta dos "heréticos" arianos conquistadores não parava de surpreender os católicos romanos conquistados, que já tinham como certo Alarico proclamar-se imperador logo que os ânimos serenassem, mas a surpresa maior veio no dia 27 de agosto quando, já estando tudo em ordem, ele e o seu exército partiram e marcharam para o sul, dizendo que iriam estabelecer o seu reino na Sicília. Levavam centenas de carroças com os tesouros saqueados e muitos nobres reféns, entre eles a princesa Gala Placídia. Antes de serem libertados mediante pesado resgate, teriam que servir aos godos como escravos a fim de provarem o gosto do trabalho, do sofrimento e da humilhação.

O que se viu nos dias que se seguiram foram patrícias romanas trabalhando como arrumadeiras, cozinheiras, copeiras e lavadeiras, além de prestando sofisticados serviços sexuais aos seus captores. Nobres latifundiários e ricos mercadores foram mandados tratar de cavalos, limparem estábulos e carregarem pesados fardos sob o chicote vigilante dos vencedores. À medida que os polpudos resgates eram pagos, iam sendo libertados e voltavam a Roma contando sua "odisseia" com as tintas piores possíveis, reivindicando para si as glórias do martírio pelo "sofrimento" durante o cativeiro entre os “cruéis bárbaros heréticos”. Ainda bem que alguns foram honestos e contaram a verdade, reconhecendo que o sofrimento fora apenas o merecido castigo por sua sórdida arrogância e pérfida mesquinhez. A única refém não libertada foi a princesa imperial Gala Placídia, seja porque Alarico quisera mantê-la como valiosa moeda de troca em futuras negociações com Honório, seja porque ela se tornara amante do príncipe godo Ataulfo.

Após dois meses percorrendo o sul da Itália, ele chegou ao estreito de Messina onde começou a preparar a travessia marítima do seu povo para a Sicília, que julgara ser a sua Canaã. Porém, em meio aos intensos preparativos, teve um súbito colapso e morreu.

O funeral de Alarico foi misterioso. Dizem que represaram um rio e o enterraram no seu leito seco. Depois
liberaram o rio e ele cobriu o túmulo para sempre. Gravura de Heinrich Leutemann (séc. XIX)

Conta-se que muitos guerreiros se suicidaram para acompanhar na morte o grande chefe morto, mas isso é improvável dado que os godos eram cristãos devotos e o cristianismo proíbe o suicídio, mas a verdade é que o povo chorou durante dias o seu Moisés, morto antes de ver a terra prometida e que além de liderá-los durante anos na travessia do deserto também derrotara o faraó romano em campo aberto e se apossara da sua capital. O seu funeral está repleto de lendas e não se sabe o local do seu túmulo, pois os milhares de godos que o acompanhavam juraram guardar o segredo para sempre, de forma que o único homem que conquistou Roma em oito séculos de História repousa para sempre em lugar ignorado. Isto dá bem a medida da seriedade e honradez dos godos, pois é o único caso na história em que um povo inteiro, com seus milhares de homens, mulheres e crianças cumpre um juramento de forma tão completa e absoluta. Nem mesmo a prisioneira princesa Placídia, presente ao funeral e mais tarde rainha dos godos pelo casamento com Ataulfo, traiu o juramento. Certamente porque na ocasião já devia se sentir mais gótica do que romana!

Todos juraram guardar segredo sobre o local do túmulo de Alarico no leito de um rio temporariamente
represado para o enterro. Gravura de Heinrich Leutemann (séc. XIX)
          
Porém, mais misterioso que o local do seu túmulo é o motivo pelo qual não se proclamou Imperador quando tinha tudo para fazê-lo e, ao invés de tornar-se “Senhor do Mundo”, preferiu abandonar a mais famosa e poderosa cidade de todos os tempos, marchando para longe na busca de criar um modesto reino para o seu sofrido povo em uma ilha supostamente paradisíaca. Jamais saberemos o que se passou em sua mente modesta naqueles poucos dias vividos como senhor absoluto no suntuoso palácio imperial em Roma, mas é razoável supor que sendo ele homem de fé tenha pressentido o fim próximo e tido uma iluminação mística, fazendo-o ver que uma metrópole de costumes duvidosos não era lugar para um povo rural de hábitos sóbrios se estabelecer. Daí sua pressa em partir à procura de um lugar apropriado à sua gente antes que os seus dias na terra findassem.

Ou talvez fosse mais lógico simplesmente pensar que ao invés de se importar com as grandezas do mundo, as delícias do poder efêmero e a vaidade da glória pessoal, Alarico fosse apenas um homem decente que desse muito mais importância à tranquilidade da sua consciência de cristão honesto e à felicidade simples do seu povo humilde.

A longa marcha dos godos das planícies da Ucrânia até a Península Ibérica, onde se
estabeleceram definitivamente, durou 42 anos 

Os godos viram a súbita morte de Alarico como mensagem divina dizendo-lhes que deviam desistir da Sicília, e o novo rei Ataulfo, parente e melhor general do falecido líder, fez a sua imperial amante Gala Placídia obter de Honório um tratado que dava aos godos a cidadania romana e um vasto reino no oeste da França e norte da Espanha, tornando-a rainha dos godos pelo casamento com Ataulfo. A justa romanização dos valorosos imigrantes permitiu a vitória de Aécio sobre Átila em 451 na gigantesca batalha dos Campos Catalúnicos, última grande vitória das águias imperiais. Nos anos seguintes, eles dominaram toda a Península Ibérica onde se fixaram definitivamente, de modo que a terra prometida dos godos terminou sendo a Espanha e Portugal e não a Sicília, como sonhara Alarico.


quarta-feira, 27 de julho de 2011

Post nº 44

TEODÓSIO  -  O  IMPERADOR  ROMANO
QUE  DETEVE  O  AVANÇO  DOS
INVASORES  GODOS  

Santo Ambrósio proíbe o imperador Teodósio entrar na catedral de Milão e o manda
fazer penitência por seus crimes. Tela de Anthonis Van Dyck (1620)


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A conseqüência imediata da esmagadora derrota romana em Adrianópolis no ano de 378 DC foi o caos geral no Oriente, abalando a estrutura do gigantesco Império que desde o século II estendia-se do norte da Inglaterra ao sul do Iraque, do oceano Atlântico ao oceano Índico, das florestas da Germânia às areias do Saara e tinha o mar Mediterrâneo como um lago interior. Com o exército destruído, como poderia o seu domínio manter-se sobre tão imensa área?

Um dos maiores mistérios da História é entender como um Império com milhões de quilômetros quadrados, centenas de povos e dezenas de idiomas diferentes, pôde durar tanto tempo apesar de calamidades e largos períodos de anarquia político-militar, mas entre as várias explicações e fatores apontados para a solução do mistério está a eficiência do Exército. Mas ele agora sumira e ninguém tinha a mínima ideia de como ficariam as coisas sem ele. O resultado foi o pânico generalizado e as autoridades locais fazendo o que podiam para manter a estrutura do Estado e a segurança dos cidadãos enquanto aguardavam pelos acontecimentos. Porém, por incrível que pareça, o temível exército imperial logo se refez do desastre, possibilitando a sobrevivência do Império por mais um século. Como foi possível o milagre?

Vejamos. Muitos pensam que o Exército Romano era enorme, mas ele era incrivelmente pequeno. Seus efetivos eram em média de 180 mil homens, podendo às vezes subir para cerca de 200.000 ou baixar para cerca de 150.000, dependendo da conjuntura político-militar. Verifica-se, portanto, que tanto em seu tamanho máximo como em seu tamanho mínimo ou médio, os seus efetivos eram muito inferiores aos dos exércitos das grandes potências atuais, relativamente bem menos importantes e poderosas do que o antigo Império. Como podia, pois, um exército tão pequeno ser máquina de guerra tão temível?

A chegada em massa dos civilizados godos cristãos ao Império poderia ter sido sua salvação, mas a
incompetência dos romanos os fez principal agente da sua destruição

O segredo estava na organização e não no tamanho. Desde o imperador Trajano o Exército dividia-se em cerca de trinta Legiões, cada uma tendo, quando completa, um total de seis mil seiscentos e sessenta legionários comandados por um general-chefe auxiliado por um ou dois tenentes-generais. Ela dividia-se em dez coortes de seiscentos e sessenta e seis soldados, as quais eram postadas em locais estratégicos da zona sob sua jurisdição. Por sua vez a coorte dividia-se em seis centúrias, as quais se compunham de dez decúrias, a menor e mais coesa unidade do exército. Cuidando da logística da legião, havia cerca de mil auxiliares sem treino militar apropriado, mas que em casos extremos podiam ser chamados à batalha. Durante esta, cada unidade encaixava-se ou destacava-se da outra como peça de um mecanismo e os legionários moviam-se obedecendo apenas ao comando dos seus oficiais, com frieza e sem gestos precipitados.

Com tão extraordinária organização e eficientes táticas uma legião podia assegurar o domínio imperial em vastos territórios com um mínimo de soldados, porém deve ser dito que seus efetivos, armas, formações e táticas de combate variaram bastante no decorrer do tempo, e no século IV raro era a Legião com mais de três mil homens e Coortes com mais de trezentos. Isto explicaria o fato dos romanos, embora lutando em Adrianópolis com cerca de cinquenta mil homens, perderem  trinta e cinco generais e dezesseis Legiões.

Porém, o mais importante durante a crise que se seguiu à batalha de Adrianópolis foi o fato da antiga localização estratégica dos quartéis, sede das tropas que tinham partido para a guerra, ter sido conservada e os quarteis terem permanecido ativos, com toda a sua estrutura burocrática em pleno funcionamento. Por isso, bastou um rápido recrutamento de novas tropas, fácil de ser obtido dado os altos salários pagos aos militares, para que as legiões destruídas fossem refeitas, mantendo-se a unidade e a segurança do Império.

Em decorrência dos alicerces sobre os quais era edificado, o exército romano era capaz de renascer rapidamente das próprias cinzas e voltar a ser a mesma máquina de guerra invencível de antes, salvo quando ocorriam circunstâncias fatais ou erros crassos de comando como em Adrianópolis. Por isso é que a esmagadora derrota causou tanta surpresa, levando todos a julgarem “o fim do mundo”. Mas como uma desgraça nunca vem sozinha, várias outras menores, porém não menos terríveis, ocorreram em seguida por todo o Império, pois gente apavorada sempre joga sua raiva em “inimigos” indefesos. E foi o que ocorreu com milhares de “bárbaros” que viviam pacificamente no Império, massacrados em casa e na rua por multidões furiosas que bradavam insultos homicidas contra os godos miseráveis! Houve mesmo um general que executou centenas de soldados godos há muito servindo lealmente em suas tropas.

Os godos recuaram diante das imensas muralhas de Constantinopla e abandonaram
 o seu projeto de tomar a capital do Império Romano do Oriente
         
Mas enquanto reinava o caos nas cidades do Império, o líder godo Fritigerno saqueou e incendiou os quartéis imperiais fora das muralhas de Adrianópolis, só não a tomando porque julgou ser muito esforço para pouco ganho. Assim, marchou sobre Constantinopla, que pensava estar indefesa, mas enganou-se: uma feroz legião árabe recém chegada, e os poucos oficiais sobreviventes do massacre, armaram os civis e simularam serem uma “grande força defensiva”! As imensas muralhas “fortemente guarnecidas” fizeram-no desistir e ir para o rico interior saqueá-lo sem maiores dificuldades; para aumentar o caos, milhares de famílias góticas cruzaram a indefesa fronteira do rio Danúbio e ocuparam as muitas fazendas desertas, ao mesmo tempo em que os seus jovens, inflamados pela vitória, iam engrossar as fileiras rebeldes.

A gravíssima situação tornou urgente a escolha de um novo Imperador, pois Graciano, Imperador do Ocidente e herdeiro do trono, estava certo da  vitória final dos godos no Oriente e resolvera voltar a Itália a fim de organizar a defesa contra uma provável marcha dos vitoriosos para o oeste. Vendo-se abandonados por Graciano, os pouco generais sobreviventes, incapazes de elegerem novo imperador um dos seus pares devido à rivalidade entre eles, escolheram um antigo colega que deixara saudades ao se demitir do Exército há alguns anos para cuidar de suas propriedades na Espanha: Teodósio!

De família nobre e riquíssima, era filho de bravo general e ilustre ministro do imperador Valentiniano I. Isto o ajudara a fazer rápida carreira no exército, mas o seu pai caiu em desgraça durante a sucessão do imperador falecido e foi executado por ordem do novo imperador Graciano. Face à desgraça, o jovem Teodósio achou prudente se afastar e ir cuidar dos seus negócios na Espanha. Estava lá quando recebeu a notícia da sua escolha para envergar a púrpura imperial, mas antes exigiu que o imperador Graciano, legítimo herdeiro de Valente, a referendasse, o que foi difícil porque havia intensa antipatia entre os dois. Com ou sem o decreto no bolso, viajou com um grupo de nobres generais espanhóis seus amigos e fixou sua capital em Salônica, ponto estratégico para a guerra em curso. Sua primeira providência foi recriar o exército, e o conseguiu em prazo breve. Após um ano de combates e intensa diplomacia, conseguiu botar ordem no caos e mudar-se para Constantinopla, de onde habilmente comandou a guerra atraindo os adversários mais receptivos e derrotando os mais recalcitrantes.

Teodósio era de riquíssima família espanhola e foi o último imperador a governar os
Impérios Romanos do Oriente e do Ocidente unificados (378-395 DC)

O seu golpe de mestre foi receber com grandes honras o velho chefe godo Atanarico, que por muitos anos guerreara os romanos e se afastara bem antes da batalha de Adrianópolis por política, velhice e doença. Embora não tivesse mais poder algum, era muito respeitado por seu povo e as grandes atenções que Teodósio lhe deu, tratando-o como seu igual, não só o comoveram, como também aos seus antigos liderados, facilitando a paz definitiva. Quando meses depois Atanarico faleceu, Teodósio o homenageou com funerais suntuosos, dignos de um imperador, e isto facilitou ainda mais as coisas, permitindo que no final de 382 um Tratado de Paz fosse celebrado. 
         
Porém, apesar de Teodósio dar aos godos boa parte do que exigiam, sobretudo terras, subsídios, ingresso no exército e na burocracia, o que mais influiu no acordo foi serem eles cristãos romanizados, ansiosos por fazerem parte do Império. Isto ajudou bastante, mas o fato de serem cristãos da "Seita Ariana”, fanaticamente combatida pela "Seita Católica”, dominante em Constantinopla, na corte e na região por eles ocupada, causou muitos empecilhos. O próprio Teodósio era um fiel Católico e isto certamente influenciou sua conduta dúplice depois do Tratado, conduta que daí em diante condicionaria os romanos a lidar com os godos sempre de forma traiçoeira e desonesta. Ademais, o extremado Catolicismo de Teodósio o levaria não só a hostilizar os Arianos, como a proibir o Paganismo, introduzindo no Mundo Antigo um conceito até então desconhecido: Intolerância Religiosa! Ao fazer isso, deflagrou o processo que findaria a Idade Clássica e iniciaria a Idade Média.

De qualquer forma, o novo imperador conseguira superar a grave crise e salvar o Império de uma catástrofe que a todos parecera inevitável. Apesar da arrogante incompetência do seu antecessor e desvairada bandalheira da burocracia, Teodósio realizara uma proeza notável: injetar vida nova a um Império moribundo e salvar Roma.
        
Pelo menos por enquanto.


Nota: a palavra bárbaro entre os romanos não tinha o sentido que lhe damos hoje, significando na época apenas "povo estrangeiro ignorante", que não sabe Latim e fala "bar-ba-bar-ba-bar-ba". Foi a piada o que deu origem à palavra. Todavia, povos civilizados ou com elites civilizadas, como cartagineses, gregos, egípcios, armênios, árabes e persas, não recebiam esse apelido depreciativo. Após a expansão do Império por quase todo o mundo conhecido, bárbaros eram apenas os povos além-fronteiras do norte e nordeste que não sabiam ler e escrever. Depois que o notável bispo godo Úfila  converteu seu povo ao cristianismo ariano em meados do século IV, dando ao seu idioma uma escrita e para ele traduzindo a Bíblia, tornou-se extremamente inapropriado chamar os godos de bárbaros. O fervor com que eles abraçaram a nova religião fez surgir em seu meio muitas paróquias com escolas, pois todos queriam aprender a ler os ensinamentos do Senhor no Livro Sagrado. Só por incrível arrogância e despeito é que os romanos continuaram a chamá-los de bárbaros após a catastrófica derrota que eles lhes impuseram em Adrianópolis, cujos antecedentes mostram que no caso bárbaros eram os romanos e não os godos. Mais do que pela competência de Teodósio, os romanos foram salvos por serem os godos cristãos devotos e preferirem confraternizar com inimigos também cristãos a destruí-los. A sua generosa atitude lhes traria muito sofrimento e decepção, mas por fim infligiriam aos romanos um castigo que eles jamais esqueceriam.     


segunda-feira, 11 de julho de 2011

Post nº 43

BATALHA  DE  ADRIANÓPOLIS  –  COMEÇO
DO  FIM  DO  IMPÉRIO  ROMANO


Em Adrianópolis os exaustos romanos ficaram horas sob o sol forte, respirando a fumaça das fogueiras
acesas pelos godos enquanto as demoradas negociações entre seus líderes se arrastavam

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Um dos grandes paradoxos da história é que, embora tenha sido travada pelo Império Romano do Oriente, a batalha de Adrianópolis em nada influenciou o seu destino, mas influenciou decisivamente o lento processo de extinção do Império Romano do Ocidente que nela não tomou parte. Para que possamos entender tão intrigante paradoxo, é preciso analisar não só o desenrolar da grande batalha, mas também as suas lamentáveis causas e as suas funestas consequências.

No final do século III, uma tribo de ferozes cavaleiros que vivia entre as montanhas do Afeganistão e o Mar Cáspio invadiu a Europa e ocupou a vasta região entre o Rio Volga e o Rio Dom. Após derrotarem os alanos, estes se tornaram seus aliados e continuaram sua implacável marcha para o oeste. Os conquistadores eram chamados de Hunos e em meados do século seguinte atacaram os greutungos e os tervíngios, tribos numerosas que habitavam as atuais Ucrânia e norte da Romênia. Referidas tribos eram da mesma etnia e possuíam língua e cultura comum, fazendo com que os romanos os considerasse um único povo ao qual davam o apelido genérico de Godos. Eles eram bastante civilizados e, ao contrário do que diz a história oficial, não tinham qualquer parentesco com os germânicos nem com os escandinavos, como a maioria dos historiadores tem insistido em repetir erroneamente através dos séculos. O erro se deve a uma obra equivocada do historiador do século IV Amianus Marcelinus, que não conseguia distinguir bem entre os inúmeros povos bárbaros, habitantes de regiões remotas além das fronteiras do império, dado as poucas informações de que dispunha.

Não se sabe se os godos eram eslavos, mas é certo que há muito viviam na atual Ucrânia e eram superiores culturalmente aos germânicos e aos escandinavos conforme provam as modernas pesquisas arqueológicas, não tendo os seus idiomas semelhanças maiores apesar de serem do ramo indo-europeu. Vivendo nas fronteiras do Império, os godos tinham intenso relacionamento comercial e cultural com os romanos, às vezes pacífico e às vezes conflitante, mas este cresceu e melhorou muito depois que eles adotaram uma escrita criada para o idioma gótico pelo bispo Úfila, seu erudito compatriota radicado em Constantinopla, o qual também lhes traduziu a Bíblia e os converteu ao cristianismo da Seita Ariana por ele professada. Esta disputava com a Seita Católica, na época chamada de "ortodoxa", a supremacia do mundo cristão. Os arianos, portanto, eram dissidentes da Igreja dominante e a quem, no contexto atual, poderíamos chamar de protestantes.

Os godos não eram parentes dos germânicos e foram convertidos ao cristianismo
ariano pelo bispo Úfila no século IV. Gravura de autor anônimo (1900)
       
Após sangrentas lutas com os invasores hunos, as tribos góticas recuaram e buscaram refúgio no território do Império Romano do Oriente, acampando na margem norte do Rio Danúbio na primavera de 376 e suplicando ao imperador Valente que os acolhesse como súditos, protegendo-os contra os terríveis conquistadores pagãos. Sempre afirmando que queriam se tornar romanos, os tervíngios (depois chamados "visigodos") foram admitidos no território imperial após árduas negociações e atravessaram o largo Rio Danúbio em centenas de barcos no verão do mesmo ano. Foi a maior migração em massa da História e não se sabe o número exato de imigrantes. Alguns autores, como o grande historiador inglês Edward Gibbon, o calculam em cerca de um milhão, pois eram dezenas de milhares de famílias com todos os seus pertences em numerosíssimas carroças. Porém o mais provável é que fossem cerca de trezentos mil na primeira leva, incluindo velhos, mulheres e crianças, número que aumentou bastante nos meses seguintes devido à chegada de novas levas menores, pois a fronteira do Danúbio havia ficado quase que totalmente aberta. Isto permitiu também a entrada dos greutungos (depois chamados "ostrogodos"), fazendo com que o número original de refugiados mais que duplicasse.

Em 376 DC os povos góticos saíram da Ucrânia fugindo dos hunos e chegaram ao rio Danúbio. Após obterem
asilo no Império Romano do Oriente, sua travessia em centenas de barcos foi dramática

Os godos eram um povo próspero, e muitos dos seus nobres traziam tesouros, vestiam-se com esmero e usavam joias valiosas. Isto despertou a cobiça das infames autoridades romanas locais, e o que sucedeu depois é um dos piores casos de incompetência, ladroeira e baixeza de que se tem notícia, pois ao invés de tratarem os godos como súditos ou aliados, os trataram como escravos, encerrando-os em campos de refugiados onde eram vilmente alimentados com carne de cachorro porque as vultosas verbas e os grandes volumes de comida vindos de Constantinopla eram desviados pelos corruptos administradores provinciais. Estes chegaram mesmo à suprema ignominia de negociarem com famílias pobres famintas a venda de seus jovens a traficantes de escravos, e nem mesmo filhos e filhas adolescentes de nobres godos em situação de necessidade escaparam à infâmia da escravidão e da prostituição forçada!

Os godos vinham da Ucrânia e Romênia, chegando ao Império como exilados políticos fugindo dos hunos,
mas foram tratados pelos romanos como escravos, gerando intensa revolta no povo e na nobreza

O descalabro administrativo e a imundície moral dos romanos orientais causaram nos infelizes imigrantes a mais terrível indignação e a revolta estourou, conflagrando o território do que é hoje a Bulgária e o sul da Romênia. Após duas médias batalhas inconclusivas, travadas em Marcianópolis e Salice, escaramuças isoladas continuaram a devastar a Trácia, até que as diversas facções godas organizaram-se em um grande exército sob o comando do líder tervíngio (visigodo) Fritigerno. Só então o imperador Valente, sempre ocupado pelas querelas com o Império Persa, acordou para o problema e resolveu liquidá-lo de vez.

Embora bravo e honesto, Valente era mau general e péssimo estadista, guiando-se mais por seus corruptos ministros do que por corretas razões de Estado. Por isso, ao invés de apurar as causas da baderna e corrigi-las, agiu com a afoiteza dos arrogantes: reuniu o seu grande exército e em julho de 378 marchou para Adrianópolis, vizinha à base dos godos, mas não sem antes pedir o auxílio do seu sobrinho Graciano, imperador do Ocidente e teoricamente seu subordinado. Ao chegar à cidade, as sórdidas autoridades locais pintaram um quadro róseo da situação, dizendo-lhe que o exército godo não passava de um bando de saqueadores e maltrapilhos famintos, que fugiriam assim que vissem no horizonte o temível exército imperial.

Apesar de honesto e de boa fé, Valente era vaidoso, arrogante e incompetente. Era também péssimo general.

Ansioso por obter uma vitória fácil somente sua contra “perigosos invasores bárbaros”, capaz de imortalizá-lo como grande general, Valente decidiu não esperar por Graciano e partir para o combate sem ter de com ele dividir as “glórias da vitória”. Devido à grande superioridade dos romanos orientais, a vitória de Valente era esperada por todos, inclusive pelo líder rebelde Fritigerno que, almejando a todo custo evitar a ruína da guerra, enviou um padre e alguns humildes cidadãos a Valente implorando paz sob o argumento verídico de que os godos eram apenas pobres exilados, expulsos de suas terras por ferozes hunos que logo fariam implacável guerra ao Império; sem terem para onde ir, tudo que desejavam eram terras na Trácia, não como soberanos, mas como bons agricultores que saberiam obter ótimas colheitas e trariam grandes benefícios ao Império e ao povo. Implorava, pois, que lhes concedesse as terras e firmassem um tratado de paz. Em troca, os godos jurariam fidelidade ao imperador e lhe dariam irrestrita e leal colaboração.

Graciano era sobrinho de Valente e imperador romano do Ocidente. Chamado por seu tio para
ajudá-lo talvez evitasse o desastre se tivesse chegado a tempo, pois era capaz e ponderado

Mas Valente não deu atenção à sensata proposta, pois queria travar uma batalha que tinha certeza de vencer. Dessa forma, deixando seus servidores civis e o seu tesouro protegidos dentro das muralhas de Adrianópolis, marchou ao amanhecer de 9 de agosto de 378 com o seu garboso exército para a planície onde Fritigerno e os seus guerreiros acampavam. Não sabemos quantos soldados tinha cada exército, mas calcula-se que entre cinquenta e sessenta mil homens de cada lado se engalfinharam naquele dia fatídico.

No final da manhã, os romanos avistaram o inimigo. Eles tinham formado uma linha defronte ao seu círculo de carroças e repousavam a sombra de toldos para terem a melhor condição possível de combate. Valente também começou a dispor suas tropas em linha, com as unidades de cavalaria em cada lado e a infantaria no centro, mas nem ele nem ninguém estava preparado para o que viria a seguir. O lado esquerdo do exército romano ainda estava em formação de marcha e os greutungos de Alateo e Safraco, aliados dos tervíngios e que com eles formavam a etnia gótica, ainda não tinham chegado.

Fritigerno então procurou ganhar tempo, enviando emissários a Valente suplicando paz, enquanto os imperiais ficavam postados sob o sol abrasador e sofriam com a fumaça das fogueiras acesas pelos tervíngios para enervá-los. Vendo as más condições das suas cansadas tropas, Valente aceitou a proposta de negociação porque, mesmo de longe, vira que o exército godo não era nenhum “bando de maltrapilhos”. Por isso talvez tenha decidido também esperar por Graciano, com quem não quisera antes partilhar as glórias da “vitória certa”. Assim, mandou uma luzidia delegação negociar com Fritigerno e a prontidão do seu exército, extenuado pela longa marcha da manhã, relaxou ainda mais.

Ataque prematuro dos romanos desencadeou a batalha e os exércitos inimigos engalfinharam-se
no sufocante calor da tarde sem ainda estarem preparados

Porém a luta começou por acaso, antes que os dois lados estivessem realmente prontos para o combate. Duas unidades das scholae palatinae de elite, os scutarii do general Cássio e os sagitarii do general Bacúrio, posicionadas ao lado direito do imperador, avançaram antes do tempo e engajaram o inimigo. Sua precipitação rompeu a linha de batalha imperial, que ficou ainda mais caótica pela súbita chegada dos greutungos de Alateo e Safraco, primos e aliados dos tervíngios. Com os greutungos vinha também um batalhão de alanos que haviam rompido com os hunos e se juntado aos ex-inimigos.

O que se seguiu foi um dos piores desastres militares de todos os tempos, pintado pelos historiadores com pinceladas terríveis. Os batalhões romanos da esquerda ultrapassaram a linha inimiga, ficando isolados, e foram aniquilados. Com o lado esquerdo desprotegido, a linha da infantaria romana desabou sobre si mesma, diminuindo a capacidade de luta dos soldados, muitos tombando por ferimentos feitos pelos próprios camaradas. No fim da tarde, todas as linhas romanas se romperam e a fuga começou. A guarda imperial e as scholae palatinae foram esmagadas, forçando Valente a juntar-se aos mattiari, disciplinado batalhão do exército regular e um dos poucos a se manter firme, lutando organizado até o amargo fim. As tropas auxiliares, que ficavam na reserva, foram convocadas, mas elas já tinham fugido para o mais longe possível do cenário da luta.

Batalha de Adrianópolis em 9 de agosto de 378 DC. Gravura "Fury of the Goths" de Paul Ivanovitz (séc. XIX)

Vendo que era inútil tentar conter a debandada e que a única salvação possível era a fuga, os importantes generais Vítor, Richomer e Saturnino abandonaram o campo de batalha, onde o massacre continuou até o escurecer. Nada se sabia do destino de Valente. Alguns diziam que fora ferido por uma flecha e morrera entre os soldados comuns; outros diziam que fora levado e escondido em uma fazenda por leais auxiliares, mas enquanto agonizava os godos tinham cercado e incendiado a casa, matando todos que lá estavam e assim perdendo a gloriosa chance de capturar um imperador romano. Qualquer que seja a verdade, nunca se achou o cadáver de Valente e como sempre ocorre nesses casos muitas lendas surgiram.
          
Na batalha de Adrianópolis, além do imperador Valente, pereceram trinta e cinco generais e a imensa maioria dos bem treinados oficiais e soldados imperiais. Quase tudo que havia de melhor no poderoso Exército Romano do Oriente desapareceu como uma sombra e um vento gelado de terror percorreu o Império de ponta a ponta. Tanto sacerdotes pagãos como cristãos de todas as seitas previram o "fim do mundo" e jogaram a culpa uns nos outros, dizendo que o desastre era "a manifestação da cólera divina por pecados, blasfêmias e contumácia no erro" dos rivais. Porém, recriminações e funestos vaticínios aparte, de um modo ou de outro todos viram que dali em diante governo e povo romanos teriam de lidar com uma até então pouco valorizada “ameaça bárbara”. Por outro lado, os godos estavam apenas iniciando a longa marcha de várias décadas que os levaria a Roma e terminaria na Espanha.

A batalha de Adrianópolis foi o começo do fim do glorioso Império.



Notas:  1) o grande número de etnias que constituíam os chamados "povos bárbaros" não permitia aos romanos distingui-los com precisão uns dos outros e por isso confundiram as tribos góticas com tribos germânicas. Porém não há evidências histórico-antropológicas disso, pois embora falassem um idioma indo-europeu, não era um dos dialetos germânicos e tinha pouquíssimas semelhanças com eles. O mais provável é que os godos fossem uma coleção de tribos primitivas do oeste da Rússia atual que marcharam até a Ucrânia e norte da Romênia, onde misturaram-se com os remanescentes dos civilizados povos dácios, massacrados pelo imperador Trajano no século II DC. Isto lhes deu uma cultura bastante superior entre os "bárbaros" da época, permitindo-lhes serem os primeiros a adotarem o cristianismo e a escrita. Diferentemente dos outros, eles não queriam saquear e destruir o Império Romano, mas tornarem-se parte dele. Foi a extrema miopia e incompetência de Valente que fez os romanos verem nos godos um problema e não uma solução.

2) O principal obstáculo à integração dos godos no Império foi o fato de serem cristãos arianos e por isso hostilizados pelos fanáticos cristãos católicos, majoritários no império e em Constantinopla, que os considerava demônios herejes. O imperador valente era cristão ariano e teria reforçado muito sua posição se tivesse acolhido melhor os godos, mas mantinha discreta sua crença religiosa, com medo de ofender seus fanáticos súditos católicos, e por covardia política e miopia administrativa preferiu hostilizar aqueles que poderiam ter sido os seus mais fieis e valorosos aliados.

3) Mais tarde os tervíngios marcharam para o ocidente e ganharam o nome de visigodos (godos do oeste), enquanto os greutungos ficaram na Trácia, o que lhes valeu o nome de ostrogodos (godos do leste). No final do século 5º, eles também marcharam para o ocidente, sob o comando do seu grande rei Teodorico, e criaram poderoso reino no norte da Itália.  

4) Um dos maiores erros de Valente foi a falta de cálculo temporal. Deveria ter marchado na tarde do dia 8 e avistado o inimigo ao crepúsculo, por volta das 21 horas, quando impossível seria combater. Acamparia, descansaria e na alvorada todos estariam repousados para lutar no frescor do amanhecer. Ao invés disso os soldados marcharam toda a manhã pesadamente equipados e avistaram o inimigo com sol a pino. Sem nenhum descanso, foram colocados em formação de batalha e assim ficaram sob sol abrasador por várias longas horas, respirando a fumaça que o vento lhes trazia das fogueiras ateadas pelo adversário. Enquanto as negociações astutamente solicitadas por Fritigerno prosseguiam, os legionários se asfixiavam e assavam sob os vigilantes olhos dos descansados godos, que afiavam suas espadas sentados à sombra e se divertiam com os exaustos romanos estupidamente posicionados pelo incompetente imperador. Quando a luta finalmente irrompeu, entre 4 e 5 da tarde, o sol estava alto e o calor era enorme. Diante do intempestivo e desorganizado ataque, todo trabalho que os godos tiveram foi o de se levantarem e encararem o exausto e irritado inimigo. Nas horas seguintes, sua única tarefa foi executar uma das maiores e mais fáceis matanças da história. Calcula-se que morreram dez romanos para cada godo, sobretudo durante a debandada final: os cansados legionários mal podiam correr e eram logo alcançados por seus perseguidores que os degolavam como carneiros.

5) O grande número de generais romanos orientais mortos na batalha deve-se ao fato de que, após a divisão do Império entre Valentiniano I e o seu irmão Valente no ano de 362, cada um passou a ter o seu próprio exército. O do Oriente tinha em torno de oitenta mil homens agrupados em cerca de vinte e cinco legiões com aproximadamente três mil homens cada. As dezesseis melhores legiões estavam em Adrianópolis, e como cada uma era comandada por um general assistido por um ou dois generais auxiliares, mais os quatro mil soldados de elite das sete scholae palatinae lideradas por importantes generais do estado-maior do imperador, é lícito supor haver mais de quarenta generais a frente das tropas. Por isso não surpreende que tenham perecido trinta e cinco generais numa batalha onde todas as dezesseis legiões e as sete scholae palatinae foram dizimadas, os sobreviventes mal dando para constituir duas ou três novas legiões.

6) Diferentemente de outras grandes batalhas, a de Adrianópolis foi travada sem obediência a planos estratégicos previamente elaborados por qualquer dos adversários. A precipitação dos generais Cássio e Bacúrio antes de que os exaustos romanos sequer houvessem completado a sua formação de batalha, mostra não só indisciplina, mas também ausência de planos estratégicos definidos. Os godos, em posição defensiva, apenas aproveitaram-se da balbúrdia criada pela incompetência dos romanos para massacrá-los.