domingo, 27 de maio de 2012

Post nº 57

GALLA  PLACÍDIA  -  A  ÚNICA  MULHER  QUE  
GOVERNOU  O  IMPÉRIO  ROMANO

Gala Placidia - Retrato autêntico pintado provavelmente entre 432 e 435 DC
 por artista da época cujo nome a história não registrou

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Algumas mulheres romanas, como Lívia, esposa de Augusto, e Agripina, esposa de Cláudio, tiveram grande influência nos negócios do Império, mas apenas nos bastidores. Outras tiveram relevante papel político público e deram as cartas do jogo, como foi o caso exemplar da bilionária Júlia Maesa, tia do imperador Caracala e avó dos imperadores Heliogábalo e Alexandre Severo, porém jamais exerceu o poder oficialmente. A única que de Fato e de Direito empunhou o cetro imperial foi Galla Placídia, uma das mais notáveis e menos conhecidas estadistas da História, mas só os fatos de nascer em Constantinopla no século de nascimento do Império Romano do Oriente e morrer em Roma no século da morte do Império Romano do Ocidente, já fornecem material suficiente para conjecturas cabalísticas de astrólogos e numerólogos. Ademais, como se fosse para acentuar a sua singularidade, não existe na História mulher que tenha sido tão “sangue azul” quanto ela, pois era neta do imperador Valentiniano I, sobrinha-neta do imperador Valente, filha do imperador Teodósio I, sobrinha dos imperadores Graciano e Valentiniano II, irmã dos imperadores Arcádio e Honório, esposa em primeiras núpcias do Rei Ataulfo e em segundas núpcias do imperador-adjunto Constâncio, tia do imperador Teodósio II, mãe do imperador Valentiniano III e, finalmente, imperatriz munida de poderes institucionais durante mais de uma década. Era, portanto, próxima por sangue a nove imperadores e por lei a um rei e a um imperador, oito dos quais reinantes em sua época. Porém, o mais curioso é que ela também poderia ter sido sogra de Átila, famoso rei dos Hunos, e do filho de Genserico, temido rei dos Vândalos!

                            Mapa do Império Romano do Ocidente no século V, época de Placídia, em meu livro
                                      "Intimate memories of Flavius Marcellus Aetius" (Athena Press - London)

Aelia Galla Placídia nasceu em Constantinopla em 390 e morreu em Roma em 450 aos sessenta anos de idade. Poderia ter uma vida calma e feliz se quisesse, não só por sua origem e posição, mas também por sua beleza, saúde, prendas domésticas (fiava, costurava e bordava com perfeição), inteligência, cultura e fortuna. Todavia, ao contrário do que se esperaria de uma mulher em suas condições, ela preferiu viver em escuro mar tempestuoso e não em tranqüilo lago azul. Talvez para isso tenha contribuído a sua infância infeliz. Filha caçula do imperador Teodósio I e da imperatriz Galla, ficou órfã de mãe aos quatro anos de idade e de pai aos cinco. Gravemente enfermo e prevendo a morte próxima, Teodósio nomeou sua sobrinha Serena e o marido, general Stilicon, tutores dos seus filhos menores, o que fazia do general o regente do Império no caso do seu falecimento. Este efetivamente ocorreu pouco depois e tanto o adolescente Honório como a menina Placídia foram morar na casa de Stilicon. Este passava quase todo tempo ocupado com assuntos do Estado e pouca ou nenhuma atenção dava aos filhos e aos tutelados, deixando-os inteiramente aos cuidados de Serena, mulher culta e inteligente, mas também fria, dura e prática, como o marido e o tio.

    Muralhas de Constantinopla, onde nasceu Placídia. Eram julgadas
               inexpugnáveis e resistiram a ataques durante 11 séculos

O último grande poeta da antiguidade, Claudiano, compôs belo poema sobre os méritos de Serena, mas como era bajulador e fizera o mesmo em homenagem a Stilicon, não se pode confiar muito em seus juízos de valor. De qualquer forma, as virtudes domésticas de Serena eram conhecidas e todos sabiam que ela dirigia sua casa da mesma forma como seu marido dirigia um quartel, impondo rigorosa obediência, severa disciplina e estrita moralidade. Ajuntava a isto um rígido horário de estudos para os adolescentes Euquérius, seu filho, e Honório, seu primo e tutelado. Fazia o mesmo com as meninas, as quais eram também obrigadas a aprender matérias domésticas essenciais a uma esposa nobre da época: administrar a casa, zelar pela higiene, vigiar e dirigir a criadagem, supervisionar a cozinha, tecer, costurar, bordar, etc. Disto não escapou Placídia, que deve ter se sentido maltratada e humilhada por Serena.

Díptico do final do século IV retratando o general Stilicon, sua esposa Serena e seu filho Euquérius,
noivo de Placídia desde a infância. Tudo indica que ela participou do assassinato dos três.

Órfã e dona de imenso orgulho, desde pequena ela deve ter visto na prima e tutora apenas um carcereiro e verdugo, acumulando no coração ódio doentio contra ela e sua família, pois não há outra explicação para sua absurda e cruel atitude posterior. Porém, enquanto Placídia crescia e era educada com severidade por Serena, Stilicon obtinha vitória após vitória sobre os bárbaros, acrescendo imensa popularidade ao seu já enorme poder político e militar. Por isso é difícil entender por que, ao invés de se proclamar imperador, preferiu casar seu tutelado Honório com Maria, sua filha mais velha, e coroá-lo ao atingir a maioridade. Embora correta do ponto de vista moral e institucional, a atitude de Stilicon surpreendeu, sobretudo porque seu tutelado e genro era notoriamente curto de inteligência e tido como idiota pela maioria das pessoas. Mas todos acharam que, sendo um homem decente, Stilicon preferira continuar governando como Primeiro-Ministro do que desrespeitar a lei.


Em minha opinião o fato se deveu mais a razões sentimentais do que a razões políticas, pois Stilicon dedicava amizade e fidelidade caninas ao seu falecido amigo, protetor, e quase sogro Teodósio I, o qual criara a sobrinha Serena como filha e a dera como esposa a um simples oficial de carreira, notável por sua lealdade, bravura e competência, mas pobre e de origem humilde. Teodósio e Serena pertenciam a riquíssima família espanhola de origem romana, enquanto Stilicon era filho de modesto oficial germânico de nacionalidade vândala, que somente se tornara cidadão romano por ter sido guarda-costas do general Teodósio Flaviano, avô de Placídia. Tudo indica que a lealdade e gratidão à família Flávia passou de pai a filho e o nobre caráter de Stilicon jamais lhe permitiria ser ingrato a aqueles que tinham sido tão generosos com seu pai e consigo próprio, por mais favoráveis que lhe fossem as condições políticas e militares. Ademais, ele se tornara um Flaviano pelo casamento, e trair a confiança do seu falecido chefe e benfeitor estava fora de questão.

Porém, como dizem os cínicos, toda boa ação será castigada! Em 408 Stilicon foi assassinado traiçoeiramente por ordem do seu ex-tutelado Honório numa igreja em Ravena, e poucos meses depois sua viúva Serena e seu filho Euquérius foram executados sem que Placídia erguesse um dedo em favor da mãe e do irmão adotivos. A absurda intriga palaciana por trás da tragédia ainda hoje é difícil de entender, e foi um dos fatos que apressaram ainda mais a dissolução do Império Romano. Porém, o grau de apodrecimento da sociedade da época manifesta-se na clara evidência de que a então jovem Placídia estava por trás dos nefandos crimes, porque nada teria acontecido se ela não tivesse com eles concordado, já que era sabida e notória a grande influência que exercia sobre o seu imbecilizado irmão-imperador.

Com a morte de Stilicon, o Império, que já vivia em difícil situação, ficou totalmente indefeso, e em 410 os godos tomaram e saquearam Roma, fazendo reféns muitos nobres ricos e importantes, entre os quais a princesa Placídia. Todos os reféns foram soltos após pagarem pesados resgates, mas ela continuou cativa e se tornou amante de Ataulfo, novo rei dos godos.

 Ataulfo foi o primeiro rei godo da Espanha. 
       Escultura de Felipe de Castro (1753)

Ambos casaram pelo rito ariano em 411 na cidade de Forli, na Itália, mas dois anos depois novo casamento foi celebrado com grande pompa pelo rito ortodoxo em Narbonne, na Gália, porque só assim Honório e os que governavam por trás do trono aceitariam fazer um tratado de paz vantajoso a Ataulfo. Com o casamento, ele tornou-se aliado do imperador idiota e, sem a sua ajuda, derrotou os generais rebeldes Jovinus e Sebastianus, que haviam se proclamado imperador e imperador-adjunto da Britannia e da Galia. Sem fazer qualquer esforço, e talvez nem mesmo entender direito o que se passava, o incompetente Honório conjurou uma das mais graves ameaças ao seu desastroso desgoverno, graças à sedutora beleza da irmã e ao valor militar do cunhado.


Imperatriz Galla Placídia e seus filhos Valentiniano e Honória. Pintura de autor anônimo do século 5º DC

Como prêmio por sua grande vitória, Ataulfo ganhou um reino no sudoeste da Gália, logo acrescido do nordeste da Espanha, e a aventureira Placídia, após percorrer a cavalo com ele toda a Itália e o sul da Gália, onde morou algum tempo em Toulouse, cruzou os Pirineus e foi morar na Espanha, pois Ataulfo escolhera Barcelona para sua capital. Porém, logo depois foi assassinado por um oficial traidor e Placídia foi humilhada, sendo obrigada a desfilar a pé atrás do cavalo do assassino na celebração do seu infame triunfo. Mas ela nem por um minuto perdeu a pose ou mostrou desespero, o que muito contribuiu para aumentar a fervorosa admiração que os godos já lhe tributavam. Isto talvez tenha sido decisivo para que alguns dias depois os indignados partidários de Ataulfo retomassem o poder, executassem os assassinos e Placídia retornasse à Itália firme, forte, e ostentando o pomposo título de Perpetua Regina Gothorum (Perpétua Rainha dos Godos) que o novo rei Vália lhe outorgara.

Honório era imbecilizado e não tinha filhos, por isso Placídia decidiu ser imperatriz reinante e, assim que o luto acabou, casou-se com o general Constâncio, comandante das forças armadas. Pouco depois fez o irmão idiota elevá-lo ao posto de imperador-adjunto, e em 417 teve uma filha a quem deu o nome de Honória para bajular o irmão. Em 419 teve um filho, a quem deu o nome de seu avô Valentiniano, e cuidou para que Honório, cada vez mais enfermo tanto da mente como do corpo, o fizesse seu herdeiro natural. Mas falhou, e isso lhe traria graves problemas no futuro.

                Mausoléu de Galla Placídia em Ravena. Ao fundo seu sarcófago e nas laterais os dos filhos 
                         Valentiniano e Honória. Mas estão vazios e não se sabe o que foi feito dos corpos

Sempre envolvida na política, meteu-se na eleição papal em 419, escrevendo cartas aos bispos e convocando sínodos, mas acabou transigindo e aceitando um Papa que não era do seu agrado. Três dessas cartas, onde discute assuntos teológicos e eclesiásticos, são conhecidas e mostram sua grande cultura e seu refinado estilo literário, mas as dificuldades da eleição papal mostraram-lhe que fazer papas não era tão simples quanto fazer imperadores, e parou de se intrometer nos assuntos da Igreja, passando a manter estreito e respeitoso relacionamento com o clero, coisa que lhe traria grande proveito. Placídia era estadista de primeira classe e o poder era seu principal objetivo, portanto concluiu que era melhor ter a Igreja como aliada do que como adversária, e a cobriu de favores e privilégios. Tudo ia bem quando Constâncio morreu subitamente e Placídia ficou de novo viúva, obrigando-a a multiplicar esforços para se manter no poder e conseguir do enfermiço irmão sem filhos adotar o pequeno Valentiniano como herdeiro. A historiografia do século V é péssima e as datas diferem bastante, uns dizendo que Constâncio morreu em 421 e outros que foi em 422 ou 423. O mesmo ocorre com as datas da morte de Honório, da coroação de Valentiniano III, e de vários outros acontecimentos marcantes da época, mas acho que 423 é a data mais provável para a morte de Constâncio e 425 para a morte de Honório. Embora isso não mude a substância dos fatos, torna a sua sequência mais lógica.

       Honório era um imbecil que se ocupava mais com as aves do galinheiro do palácio do que com os negócios
                                                     do império. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Procurando fazer do filho menino imperador a todo custo, pois só assim poderia exercer diretamente o poder na qualidade de regente, começou a tratar Honório com desusadas e excessivas mostras de carinho, inclusive em público, e disso não gostou Johannes, importante ministro que contava com o sólido apoio do poderoso senador Castinus e desde a morte de Constâncio planejava ocupar o trono tão logo Honório fechasse os olhos. Assim, com intrigas e calúnias torpes, espalhou que Placídia mantinha relações incestuosas com o irmão e, face ao escândalo, conseguiu que o imbecilizado imperador a expulsasse da Itália e a mandasse para Constantinopla, onde viveria exilada e quieta na corte do seu sobrinho Teodósio II, imperador romano do Oriente.

A posterior marcha dos fatos mostra que Johannes fora apenas mais um a ser enganado pela aparência bela e gentil da imperatriz, pois jamais teria mexido com ela se suspeitasse que ao faze-lo teria contra si perigosíssima serpente. Por enquanto ele podia se rejubilar da sua indecente vitória, mas muito em breve sofreria nas mãos de Placídia o castigo mais atroz já aplicado a um imperador romano em toda a longa história do Império.

Em 424 ela chegou a Constantinopla com os dois filhos pequenos na humilhante condição de exilada, mas, tal como ocorrera na trágica morte de Ataulfo, não se abateu e decidiu dar a mais contundente e cabal volta por cima, pois, apesar de bem tratada, percebia na face de todos o desdém e a satisfação que a desgraça dos grandes produz naqueles que os invejam. Por enquanto, se limitaria ao papel de expectadora, mas logo entraria no jogo de forma arrasadora e coroaria, com a mais inesperada das vitórias e a mais terrível das vinganças, a sua implacável marcha para o poder absoluto.

A continuação deste post está no post nº 81: "Johannes - O Imperador que Desfilou como Palhaço Montado de Costas em um Burro Antes de Ser Executado".

quarta-feira, 28 de março de 2012

Post nº 56

ÁTILA  E  AÉCIO  PENSAM  SUAS  ESTRATÉGIAS  PARA  A  BATALHA  DOS  CAMPOS  CATALÚNICOS


A batalha dos Campos Catalúnicos foi decisiva para a Civilização Ocidental no apagar das luzes
do Império Romano. Ilustração feita sob direção do autor.


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Não é lícito ao historiador distorcer fatos para lhes dar feição que lhe convém, mas é lícito especular sobre as motivações que fizeram os personagens agirem da forma como agiram. Sempre intrigou aos estudiosos a razão pela qual Átila não esperou Aécio para lhe dar batalha em Orleans, preferindo retirar-se para o Leste como se estivesse fugindo após desistir da conquista da Gália. Ainda mais intrigante é ele ter acampado perto da vila de Chalons e após fazer minucioso reconhecimento de campo dispor seu exército em formação de batalha e esperar Aécio tranquilamente. Por fim há que se perguntar por que Átila perdeu a batalha estando descansado e tendo escolhido hora, lugar e posições de combate.

Isto torna interessante especular sobre o que deve ter se passado na cabeça dos dois líderes, começando por Aécio após fazer junção com os exércitos de Teodorico e Meroveu. As evidências são que ele deve ter pensado alto para os seus camaradas: “Marcharemos em formação de flecha com os romanos à frente, os Francos e Burgundos no meio e os Visigodos atrás. Bem próximo a Orleans descansaremos e ao amanhecer formaremos um arco invertido, avançando como alguém de braços abertos que vai abraçar outro alguém. O faremos tendo os francos mais adiantados em diagonal à direita, os visigodos mais adiantados em diagonal à esquerda e os romanos alinhados em linha reta no centro. Encurralaremos o inimigo contra as poderosas muralhas de Orleans, do alto das quais os defensores da cidade os crivarão de flechas pela retaguarda. E será uma vez Átila”!

Mas tendo Átila e Aécio sido amigos e aliados por muitos anos, é razoável supor que um soubesse como o outro pensava. Assim, na tarde em que recebeu a notícia de que os aliados estavam a um dia e uma noite de marcha, Átila deve ter previsto a estratégia de Aécio e traçado a sua própria: “Aécio acha que me pegará aqui num abraço fatal, mas serei eu quem o pegará! Levantarei o cerco e me retirarei para o Leste como se fugisse, fazendo-o pensar que desisti da Gália e estou voltando ao meu Reino. Ele me seguirá a uma distância segura até que eu atravesse o Reno e depois se gabará de ter me enxotado, cobrindo-se de glórias. Isto é o que ele pensa, mas antes que ele me jante eu o almoçarei. Tudo que a velha raposa vai conseguir será uma inesperada batalha e uma fragorosa derrota no meio do caminho, pois ocorrerá no lugar, hora e posições que eu escolher”!

Átila em versão romantizada que o retrata como príncipe
oriental. Gravura de Fredrik Sander (1893)
        
Após o anoitecer, Átila deve ter ordenado ao seu exército preparar-se para a retirada e partiu ao primeiro cantar do galo. Ao raiar do sol os defensores de Orleans viram com surpresa que o demoníaco Flagelo de Deus resolvera fazer o caminho de volta ao seu reino na Europa Central onde hoje é a Hungria e no final da tarde receberam os aliados com grandes festas, fazendo Aécio pensar como Átila previra. No dia seguinte foi no seu encalço procurando manter a segura distância de um dia e uma noite entre perseguidos e perseguidores, conforme acertado com Meroveu e Teodorico, pois os três deviam pensar o mesmo: “enxotaremos Átila sem luta e nos cobriremos de glória”!

Tudo estava se passando como Átila planejara, mas Aécio deve ter achado que algo estava errado, pois o Átila que ele conhecia há décadas era homem de atacar e não de recuar, por isso, além dos batedores habituais que ficavam a uma distância razoável da retaguarda inimiga, deve ter mandado também espiões germânicos de suas hostes infiltrarem-se nas hostes germânicas de Átila, pois dois ou três dias após iniciada a perseguição sob o sol abrasador do mês de julho recebeu a surpreendente notícia de que no dia anterior os hunos tinham acampado perto da vila de Chalons-sur-Marne em um local chamado Campos Catalúnicos. Seus esbaforidos espiões e batedores relataram ter visto Átila e seus generais percorrendo com atenção o vasto campo e fixando marcos em diversos lugares até o cair da noite. Pela manhã as tropas tinham sido distribuídas pelos lugares marcados e postas em formação de batalha, mas após Átila lhes dar instruções ficaram à vontade e agora descansavam tranquilamente em suas posições debaixo de toldos. Os hunos estavam a apenas três horas de marcha e se os aliados avançassem agora os pegariam dormitando no meio da tarde escaldante. Tudo indica que Aécio raciocinou que era isso o que Átila queria e viu que a “retirada” tinha sido uma farsa para atraí-lo a uma armadilha fatal: travar uma batalha decisiva em lugar, dia e hora escolhidos pelo inimigo!

Tal situação é um pesadelo para qualquer líder militar e é provável que Aécio rapidamente tenha concluído com frieza: “O lugar eu não posso mudar, mas o dia e a hora eu posso. Não lutarei hoje cansado sob o calor abrasador do sol como Átila quer: lutarei amanhã descansado na fresca temperatura do amanhecer como eu quero”!

Impérios do Século V: ROXO-Huno; MARRON-Romano Oriental; VERDE-Ostrogodo; VERMELHO-Romano Ocidental; AMARELO-Visigodo; LARANJA-Vândalo

Átila também tinha batedores na vanguarda e na retaguarda, portanto sabia a distância que o separava de Aécio e calculara que o ataque se daria no meio da tarde. Assim, bem antes da hora prevista para a chegada de Aécio, deve ter posto seus homens em formação de batalha e esperado em vão pelo inimigo durante horas sob o sol escaldante do verão. Certamente ficou furioso quando o dia chegou ao fim sem sinal dos aliados e teve que desmanchar suas mal humoradas formações de combate, sabendo que teria de fazer tudo de novo ao amanhecer. Aécio e os seus generais devem ter se divertido especulando sobre o tamanho da irritação de Átila na véspera da grande batalha.

Não há como saber o que os dois grandes chefes militares pensaram, mas dadas as circunstâncias não deve ter sido muito diferente das hipóteses aqui sugeridas. De qualquer forma o desafio fora lançado e as cartas estavam na mesa. O dia seguinte diria quem acertara e quem errara.

Nihil in mora habere quominus

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Post nº 55

SALADINO  -  O  MAIS  CAVALHEIRESCO   PRÍNCIPE  GUERREIRO  DA
 IDADE  MÉDIA
            
O sultão Saladino à frente das suas tropas - Cena do filme "Kingdom of Heaven"  (Cruzada)



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Salah Al Dihn (Saladino) nasceu no Kurdistão na primeira metade do século XII e ainda jovem foi servir como soldado na corte do Sultão de Damasco, Nurah Al Dihn (Nuraldin), onde o seu pai Ayub ocupava alta posição. Graças ao prestígio da sua família, logo chegou ao oficialato e seus talentos políticos e guerreiros o tornaram popular general em pouco tempo. Ao contrário do mundo cristão ocidental, onde o Papa centralizava o poder espiritual e o Sagrado Imperador Romano exercia a primazia política, o mundo muçulmano era fragmentado em vários Califados e Sultanatos. Os principais Califas, supremas autoridades religiosas, eram os de Córdoba na Espanha, Cairo no Egito, e Bagdá no então território do Império Persa. Por sua vez, os principais sultanatos eram os da Espanha, Pérsia e Síria. Dos três grandes, este era o mais fraco, porque meio século antes perdera para os cristãos católicos da I Cruzada a importante província da Palestina, onde estava situada Jerusalém, uma das mais sagradas cidades do Islã.

Após um dos piores massacres de muçulmanos, judeus e cristãos ortodoxos da história, os cruzados a fizeram capital do seu reino na Terra Santa e, para suprema humilhação do Islã e das outras religiões, não só proibiram os seus cultos, mas também transformaram a igreja ortodoxa-grega do Santo Sepulcro em igreja católica-romana e profanaram a majestosa mesquita de Al Akhsa (Mesquita da Rocha), erguida onde se supunha ter Maomé subido ao Céu, fazendo dela igualmente templo católico-romano. Porém isto até que foi bom, pois preservou o magnífico edifício, já que o primeiro impulso dos cruzados fora destruí-lo.

A chegada dos cruzados a Jerusalém em 1099 resultou em terrível banho
de sangue. Quadro de Francesco Hayez (séc. XIX)

O lamentável fato era um espinho atravessado na garganta dos muçulmanos e uma afronta direta ao sultanato de Damasco, que perdera Jerusalém por incompetência e não conseguira reconquistá-la. Com o passar do tempo, a Palestina se tornara um poderoso reino cristão ligado à Igreja Católica Romana (a Igreja Ortodoxa Grega, com sede em Constantinopla, não apoiou as Cruzadas) e agora ia muito além dos seus antigos limites, abarcando vastos territórios dos atuais Líbano e Síria, onde os cruzados ergueram majestosas fortalezas.

Nos anos 1130 e início dos anos 1140, os muçulmanos desfecharam grandes ofensivas contra os conquistadores cristãos católicos e obtiveram significativas vitórias, chegando a ameaçar o Reino de Jerusalém, mas foram contidos pela II Cruzada pregada por São Bernardo de Claraval e comandada pelo rei Luis VII de França. Este, acompanhado da mulher Eleanor da Aquitânia, fez brilhante campanha até ser derrotado pelo sultão Nuraldin em 1149 e ver-se obrigado a regressar a França, encerrando assim a II Cruzada.

Louis VII e Eleanor D'Aquitaine são recebidos em Antióquia pelo conde Raymond de Poitiers
na II Cruzada. Tela de Jeam Colombe e Sebastien Mermerot (séc. XIV) 

Mas, bem vistas as coisas, a II Cruzada não foi um total fracasso apesar da sua derrota no campo de batalha, pois as grandes perdas infligidas aos muçulmanos os enfraqueceu, obrigando-os a encerrarem a vigorosa campanha desfechada alguns anos antes por Nuraldin visando a reconquista de Jerusalém. Em consequência das vultosas perdas, a cidade sagrada ficaria em mãos ocidentais ainda por várias décadas, até que Saladino finalmente a retomasse. Enquanto isso não ocorresse, o sultanato de Damasco, presuntivo senhor da região, gozaria de pouco prestígio e enfrentaria sérios conflitos internos, sobretudo no Egito, pois o novo Califa do Cairo ansiava por criar um Sultanato que lhe seguisse às ordens em seu país, sem qualquer ligação com a desmoralizada Damasco. Uma grande rebelião fora duramente reprimida e só o terror mantinha o Egito submisso à autoridade do odiado emir que governava a província.

A conquista de Jerusalém pelos cruzados em 1099 desmoralizara e enfraquecera o
sultanato de Damasco. Quadro de Claude Jacquand (séc. XIX)
         
Ciente de que a qualquer momento poderia explodir nova rebelião, o sultão resolveu substituí-lo por um outro mais hábil que pudesse relacionar-se bem com o Califa e apaziguar os ânimos exaltados. A escolha recaiu em Saladino e ele não decepcionou: em pouco tempo tornou-se amigo do Califa e querido do povo, a ponto de começarem a falar dele como novo sultão do Egito. Isto enfureceu Damasco, que tentou removê-lo chamando-o de volta para “consultas”, mas na verdade para assassiná-lo. A essa altura ele já tinha bom serviço de informações que o punha a par de tudo e esquivou-se habilmente, inventando “problemas” que o impediam de viajar. Ao mesmo tempo mandava relatórios acompanhados de valiosos presentes, ótimos tributos e ardentes juras de lealdade.

Bom administrador, Saladino incentivava o comércio, mas cruzados salteadores, como o barão Reynaud de
Chatillon, roubavam e matavam os mercadores. Quadro de David Roberts (séc. XIX)

Quando o velho sultão finalmente morreu, Saladino proclamou-se seu sucessor e tomou o poder, não sem antes enfrentar árduas lutas, traiçoeiras conspirações e tentativas de assassinato. Após reorganizar o exército, a administração e as finanças do vasto, porém anarquizado e enfraquecido sultanato, ele sentiu-se firme no trono e partiu para implementar o seu grande projeto: a reconquista de Jerusalém!

O rei da Palestina era Balduíno IV, um homem decente cercado de barões cruéis e gananciosos que se preocupavam pouco com religião e muito com saques e exploração dos seus feudos. A rivalidade imperava e a desunião, que antes de Saladino era o ponto fraco dos muçulmanos, tornara-se o ponto fraco dos cruzados. Quando ele deu início à guerra de reconquista, Balduíno tentou negociar, mas a arrogância dos seus barões e dos cavaleiros das ordens religiosas combatentes, especialmente dos Templários, espinha dorsal do exército cruzado, foi mais forte e o obrigou à guerra. Com grande competência,  Balduíno mobilizou poderosas tropas e esmagou Saladino em 1177 na grande batalha de Montgisard.

O rei Balduíno de Jerusalém derrota o sultão Saladino de Damasco na grande batalha
de Montgisard (1177). Tela de Charles Phillipe Arivière (séc. XIX)

O exército de Saladino praticamente se desintegrou e ele voltou humilhado a Damasco para recomeçar do princípio. Aproveitando-se da desunião entre os adversários, pôs ordem em seus Estados, restaurou suas finanças, e só retomou a ofensiva após promover profunda reorganização do seu exército. Ao contrário da precipitação com que agira antes, muniu-se de paciência e, metodicamente, cuidou primeiro de eliminar todos os enclaves inimigos na Síria, para só retomar a ofensiva após ter a retaguarda segura e contar com todos os recursos necessários à grande empreitada.

Um a um eliminou os enclaves menores e, finalmente, atacou o grande castelo cruzado de Bahit Al Ahzan (Jacob's Ford Castle) em território hoje pertencente à Jordânia. A enorme fortaleza, considerada inexpugnável e situada numa posição de extraordinária importância estratégica próxima a Damasco, ficava numa íngreme elevação às margens do riacho Jacob e era defendida por aguerrida guarnição de oitocentos Cavaleiros Templários, mas Saladino a atacou  com inexcedível bravura e a tomou em 1179, antes que o exército mandado em seu socorro por Balduíno IV chegasse. A guerra movida pelos cruzados desconhecia a palavra "piedade", e Saladino decapitou todos os prisioneiros em represália aos inúmeros massacres de muçulmanos por eles feitos até então.

Os cruzados agiam com extremo fanatismo e crueldade, fazendo Saladino pagar-lhes na mesma moeda

A crueldade era uma constante de lado a lado e a confusão reinava entre os cruzados, pois quem mandava por trás do trono de Jerusalém era a princesa Sibila, irmã do rei enfermo e casada com o barão Guy de Luisignan, de quem vivia praticamente separada. A alta nobreza do reino de Jerusalém era toda francesa, ou de origem francesa, de sorte que a cultura, o direito e os costumes nele imperantes eram idênticos aos da França, nada tendo a ver com os seus correlatos da Ásia Menor, mesmo aqueles dos cristãos nativos. Estes pertenciam à Igreja Ortodoxa Grega e recusavam a autoridade do Papa, líder espiritual dos católicos, sendo por estes vistos como inimigos tão ou mais perigosos que os muçulmanos. Por isso os Cruzados, soldados do Papa, jogavam sobre os cristãos nativos a pecha de "heréticos" e os perseguiam duramente.

Na primeira cruzada houve horrível massacre de muçulmanos e judeus no monte do Templo onde eles tinham
se refugiado, gerando enorme ódio aos cruzados. Quadro de Francesco Hayez (séc. XIX)

O resultado dessa política fanática e intolerante era o enorme isolamento do Reino de Jerusalém, fruto exótico que sobrevivia em terra estranha devido tão somente à desunião dos muçulmanos e ao constante influxo de guerreiros, sacerdotes e aventureiros que chegavam todos os dias da Europa católica. Sem contar sequer com o apoio dos cristãos ortodoxos nativos, a corte de Balduíno e Sibila nada mais era que uma típica corte francesa, com todas as suas intrigas, torpezas e costumes dissolutos, perfeitamente naturais para os cristãos católicos, mas absolutamente escandalosos para os cristãos ortodoxos e a população local, os quais consideravam os "francos", como eram chamados os cruzados, a personificação da mais "diabólica indecência". Fato é que, para o bem ou para o mal nesse ambiente moralmente relaxado, Sibila exercia com mestria o seu papel de mulher poderosa e mantinha sob seu controle político os brutais nobres francos tanto quanto lhe era possível.

Sibila era prima de Ricardo Coração de Leão e governava Jerusalém por trás
do trono do seu irmão enfermo. Cena do filme "Kingdom of Heaven"

Apesar de hábil, valente e astuta, ela não tinha como se impor militarmente aos barões e aos cavaleiros das ordens guerreiras, seja porque não tinha competência militar, seja porque homens brutais não obedeceriam ao comando de uma mulher. Assim, contentava-se em exercer o poder político, flertando hora com um, hora com outro, para grande frustração do seu marido Guy de Lusignan, bravo guerreiro, mas pouco inteligente e de escassos méritos, que fazia de tudo para manter seu casamento de conveniência.

Enquanto isso, Saladino retomava a ofensiva e aos poucos ia conquistando um a um os castelos cruzados na Síria, buscando limpar o terreno em suas vizinhanças e garantir a sua retaguarda até sentir-se bastante forte para lançar-se sobre Jerusalém. Antes que estivesse completamente preparado, contentar-se-ia em manter o adversário em xeque e vigiaria todos os seus passos.

Os espiões de Saladino vigiaram cada passo dos cruzados até os seus exércitos se
lançarem à batalha final. Gravura de Gustavo Doré (séc. XIX)
         
Tudo indicava que Saladino reconquistaria Jerusalém em breve, mas a discórdia irrompera também no seu lado e ele teve de suspender as operações militares para cuidar dos graves problemas internos. Devido à sua continuada ausência da Corte por conta da guerra, a intriga e a corrupção lavravam e o povo, asfixiado pelos altos impostos e constante recrutamento de tropas, dava ouvidos a aventureiros que buscavam mais as benesses do poder do que as agruras das "guerras santas". As sérias dificuldades de ambos os lados causaram um armistício não declarado, durante o qual Saladino e Balduíno negociaram bastante. Sentindo o pouco entusiasmo do povo pela “jihad”, o sultão decidiu contentar-se em obter do rei o livre trânsito dos seguidores de todas as religiões e o livre culto delas na Palestina, mas para isso era essencial que a Mesquita da Rocha fosse devolvida aos muçulmanos, a igreja do Santo Sepulcro aos cristãos ortodoxos, e o muro das lamentações aos judeus.

Com isso não concordou o fanático clero católico, e as negociações foram suspensas quando o sórdido barão Reynaud de Chatillon saqueou e massacrou várias caravanas de pacíficos mercadores, forçando Balduíno a por Reynaud fora da lei e decretar sua prisão, ao mesmo tempo em que pedia perdão a Saladino pela atrocidade do seu súdito infame. Este se refugiou em um castelo dos Cavaleiros Templários e Saladino o atacou em vão, pois não havia como superar as suas poderosas defesas com as poucas tropas de que dispunha na ocasião. Ainda às voltas com graves problemas internos, decidiu levantar o inútil cerco e ficar quieto após aceitar as desculpas do rei. A vingança ficaria para mais tarde.

Em julho de 1187 Saladino esmagaria os cruzados na decisiva batalha de Hattin
e conquistaria Jerusalém. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
          
Em 1185 o decente Balduíno morreu e o seu sobrinho de apenas oito anos o sucedeu, mas viveu pouco e Sibila se fez coroar raínha de Jerusalém. Todavia os barões não queriam ser governados pelo medíocre Guy de Lusignan e a anarquia imperou, até que Sibila finalmente conseguiu convencer os barões a aceitarem o seu marido como rei. Isto fez com que Saladino tentasse recomeçar as negociações, pois achava que o novo rei, por ser guerreiro experimentado, teria mais condições de superar os entraves postos pelo clero católico. Mas enganou-se. Guy era da mesma laia de Reynaud e queria reconquistar o que Balduíno perdera. Sabendo das dificuldades do seu oponente, decidiu recomeçar a guerra e travaram-se combates mortíferos com vitórias e derrotas para ambos os lados.

Os famosos cavaleiros mamluks do Egito eram o batalhão de choque do exército
de Saladino. Gravura de Felicien de Myrbach-Rheinfeld (1806)

Mas agora os líderes muçulmanos estavam unidos, e em 4 de julho de 1187 Saladino venceu a decisiva batalha de Hattin, aprisionando e executando pessoalmente o sórdido barão Reynaud de Chatillon pelas inúmeras torpezas cometidas contra muçulmanos civis desarmados. Mas poupou a vida do rei Guy de Lusignan, mantendo-o prisioneiro para futuras negociações. A indignação dos vencedores com os ultrajes praticados pelos cruzados durante décadas chegara ao máximo e prevaleceu o sentimento pouco nobre da vingança. A enorme cruz levada por eles à frente do seu exército foi queimada, e os cruéis cavaleiros das Ordens religiosas militares, principais responsáveis pelas matanças e profanações, foram decapitados perante o sultão vitorioso, tal como ocorrera em Bahit Al Azhan.

Saladino decapitou pessoalmente o sórdido barão Reynaud de Chatillon. Iluminura medieval (séc. XIV)

Apesar das perdas sofridas, ele decidiu reconquistar de vez Jerusalém, cuja defesa fora assumida pelo barão Balian D’Ibelin, um dos poucos generais cruzados que lograra escapar da matança em Hattin. Quase sem tropas, o valoroso Balian mobilizou todos os católicos válidos e opôs valente resistência aos atacantes, mas, vendo que prolongar a batalha seria mero desperdício de vidas, mandou emissários a Saladino pedindo-lhe salvo conduto para retirar-se com os que quisessem acompanhá-lo. Caso não fosse atendido mataria os muçulmanos que ainda viviam na cidade, apesar de proibidos de praticarem a sua religião, e destruiria a Mesquita da Rocha, mas se o sultão concordasse ele deporia as armas e lhe entregaria a salvo a cidade, os lugares santos e a população civil.

A religião islâmica proíbe escultura de pessoas e animais, mas abriu
exceção para a bela estátua equestre de Saladino em Damasco
         
Balian era importante aristocrata que quando jovem fora pretendente de Sibila e prisioneiro de Saladino. Solto mediante resgate, como era de hábito entre os nobres, durante anos tivera papel de relevo na política da Palestina e lutara bravamente na malfadada batalha de Hattin. Fora um dos poucos altos cavaleiros sobreviventes que conseguira voltar a Jerusalém e por isso a rainha, sua antiga pretendida, lhe entregou o comando da defesa da cidade. O sultão o conhecia bem e não tinha queixas dele, tendo admirado bastante a sua bravura na defesa sem esperanças, por isso considerou a atroz ameaça justificável diante da desesperadora situação dos sitiados e não se ofendeu. Embora tenaz e implacável, Saladino era cavalheiresco e só derramava sangue quando necessário, por isso aquiesceu à chantagem, e não só aceitou poupar as vidas dos sacerdotes e guerreiros católicos como lhes permitiu escolher entre continuar vivendo na cidade como servos ou irem até o porto mais próximo e embarcarem para onde quisessem. Todavia fixou pesados resgates para os católicos ricos, mas isentou os católicos pobres.

Belian sagrou cavaleiros todos os católicos válidos e resistiu. Só entregou Jerusalém ao ver que a luta
era inútil e obteve de Saladino generosos termos de rendição - Cena do filme "Cruzada" 

Porém, ao contrário do que se pensa, não foram todos os cristãos que escolheram retirar-se de Jerusalém, pois os cristãos ortodoxos, que não reconheciam a autoridade da Igreja de Roma e por esta eram considerados "heréticos", haviam sofrido horrores durante o domínio dos católicos, e preferiram ficar na cidade sob o governo mais tolerante dos muçulmanos, com os quais tinham convivido, sem maiores queixas, durante séculos antes da chegada dos ferozes exércitos cruzados.

Saladino garantiu aos católicos saírem incólumes de Jerusalém. Gravura
de Alpnhonse-Marie-Adolphe de Neuville (séc. XIX)

Demonstrando a grandeza do seu caráter, Saladino deu aos católicos que se retiravam um batalhão para escoltá-los até o porto mais próximo, protegendo-os da fúria das massas islâmicas, judaicas e cristãs ortodoxas, ansiosas por vingarem-se das muitas décadas de tirania e humilhação. Após a procissão liderada por Balian e Sibila desfilar diante do seu trono armado sob uma tenda em lugar elevado e distanciar-se no horizonte, ele entrou em Jerusalém no dia 2 de outubro de 1187 sob enorme ovação do povo e do exército. Saladino atingira o objetivo da sua vida e chegara ao apogeu da sua carreira, mas um novo capítulo de memoráveis batalhas ainda o esperava.

Ricardo Coração de Leão em breve desembarcaria na Terra Santa à frente dos exércitos da III Cruzada!    

               

sábado, 21 de janeiro de 2012

Post nº 54

A  CAVALARIA  MEDIEVAL  E  O  NASCIMENTO
DO  GÊNERO  LITERÁRIO  "ROMANCE"

"Cavaleiros recebem das damas suas armas antes de partirem para suas heroicas
aventuras". Tapeçaria de Edward Burne Jones (séc. XIX)


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Após as grandes invasões bárbaras e o fim do Império Romano do Ocidente no século V, houve na Europa longo período de acomodação que durou cerca de trezentos anos, chamado “Alta Idade Média”. Ela caracterizou-se pelo desaparecimento do Estado como ente jurídico dono do poder criador da lei, e da Nação como ente social dono da soberania criadora do Estado, predominando a tradição no lugar do primeiro e o tribalismo no lugar do segundo. A destruição das instituições imperiais criou enorme vácuo de poder e intensa fragmentação territorial prejudiciais à troca de mercadorias e idéias, o que resultou em imenso retrocesso social, econômico e cultural. No final do século VII, comércio, artes, escolas e livros tinham praticamente desaparecido, e se não fosse pelas livrarias dos mosteiros cristãos, pois apenas os sacerdotes sabiam ler e escrever, todo o enorme legado cultural da antiguidade teria desaparecido no Ocidente.

Após três séculos de escuridão a Europa começa a renascer no século VIII e o imperador Charlemagne troca
embaixadas com o califa Harum Al-Rashid de Bagdad. Tela de Julius Köckert (1864)

Uma grande letargia parecia ter se apoderado da Europa quando no século VIII foi ela acordada pela avassaladora Onda Islâmica que no século anterior varrera o Oriente Próximo e a África do Norte. A “Invasão Árabe” da Península Ibérica ocorreu quase sem luta, não só porque os senhores cristãos ortodoxos locais não tinham poder nem coesão para se opor, como porque os “árabes invasores” eram descendentes dos vândalos cristãos arianos que três séculos antes tinham emigrado da Espanha para o norte da África, onde construíram poderoso império e depois se converteram ao Islamismo devido à intensa hostilidade e perseguição dos cristãos ortodoxos. Era, portanto, mais uma “volta” que uma “invasão” e eles foram bem recebidos pelos primos que tinham ficado e sido obrigados a adotar o cristianismo ortodoxo. Não é por acaso que o ponto escolhido para a “invasão” tenha sido a Vandaluzia (Terra dos Vândalos), hoje chamada de Andaluzia.

Orlando será celebrado como o maior de todos os cavaleiros medievais.
Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Embora poemas populares em forma oral celebrando os feitos dos heróis sempre tenham existido e na época das invasões islâmicas poemas celebrando as aventuras do mítico rei Arthur e seus cavaleiros já circulassem na Europa, eles tomaram grande impulso depois dessas invasões para celebrar os feitos de valorosos cavaleiros cristãos nas lutas contra "pérfidos cavaleiros muçulmanos".
  
Orlando é tema da primeira obra-prima literária da Idade Média: o
poema "Chanson de Rolland". Iluminura medieval

O mais famoso desses heróis foi Rolland, conhecido em português como Orlando, bravo oficial do imperador Charlemagne que se tornara legendário após sua morte em batalha nos Pirineus contra cristãos bascos. O fato se passou durante guerra movida por Charlemagne contra os bascos, povo cristão do norte da Espanha, mas a lenda a transformou em "guerra contra os árabes" e originou o poema épico Chanson de Rolland (Canção de Orlando), composto oralmente e transmitido de boca em boca durante trezentos anos até ser posto em livro no século XII ao se iniciarem as cruzadas, certamente como peça de propaganda delas. O imediato sucesso do poema abriu caminho para obras em prosa sobre bravos cavaleiros, as quais constituiriam o gênero Romance de Cavalaria e de Amor Cortês ao serem temperadas com altas doses de paixão e fantasia.

No poema medieval "Orlando Furioso", de Ariosto, o cavaleiro Rogério em seu cavalo-pássaro salva a
princesa Angélica do dragão marinho. Tela de Jean Auguste Baptiste Ingres (1819)

Porém, bem antes de Charlemagne e dos seu famosos cavaleiros conhecidos como Os Doze Pares de França, mais da metade da Espanha caiu rapidamente em poder dos muçulmanos e eles se dirigiram à França, coração da Europa, onde foram derrotados na batalha de Poitiers pela coalizão formada por Carlos Martel, líder dos francos.

Apesar das lendas é pouco provável que Charlemagne e Roland tenham lutado contra os sarracenos. Suas lutas foram contra os europeus cristãos ou pagãos que recusavam o domínio dos francos. Iluminura medieval  

Com a derrota, os muçulmanos voltaram à Espanha, mas o fragor da batalha acordou a Europa e os príncipes francos, assustados com possíveis novas invasões, aceitaram Carlos Martel como chefe capaz de repeli-las. A sua liderança virou suserania e os liderados tornaram-se seus vassalos, o que permitiu mais tarde a unificação da antiga Gália em poderoso reino com o nome de “França” (país dos francos).

O combate com cristãos suevos no século VIII onde Rolland pereceu foi mudado no século XII para combate
com muçulmanos árabes por conta das Cruzadas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX) 

A França adquiriu características de verdadeiro Estado quando algumas décadas depois o seu novo rei Charlemagne, neto de Carlos Martel, além da França dominou também toda a Germania e foi coroado “Imperador Romano” pelo Papa na basílica de São Pedro em Roma. Em consequência, os muitos príncipes vassalos ou aliados deram aos seus domínios toscas instituições auridas do Direito Canônico de origem romana e o novo "Império Carolíngio" surgiu das cinzas do antigo Império Romano do Ocidente, abolido há mais de trezentos anos. Com a volta da Lei escrita e da autoridade forte, o sistema feudal se solidificou, o comércio renasceu e o estudo readquiriu importância pela pena dos burocratas e dos legistas, possibilitando no século XI a fundação da Universidade de Bolonha, mãe das que surgiriam depois. É no final desse século que se iniciam As Cruzadas, fenômeno que causará a “Primeira Renascença” e a criação do gênero literário “Romance”.

A bravura feminina está no romance medieval. No poema Jerusalém Libertada a guerreira
islâmica Clorinda salva os amigos Sofronia e Olindo. Tela de Delacroix (séc. XIX)
          
Embora a Cavalaria Medieval tenha surgido no reinado de Charlemagne, ela só viria a ter crucial importância militar e social com o surgimento das Ordens Religiosas Guerreiras, criadas para combater os muçulmanos durante as Cruzadas. Sobretudo porque os seus membros ao invés de terem título de Frei tinham título de Cavaleiro e, como só os nobres dispunham de tempo e dinheiro para gastar com cavalos e auxiliares para cuidá-los, ser Cavaleiro era privilégio da nobreza. Plebeu somente entrava nas Ordens Militares como auxiliar, geralmente como faxineiro e cozinheiro. Entrar como escriturário ou almoxarife só se tivesse instrução, e como escudeiro, posto reservado ao plebeu com experiência militar e no trato de cavalos, só se fosse bom combatente de infantaria. Se no correr do tempo ele mostrasse valentia, lealdade e muita fé religiosa, podia ser sagrado Cavaleiro pelo seu mestre depois de ouvidos os demais cavaleiros.
  
Enquanto repousa em bosques remotos das lutas do dia o cavaleiro sonha
com a sua dama. Tela de Henry Meynell Rhean (séc. XIX) 

Logo o crescimento do poder, riqueza e prestígio das Ordens Militares estendeu-se não só aos seus cavaleiros, mas a todo e qualquer cavaleiro leigo, agrupados pelos seus monarcas em nobres ordens de cavalaria laica destinadas a servi-los em suas campanhas. Dessa forma a Nobre Ordem da Cavalaria tornou-se ao mesmo tempo instituição militar e social, cujos belos uniformes e feitos heróicos dominaram o imaginário popular, gerando infinidade de lendas, poemas e contos que corriam de boca em boca, criando em torno dela toda uma aura de admiração e respeito.
 
Castelos de sonhos e bravos cavaleiros buscando o ideal e o amor povoam o
imaginário do romance medieval. Tela de Martin Weygand (séc. XIX)

Após seiscentos anos de trevas a cultura começou a renascer e no século XII os mais famosos poemas populares, recitados oralmente durante séculos, adquiriram forma escrita para satisfazer o gosto literário de uma elite enriquecida pela enxurrada de mercadorias e conhecimentos trazidos do Oriente pelos cruzados e mercadores que os acompanhavam. Isto promoveu intenso movimento cultural no Ocidente a que se deu o nome de “1ª Renascença”, a qual se caracterizou pelas seguintes grandes realizações que marcaram nossa Civilização: as Catedrais Góticas, as Universidades, o Renascimento da Filosofia com Tomás de Aquino, o Renascimento da Pesquisa Científica com Rogério Bacon, o Renascimento do Direito com a “Escola dos Glosadores”, o Renascimento da Poesia com Dante e Petrarca, e, finalmente, a criação do Romance Moderno por Chrétien de Troys, criador do gênero literário Romance de Cavalaria e de Amor Cortês.
  
Lutar pelas damas e salvá-las de grandes perigos é a principal tarefa do cavaleiro no
romance medieval. Tela de William Hatherel (séc. XIX)
         
Digo romance moderno porque alguns acham que houve um romance antigo, representado por curtas estórias em versos de amores campestres a que chamavam Idílio. Este gênero literário foi criado pelo poeta grego Teócrito e muitos poetas o cultivaram não só na antiguidade como nas Idades Média e  Moderna, mas caiu em desuso e o último poema idílico a ser publicado foi a obra “Os Idílios do Rei”, de autoria do grande poeta inglês do século XIX Alfred Tennyson. Curiosamente, o poema de Tennyson é uma homenagem ao Romance de Cavalaria e de Amor Cortês da Idade Média, pois versa sobre as aventuras galantes do Rei Arthur e dos seus Cavaleiros da Távola Redonda.

A arrebatadora paixão por nobres e belas damas é o que motiva os bravos cavaleiros
em suas aventuras. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Porém o Idílio é do gênero poesia que não pode ser confundido com o romance ou novela, pois o que caracteriza este é ser uma estória longa em prosa sobre assunto não necessariamente romântico, razão por que os ingleses ao invés da palavra romance preferiram usar a palavra novel derivada do francês nouvelle para designar o novo gênero literário.

As nobres damas socializavam com os bravos cavaleiros e tórridos amores nasciam nas festas
da Corte e nos torneios. Tela de Herbert James Draper (séc. XIX)

Há até pouco tempo a grande maioria achava que não houvera verdadeiro romance na Antiguidade, apesar da estória curta em prosa ter sido bastante cultivada e constituído o gênero literário conto. Todavia, há menos de duzentos anos foi descoberto em um palimpseto texto surpreendente da autoria de um romano chamado Petrônio, a respeito de quem nada se sabe. Exaustivas análises do texto não só certificaram a sua excelente qualidade como também a suposição de ter sido o autor um rico aristocrata do século I, amigo e cortesão do imperador Nero. O livro chama-se Satyricon e contém todos os elementos do romance moderno, mas é também uma extraordinária crônica ficcional da qual se pode dizer ser o único valioso testemunho da ociosa vida dissipada, luxuosa e ostentosa das classes ricas no apogeu do Império Romano.

Em suas aventuras o cavaleiro medieval dos romances enfrentava todo tipo de perigos, incluindo
monstros e seres sobrenaturais. Tela de Ary Scheffer (séc. XIX)
             
Do mesmo modo a obra dá notável retrato da miséria e corrupção reinantes em suas classes baixas e é o terrível contraste entre os dois fatos que século e meio mais tarde produzirá à revolução ética do Cristianismo. O Satyricon, portanto, mostra a existência do gênero literário romance na Antiguidade e, embora não haja evidência de ter sido ele na época cultivado por outros autores, a notável exceção prova que houve pelo menos um!

Antes de entrar no torneio o cavaleiro recebia da sua dama o lenço símbolo
do amor de ambos. Tela de Edmund Leighton (séc. XIX)

Mas se a existência do romance antigo está sujeita a debates, tal não acontece com o romance moderno, pois não há dúvida de que o seu criador é Chrétien de Troys, que o construiu  focado nas aventuras e desventuras dos bravos Cavaleiros Medievais e das suas nobres damas, nele misturando todos os ingredientes de uma boa trama ficcional em prosa: bravura, paixão, lealdade, intriga e traição, tudo envolto num halo de mistério e fantasia onde o Cavaleiro assume o status de moderno herói cinematográfico. Como matéria-prima, Chrétien usa as Lendas Arturianas narradas em incontáveis poemas populares compostos anonimamente ao longo de quinhentos anos, alguns dos quais adquiriram forma escrita. Vários deles chegaram ao século XII e o erudito bispo Geoffrey of Monmouth transformou Arthur em personagem histórico real ao publicar em 1135 a História dos Reis da Inglaterra. O livro teve grande sucesso e várias outros surgiram relatando "a vida e proezas de Arthur e dos seus cavaleiros".
 
O romance de cavalaria e amor cortês cultiva as lendas arturianas. Tela "Mort
D'Arthur" (detalhe) de Edward Burne Jones (séc. XIX)

Em 1170 a fidalga Marie de France publicou uma coletânea de curtos poemas românticos chamados Laís, onde aborda a vida dos heróis pelo lado galante ao invés do histórico-guerreiro. A obra tocou o coração de pessoas cansadas de guerras e violências, sobretudo as nobres mulheres cultas, e o livro obteve também enorme sucesso, dando a Chrétien a ideia de fazer o mesmo em longas narrativas em prosa poética para divertir a sofisticada sociedade de sua época, enriquecida pelas Cruzadas e com o gosto literário apurado pelos poemas musicais dos Trovadores, também surgidos há pouco tempo para grande escândalo daqueles que consideravam a música profana pecaminosa.
 
A corte principesca era o cenário preferido para os amores e as intrigas do
romance medieval. Tela de Edmund Blair Leighton (séc. XIX)

Seu primeiro livro, Erec et Enid, teve sucesso ainda maior que os Laís e durante vinte anos ele explorou o filão que lhe deu fortuna e celebridade, morrendo rico e famoso no castelo de riquíssima condessa sua amante e fiel propagandista junto ao seu largo círculo de amigas, todas senhoras ricas ansiosas por românticas estórias de amor e aventuras, onde a emoção e a paixão de nobres damas e bravos cavaleiros se misturavam em perfeitas proporções com o fantástico e o maravilhoso. Vários escritores seguiram o exemplo de Chrètien e a Europa foi inundada com romances de cavalaria e de amor cortês, avidamente disputados pelo público leitor abastado que podia se dar ao luxo de comprar livros e sonhar acordado.

Tancredo mata Clorinda por engano no poema Jerusalém Libertada e faz até os anjos chorarem enquanto desesperadamente tenta salvá-la. Tela de Louis Jean François Langrenee (séc. XVIII)

Porém, como um último tributo aos grandes poetas da antiguidade, as obras-primas do gênero romance de cavalaria e de amor cortês não foram as narrativas em prosa a que chamamos de romance, mas narrativas em versos publicadas no final e no pós Idade Média a que chamamos de poema épico. O primeiro foi o poema Orlando Furioso, escrito pelo poeta Ariosto no século XV, e o segundo foi o poema Jerusalém Libertada do poeta Torquato Tasso, escrito no século XVI. Referidas obras tornaram-se clássicos da literatura universal e seus vários episódios celebrando os amores de damas e cavaleiros são os melhores que o romantismo medieval produziu, pois neles o lírico e o trágico se casam de maneira perfeita, prendendo a atenção e produzindo no leitor o mais intenso deleite e encantamento.

No poema Jerusalém Libertada a princesa islâmica Armida pratica as artes mágicas
e seduz o cavaleiro cristão Rinaldo. Tela de Tiepollo (séc. XVIII)

Ainda hoje é isto que sucede quando lemos uma boa trama de amor e aventuras, mostrando o mágico fascínio que o romance, em suas mais diferentes formas e categorias, exerce sobre as pessoas, a ponto de continuar sendo o mais popular e requisitado de todos os gêneros literários dos últimos séculos.