segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Post nº 59

LEGIÃO  ROMANA  -  O  MELHOR  EXÉRCITO  DE  TODOS  OS  TEMPOS

As legiões romanas também sofreram graves derrotas, como na batalha de
Tautenburgo (9 DC), mas estas foram poucas e se deveram basicamente
à incompetência do general comandante

Embora não fossem imunes a eventuais derrotas, as legiões romanas foram as maiores
colecionadoras de vitórias de todos os tempos


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Na história dos Impérios nenhum foi tão duradouro e tão extenso em relação ao mundo conhecido da sua época quanto o Império Romano. Tampouco outro marcou ou influenciou tanto a História da Civilização quanto ele, a ponto de podermos afirmar que passados 1.600 anos ainda vivemos cultural e espiritualmente à sua sombra, pois todas as nossas instituições políticas, administrativas e religiosas, assim como muitas outras menos importantes, descendem diretamente dele. A mais visível é o Papa em Roma dando a sua bênção semanal URBI ET ORBI na enorme Praça de São Pedro!

As causas do seu surgimento, duração e sucesso têm sido objeto de acurados estudos desde que a moderna historiografia foi criada no século XVIII, mas entre todas as apontadas três se destacam: a organização jurídica da sociedade, a organização administrativa do Estado e a organização militar do Exército; em resumo: o Direito, o Estado e o Exército! Sobre este faremos uma breve descrição e teceremos algumas considerações sem qualquer pretensão acadêmica, visando tão somente dar ao leitor uma idéia da máquina de guerra que durante meio milênio assegurou a uma cidade de modesta origem no interior da Itália o domínio ou influência sobre três quartos do mundo conhecido no seu tempo.

O Império Romano em sua máxima extensão durante o governo do imperador Trajano - século II DC

Ao primeiro exame, o Império de Roma surpreende por sua enorme extensão: das praias de Portugal no oceano Atlântico às praias da Turquia no mar Negro; do estreito de Gibraltar no Marrocos às praias do mar Vermelho no Egito; da nascente do rio Tâmisa na Inglaterra à foz do rio Eufrates no Iraque; das florestas do alto rio Danúbio às areias do deserto da Mauritânia; da foz do rio Reno às cataratas do rio Nilo, sendo de notar que na época do imperador Trajano (início do século II DC) ele foi ainda mais longe, chegando às praias do mar Cáspio e do golfo Pérsico no oceano Índico. Porém, mesmo depois que o imperador Adriano o fez recuar para suas fronteiras vigentes no século I DC, o Império era enorme unidade política que tinha o mar Mediterrâneo como lago interior e da qual faziam parte todas as nações civilizadas da Europa, África do Norte e Oriente Próximo! A pergunta que se impõe, portanto, é: como pôde uma imensa parcela da superfície terrestre, que os mapas atuais mostram abranger dezenas de países, com povos, línguas e culturas diferentes, ser submetida durante séculos à autoridade de uma cidade do interior da Itália, por maior e mais próspera que ela fosse, sobretudo quando se sabe que era menor e menos próspera que outras cidades da sua época, como Cartago e Alexandria por exemplo?

As legiões tinham número, nome e estandartes próprios. A XX Legião "Valeria Victrix"
                 tinha por símbolo o javali e ficou três séculos aquartelada na Britannia

O Estado Romano e sua sabedoria política têm papel fundamental na ocorrência e durabilidade do fenômeno, mas deste sequer poder-se-ia cogitar se não fora por seu Exército. A primeira coisa que nele chama a atenção é o fato de ter surgido como um exército voluntário de cidadãos, tal como ocorria com os exércitos das cidades gregas. Cada adolescente romano era desde cedo educado não só no entranhado amor à pátria e às suas instituições como nas artes marciais, de forma que ao tornar-se adulto era um soldado treinado que dispunha dos seus próprios apetrechos de guerra e já ia armado dos pés à cabeça atender ao chamado dos seus maiores para a guerra. Passada a tempestade, o soldado guardava suas armas em casa e voltava às atividades habituais da sua vida civil. Tal sistema funcionou bem durante séculos enquanto as guerras eram com cidades rivais da Península Itálica e exigiam apenas meia dúzia de milhares de homens, mas quando Roma finalmente dominou toda a Itália e tornou-se grande potência, teve que manter um exército permanente para o qual seus cidadãos disponíveis não eram suficientes nem adequados. A medida adotada foi estender a cidadania romana aos habitantes das cidades italianas conquistadas, mas isso só ocorreu a duras penas ao longo dos século II e I AC e foi de pouca ou nenhuma valia, pois apesar de abafada a hostilidade ao inimigo de ontem ela continuava a existir. A solução foi o exército voluntário de cidadãos ceder lugar ao exército de soldados profissionais, processo longo que só se completou no século I AC durante as ferozes guerras civis que sacudiram a República e preludiaram o seu fim, substituindo-a pelo regime imperial na metade final do referido século. Mas isso não causou qualquer prejuízo ao seu valor combativo, pois este se devia mais às táticas de batalha do que ao patriotismo do combatente. Ademais, a grande maioria dos soldados profissionais do exército permanente continuava a ser constituída por cidadãos romanos, que agora tinham no exército mais uma opção de vida e de realização pessoal.

Imperador Trajano (96-117 DC). Sob o seu governo Roma atingiu o apogeu político
                        e militar, mas o seu exército não ultrapassava 200.000 homens

O que nos interessa aqui é a tática de combate que permitiu transformar-se o exército romano na mais formidável máquina de guerra que o mundo já conheceu. Esta era corporificada na formação de batalha que recebeu o nome de Legião e tudo indica que no início ela confundia-se com o próprio exército, pois este não devia ter mais do que o número de soldados tecnicamente requeridos para constituir aquela: 6.660! A palavra vem de legere, que significa eleger, escolher, recrutar, e legio seria o substantivo designando o grupo de cidadãos escolhidos para as funções de combatentes na guerra que se avizinhava. Reza a tradição que a sua organização foi estabelecida pelo cônsul Camilo Fúrio no século IV AC e graças a ela nos cem anos seguintes Roma submeteu ao seu poder toda a Península Itálica, mas no século III AC as Guerras Púnicas exigiram sua reorganização para enfrentar guerras em grande escala, até então desconhecidas dos romanos. O seu novo formato durou até a invasão dos Címbrios, que lhes infligiram graves derrotas só a muito custo contornadas, e isto provocou nova reorganização feita pelo cônsul Caio Mário no final do século II e início do século I AC. Com pequenas modificações feitas por Júlio César, a estrutura da legião se manteria a mesma por mais de trezentos anos, até praticamente o reinado de Diocleciano no final do século III e início do século IV DC. Até então ela era constituída basicamente pela infantaria, mas a partir daí seus batalhões foram sendo substituídos por batalhões de cavalaria, típicos dos exércitos orientais. Com a inversão de papéis, passando a cavalaria a principal e a infantaria a acessória, mais as desastrosas reformas de Constantino, que a subdividiu e a enfraqueceu por medo de possíveis rebeliões de generais ambiciosos, a legião se amesquinhou e se descaracterizou totalmente, guardando o antigo nome mais por amor à tradição do que por rigor técnico-militar. Só no Ocidente, onde o cavalo ainda era raro, a legião manteve algo da sua estrutura tradicional, mas na grande batalha dos Campos Catalúnicos (451 DC), quase no apagar das luzes do Império do Ocidente, o seu efetivo não passava de 2.000 homens, e o general Aécio, cognominado "O Último Romano", não teria vencido Átila se não fosse pela poderosa cavalaria dos seus aliados Francos e Visigodos. 

A eficiência do legionário tornou-se célebre. Ainda hoje quando se quer dizer que um guerreiro
é letal o chamamos de "centurião" (cena de filme recente com este título)

O segredo da eficiência da legião durante o período clássico (século I AC a II DC) reside na sua divisão em unidades e subunidades altamente treinadas para funcionarem como peças destacáveis que se encaixam e desencaixam no todo ao comando do líder durante a batalha. Esse mecanismo passou por várias alterações, mas nenhuma foi radical e ele subsistiu durante os séculos mencionados. Vejamos o seu funcionamento.

A unidade básica da legião é a decúria, grupo de dez homens comandados por um decano ou decurião, posto hoje equivalente a sargento ou tenente, e que integra uma centúria, unidade militar com dez decúrias comandada por um centurião, posto que equivaleria hoje a capitão ou major. Duas centúrias formavam um manípulo, que equivaleria ao atual batalhão, e três manípulos formavam uma coorte, que equivaleria ao atual regimento. O manípulo foi abolido no começo da Era Imperial, mas isso em nada alterou a estrutura da coorte, que manteve o mesmo número de centúrias e de soldados. A coorte é a unidade operacional por excelência, pois com os seus 666 homens não é tão grande que perca sua mobilidade e capacidade de manobra, nem tão pequena que perca seu poder e eficácia. Dez coortes formam a legião com 6.660 homens caso esteja tecnicamente completa. Tanto a coorte como a legião são comandadas por altos magistrados civis dotados de experiência militar, nomeados pelo Senado na época republicana e pelo Imperador na época imperial, sendo o tribuno-militar para a primeira e o legado para a segunda. Em termos atuais, o tribuno equivaleria a coronel e o legado a general. Com o tempo, a escolha passou a recair em oficiais profissionais e os postos militares-políticos tornaram-se postos militares-de-carreira a que se chegava através de promoção, deixando de ser aquilo que nós chamamos cargo de confiança.

Havia grande variedade de postos inferiores cujos titulares poderíamos chamar de suboficial, a maioria na área auxiliar (cozinheiro, carpinteiro, ferreiro, notário, tesoureiro, enfermeiro, etc), mas havia muitos na área combatente (ajudante de oficial, tambor, mensageiro, corneteiro, porta-estandarte, etc). Todos eram comissionados com uma gratificação que lhes tornava o soldo bem maior e usavam as insignias do seu posto, mas os do área auxiliar, por não serem treinados para lutar, não faziam parte de unidades de combate e só lutavam em casos extremos, ficando por isso na reserva durante as batalhas, mas não era raro chegarem ao oficialato como prêmio ao seu bom serviço de apoio. Já os da área combatente eram legionários propriamente ditos e lutavam com suas unidades, sendo o posto de porta-estandarte muito perigoso porque o inimigo sempre o atacava visando capturar o símbolo que portava. Por isso era muito bem pago e protegido. Exercer a função de ajudante-de-oficial ou de porta-estandarte era degrau certo para rapidamente atingir o oficialato, embora não necessariamente.

O exército era meritocrático. O soldado humilde que fosse
talentoso subia. Tela de Victor Schnetz (séc. XIX)

De notar que usamos aqui o termo "auxiliar" para designar os soldados da legião que atuavam na sua área de logística e que por isso não estavam sujeitos ao duro treinamento do "legionário" destinado ao combate, todavia na terminologia romana os "auxiliares" eram tropas provinciais que se destinavam à manutenção da ordem interna local e não à guerra. Quando esta ocorria e a legião partia para a batalha, os seus quartéis ficavam aos cuidados dos "auxiliares" até o seu regresso. A grosso modo, poderíamos comparar as "tropas auxiliares" dos romanos às nossas "polícias militares" estaduais.

No que diz respeito à legião como formação de batalha propriamente dita, sabemos que quando tecnicamente completa ela tinha 6.660 homens, assim escalonados: a) decúria: 10 homens + 1 decurião = 11; b) centúria: 10 x 11 = 110 + 1 centurião = 111; c) manípulo: 2 x 111 = 222; seu comandante era o centurião mais antigo, “major”, porém o manípulo foi abolido no século II DC e centurião-major virou posto de carreira; d) coorte: 3 x 222 = 666; o tribuno-militar seu comandante era um delegado do Senado ou do Imperador e raramente era militar de carreira; Trajano mudou isto no século II DC e o cargo de tribuno-militar virou posto de carreira, equivalente a coronel ou general-brigadeiro atual; e) legião: 10 x 666 = 6.660; era comandada por um legado, geralmente assistido por 1 ou 2 legados-adjuntos; eram todos civis indicados pelo Senado ou pelo Imperador, mas com o tempo legado e legado-adjunto, equivalentes aos atuais generais de divisão e brigada, também viraram postos de carreira.

Caso queiramos comparar com o exército moderno teremos: a) decúria = pelotão, decurião = tenente; b) centúria = companhia, centurião = capitão; c) manípulo = batalhão, centurião-major = major; d) coorte = regimento, tribuno-militar = coronel; e) legião = divisão, legado = general de divisão (o legado-adjunto seria o general-brigadeiro). O general comandante de várias legiões reunidas em exército (general-de-exército) era o magister milite, devendo-se notar que a palavra "exército" é romana e decorre do fato das tropas estarem sempre treinando, fazendo exertitius (exercícios). O povo apelidou a corporação militar de exertitius e o tempo transformou o apelido no vocábulo latino exercitus, usado daí em diante para nomeá-la oficialmente. Verifica-se, portanto, que até o século II somente havia 2 postos de oficial de carreira no exercitus: o decurião e o centurião! Mesmo depois, a centúria continuou a ser a unidade-letal do exército: nem tão grande que perdesse em mobilidade, nem tão pequena que perdesse em eficácia! O centurião era e continuou sendo o seu oficial-símbolo, sinônimo de dureza e eficiência. Graças às suas periódicas transferências de guarnição, a disciplina e os usos militares eram os mesmos tanto numa legião do Oriente Médio como noutra do norte da Europa, fazendo do Exército a instituição mais sólida e homogênea do Império, não obstante as dezenas de nacionalidades diferentes dos seus soldados.

Novamente frisamos que a organização apresentada acima é a "clássica" e vários autores nos mostram a legião com organização diversa, mas devemos lembrar que ela nunca deixou de ser um organismo em constante mutação, sempre se adaptando às diferentes condições geográficas, climáticas e até mesmo políticas, sociais e econômicas em que atuava, por isso há pouca semelhança entre a legião do século I e a legião do século IV ou do século V. Mas o fato concreto é que qualquer que seja o seu formato em determinado momento histórico as suas características principais, eficiência e maleabilidade, são preservadas e fazem dela a melhor formação combativa da antiguidade.    

Mas continuemos a nossa análise. Os oficiais inferiores e soldados raramente eram transferidos, porém os oficiais superiores nunca serviam mais de quatro anos na mesma unidade, sendo três anos o tempo médio. Um soldado bravo, disciplinado e inteligente podia chegar ao posto de centurião com dez anos de serviço, de sorte que durante os restantes vinte ou trinta anos de carreira (a aposentadoria aos trinta anos de serviço não era obrigatória para os oficiais superiores, que podiam ficar nas fileiras até os sessenta anos de idade) ele serviria no mínimo em cinco legiões diferentes sediadas nos pontos mais diversos do Império. Os motivos disso eram evitar que o oficial criasse laços demasiadamente estreitos com a tropa, que o induzissem a sonhos de grandeza política, e a promover a homogeneidade do idioma, usos e costumes romanos em todas as guarnições militares espalhadas pelo vastíssimo território imperial. Assim, um oficial egípcio mandado servir na Britannia era tão romano quanto um oficial britânico mandado servir no Egito, dando-lhe a certeza de pertencer a algo muito maior do que a sua modesta província de origem. Para ele a pátria era o Império Romano e não a região onde nascera.

Disciplina e sintonia entre comandante e comandado na Legião eram
              a chave do seu sucesso militar. Cena do filme "Gladiador"

Cargo vital na estrutura militar era o de administrador de quartel fixo ou móvel (praefectus castrorum). No início era cargo civil, mas logo virou cargo comissionado de oficial de carreira e sua autoridade só era suplantada pela do comandante da tropa. Quando grandes quartéis permanentes ergueram-se em pontos fixos do Império a partir do século I DC, o encarregado de cada castrum virou o verdadeiro representante militar romano na região, embora fazendo o possível para não parecer tal ao comandante da guarnição, que podia puni-lo, demiti-lo e até mesmo executá-lo.

Mas nenhuma organização teoricamente concebida funciona na prática se não houver duas coisas: bom comando e bom soldado! Roma deu a máxima atenção aos dois. Os comandantes eram selecionados entre os melhores oficiais e estes entre os melhores soldados, os quais eram exaustivamente treinados na mais rígida disciplina para tornarem-se frios peritos na arte de matar. Esta chegou ao ponto de proibir que eles gritassem com o inimigo para economizar energia e concentrarem-se com frieza e racionalidade na tarefa de matá-lo com rapidez e eficiência. Chegou até mesmo, caso único na história e contra toda a lógica comum, a fazer o legionário conduzir a espada do lado direito, pois entre sacar e golpear poupava esforço fazendo apenas dois movimentos e golpeando com o máximo de força abaixo da cintura, ponto menos protegido pela armadura do inimigo. Ao fazer isso não só evitava sua espada de chocar-se com a dele, e talvez partir-se, como ainda submetia a outra a tal risco, fazendo com que ela se chocasse em cheio com o seu escudo!

Dando máxima atenção a mínimos detalhes como esses, os romanos tornaram-se invencíveis e se sofreram fragorosas derrotas, como as que Aníbal lhes infligiu no século III AC, foi mais porque ainda estavam no início do seu aprendizado e ainda eram um exército amador comandado por civis, sem falar da genialidade do comandante adversário e de armas pouco conhecidas pelos europeus da época, como a cavalaria e os elefantes largamente usados por Aníbal, antecessores das modernas divisões de tanques.

Os cartaginêses com seus elefantes aterrorizavam os romanos que os
               desconheciam e fugiam. Tela de Lionel Royer (séc. XIX)

Porém o mais extraordinário do Exército Romano é que ele ERA PEQUENO! Muitos pensam que dado a enorme extensão do Império o exército que o defendia era enorme, mas não era. Quando César se tornou ditador vitalício, pouco antes da sua morte, o exército tinha vinte legiões, número que Augusto aumentou para vinte e cinco, mas depois da destruição das três legiões do general Varus na Germânia no ano 9 DC ele não as refez e o número ficou em vinte e dois até Cláudio as aumentar de novo para vinte e cinco durante a conquista da Britânia. Trajano as elevou para trinta nas Guerras Dácias, mas Adriano as reduziu para vinte e sete. Daí em diante o seu número oscilou entre vinte e cinco e trinta, mas há que se levar em conta que a legião raramente estava completa com seus seis mil e seiscentos soldados, situando-se o seu efetivo usual em torno de cinco mil. No tempo de Constantino este número caiu para cerca de dois mil, mas ele aumentou para cerca de cem o número de legiões, de sorte que os efetivos totais do exército se mantiveram os mesmos. Teodósio aumentou para três mil homens os efetivos da legião, mas esse número baixou novamente para dois mil no tempo de Aécio, e para apenas mil no apagar das luzes do Império. Quando a legião desapareceu no Ocidente junto com o império, a anarquia imperante na sociedade imperou também nos exércitos bárbaros a serviço dos seus príncipes conquistadores, mostrando-se mais bandos de salteadores do que batalhões de soldados de carreira a serviço de um Estado organizado.

Claro que aqui nos referimos ao Exército do Império antes da sua divisão em 362, pois a partir daí os dois impérios, o Ocidental e o Oriental, passaram a ter seu próprio Exército. Mas como os efetivos da legião tinham baixado muito, embora o seu número tenha se multiplicado, têm-se que cada exército tinha menos de cem mil homens, ambos totalizando os mesmos efetivos do antigo exército unificado para defender a integridade do mundo romano em toda a sua imensa extensão.

Na época do imperador Constantino (306-337 DC) o Império Romano ainda era quase tão grande
                              quanto na época do imperador Trajano, mas a partir daí começou a sua decadência

Verifica-se, portanto, que mesmo no reinado de Trajano, quando o Império atingiu a sua extensão máxima e o número de legiões chegou a trinta com efetivos completos, o Exército Romano não ultrapassou a marca dos duzentos mil soldados (30 x 6.660 = 199.800), muito inferior a qualquer grande exército da atualidade sem um décimo das responsabilidades militares e do relevante papel que as legiões romanas tiveram na história da civilização ocidental. Claro que neste número estão somente as tropas combatentes, as quais eram assistidas por tropas para-militares chamadas "auxiliares", encarregadas dos serviços de escritório, almoxarifado,  armamentos,  oficinas, alimentação,  saúde, limpesa dos quartéis e transporte dos equipamentos durante os deslocamentos. Seu número correspondia em média a um quarto dos efetivos combatentes, mas não tinham treino militar e, embora pudessem vir a lutar em situações de emergência, não eram legionários.

       Constantino foi o último grande imperador romano, mas seu exército era bem menor que o de Trajano,                                                      tendo cerca de 150.000 homens. A decadência do Império começa após sua morte em 337 DC

Fato é que sendo vinte e sete o número médio de legiões em atividade com efetivos em torno de cinco mil homens cada uma, forçoso é concluir que os efetivos do Exército Romano ficavam abaixo de cento e cinquenta mil homens na maior parte do tempo, bem menos do que as Forças Armadas brasileiras. Isto nos faz concluir que embora o Exército Romano tenha tido um extraordinário papel na formação, consolidação e conservação do enorme Estado multinacional, outros fatores não menos extraordinários de sabedoria e competência juntaram-se para dar ao Império Romano o seu caráter de significativa excepcionalidade e longevidade.  Todavia, nos propomos aqui a examinar apenas o papel do Exército na façanha, deixando os demais fatores para serem examinados em estudos complementares.

De qualquer forma, importantíssimo para possibilitar a um exército tão pequeno manter o domínio imperial sobre área tão grande era a perfeição estratégica como era ele distribuído, pois só em ocasiões especiais toda a legião concentrava-se em seu enorme quartel-general. Além de sediadas em pontos nevrálgicos, suas divisões e subdivisões ficavam em quartéis menores espalhados pelo território sob sua jurisdição, guarnecendo cidades, vilas, estradas, pontes, desfiladeiros, encruzilhadas, entroncamentos e tudo o mais que tivesse valor estratégico. Na maior parte do tempo o seu QG era uma enorme fortaleza quase vazia, habitada por apenas uma das suas dez coortes e pelo pessoal burocrático do comando geral, quase sempre civis encarregados dos serviços e operações logísticas. Assim, a legião fazia sentir sua presença terrível em todo o território sob sua guarda qual um polvo de longos tentáculos assegurando e tornando visível, mais do que qualquer outra coisa, a presença e o domínio do Império.

                                          A magnífica ponte de Alcântara em Portugal construída pelo exército
                                                                      romano há 1.800 anos e em uso até hoje

O exército fazia essa presença ainda mais efetiva quando não estava em campanha e empregava o seu tempo livre em obras públicas de grande significado para a Administração e as populações locais, como estradas, pontes, esgotos, barragens e aquedutos para prover as cidades com água encanada. O soldado romano, portanto, era um misto de guerreiro, engenheiro e pedreiro, empregado pelo Estado tanto para fazer valer a sua autoridade como para desenvolver a região onde servia, enriquecendo o Império e beneficiando os cidadãos. Nisto ia também uma alta dose de pragmatismo, pois soldado ativo é soldado em boa forma, longe de conspirações e badernas!

Mas para que o soldado romano suportasse tão férrea disciplina e tão pesada carga de trabalho grandes vantagens lhe eram concedidas. A primeira era o alto salário, coisa que tornava a carreira militar super atrativa e fazia milhares de jovens pobres das províncias e dos países bárbaros limítrofes correrem aos postos de alistamento e porfiarem em serem aceitos. A segunda era a aposentadoria após trinta anos de serviço, uma notável antecipação do que viria a ser nos tempos modernos a previdência social. A aposentadoria tanto podia consistir numa pensão periódica como num significativo pecúlio pago de uma só vez, que se tornava maior caso o veterano decidisse se estabelecer na região onde estava servindo. Com isso o exército inseria na comunidade um fiel ex-servidor, testado por anos de bons serviços, que gozaria de prestígio local e poderia vir ainda a prestar relevantes serviços ao Império na vida civil. Finalmente havia a imunidade perante as autoridades civis, pois o soldado que infringisse a lei local só poderia ser processado e julgado por seus superiores. Isto fez com que além da Lei Militar o Exército Romano criasse também a Justiça Militar (jus castrorum), numa notável antecipação do que hoje ocorre em todos os exércitos modernos.

                                Aqueduto construído pelo exército romano na Espanha afim de prover  com água
                                                              abundante a cidade de Tarragona (século I DC)

Todavia, não se pense por isso que Roma ou o Exército Romano fossem "bonzinhos". Na verdade eram implacáveis quando havia qualquer ameaça à autoridade imperial e a repressão era terrível, podendo chegar até a extinção de países e a venda de povos inteiros como escravos, como sucedeu com os dácios e os judeus no século II DC, e a total destruição de uma grande cidade, como aconteceu com Palmyra no século III DC. O seu grande mérito consistiu em saber dosar com equilíbrio o quantum de tolerância e benemerência com o quantum de intransigência e violência necessários à preservação da paz e da prosperidade do Império. Este sabia que o excessivamente bom perde o respeito e o excessivamente mau perde a estima, portanto o seu lema era: in medio virtus!

Resta saber por que a legião romana de César era tão superior à falange macedônica de Alexandre, a ponto de com pouco esforço dominar toda a Grécia menos de duzentos anos depois da morte do grande Rei e a resposta é: 1) a legião era um mecanismo de batalha e a falange uma formação de combate, o que significa dizer que as peças da primeira iam se ajustando gradualmente aos acontecimentos conforme a necessidade do momento, enquanto a segunda não era feita de peças destacáveis e não possuía tal faculdade, resumindo-se todo o seu mérito à forma como entrava na luta; 2) seguindo a tradição homérica, a arma básica da falange era a lança, enquanto a da legião era a espada; a lança conduzida pelo legionário era na verdade um dardo, o pillum, arremessado contra o inimigo no início da batalha e esquecido daí em diante; depois sacava a espada, sua arma de combate corpo a corpo, e partia para cima do adversário; 3) a legião elaborou forma simples de inutilizar o porco espinho da falange: dois legionários penetravam juntos entre duas fileiras de lanças, tendo um deles o escudo no braço direito, e com os escudos iam pondo as lanças adversárias para os lados e para baixo até estarem frente a frente com o hoplita bom no uso da lança e fraco no uso da espada. O resultado já se sabe!

Com todo o enorme avanço tecnológico dos exércitos modernos, a arte da guerra jamais voltou a atingir os altos níveis de organização, eficiência e sofisticação atingidos pelo Exército Romano há mais de dois mil anos.


Notas:

1) Sustento a tese pioneira, pois até agora não a vi aventada por ninguém, de que o famoso número "666" na testa da besta do Apocalypse de São João, sobre o qual tanto se tem discutido ao longo dos séculos, nada mais é do que o número de legionários da coorte romana. O Apocalypse é uma raivosa diatribe de São João exprimindo o ódio dos cristãos primitivos a Roma, que ele chama de "a grande prostituta", e nada mais lógico que visse a besta como sendo a coorte, expressão maior do poder militar do Império nas províncias.

2) Não se pode falar em duração "de tanto a tanto" para o Império Romano. Quando se diz que durou cinco ou seis séculos, isto vai depender das datas que se toma para o início e o fim. Penso que o Império começa quando Roma domina territórios fora da Itália, ou seja, em 202 AC, apossando-se do norte da África e da Espanha após derrotar Cartago. Por outro lado, acho 476 DC, ano em que o insignificante imperador Rômulo Augústulo foi deposto pelos bárbaros, uma data puramente simbólica para o seu fim, pois o Império já se esfacelara há tempos. Data bem mais significativa talvez seja 451, quando, para derrotar Átila na grande batalha dos Campos Catalúnicos, o general Aécio, cognominado o Último Romano, viu-se obrigado a recorrer aos exércitos bárbaros dos seus amigos francos, burgundos e visigodos, tal era a fraqueza do outrora poderoso Exército Imperial. A última grande vitória das águias romanas foi também o seu canto do cisne.

3) Graças as obras de engenharia civil do exército, alguns oficiais se tornavam ótimos construtores e eram disputados por cidades para nelas servirem afim de realizarem obras importantes desejadas pelos cidadãos. Havia vantajosas ofertas "por fora" ao oficial-engenheiro e ao comandante a quem competia autorizar a transferência, ambos recebendo generosos "presentes" da cidade interessada. Alguns oficiais-engenheiros ficavam ricos e quando davam baixa se estabeleciam como prósperos empresários da construção civil.

4) Ao contrário do que geralmente sucede com tropas estrangeiras de ocupação em todos os tempos, muitas localidades viam a presença permanente de unidades do exército romano em seu território como uma bênção, seja para mantê-lo livre de salteadores, seja para realizar obras públicas desejadas por todos. A diferença do Exército Romano com exércitos de grandes potências atuais é flagrante.

5) para se aquilatar a eficiência do pequeno exército romano de 200.000 homens em manter a autoridade do gigantesco Império, basta comparar sua performance no mundo durante 600 anos da Era Antiga com a performance do Exército Americano no humilde Vietnã durante 10 anos da Era Contemporânea. Apesar de ser três vezes maior que o pequeno exército de Roma e ocupar um território cem vezes menor, o exército dos EUA reduziu o modesto país a escombros e sofreu uma das mais completas e decisivas derrotas de todos os tempos.


sábado, 7 de julho de 2012

Post nº 58

FALANGE  GREGA  -  O  MELHOR  EXÉRCITO  DA  ANTIGUIDADE  ANTES  DA  LEGIÃO  ROMANA


Combate de falange contra falange. Vaso grego do século IV AC
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Até o surgimento de Epaminondas e de Felipe da Macedônia as vitórias militares eram fruto mais da astúcia dos generais e da valentia dos soldados do que da organização tática dos exércitos na batalha e das suas estratégias na guerra, mas Epaminondas queria engrandecer Tebas, sua pátria, e Felipe a sua Macedônia, não só pondo-a em pé de igualdade com os outros Estados gregos como submetendo-os ao seu poder e unificando-os em um poderoso grande Estado. Na execução do seu projeto, Felipe começou organizando um magnífico exército de dez mil hoplitas (soldados de infantaria), o que na Grécia era enorme, mas suas estratégia e tática eram as mesmas dos demais gregos, especialmente dos tebanos após as reformas que o eminente filósofo, estadista e general Epaminondas fizera no exército de Tebas, dando à sua cidade o domínio da Grécia.

Epaminondas foi um gênio militar cuja cultura, patriotismo, desambição
      e honestidade o fizeram o mais ilustre estadista grego da sua época

Epaminondas era muito respeitado por seus concidadãos, mas era modesto e jamais aceitara cargos no governo da cidade apesar da natural liderança que exercia, coisa que o fazia ainda mais popular e acatado por todos. Quando a guerra com Esparta estourou pediram-lhe que comandasse o exército de Tebas por ser sacrifício pela pátria ao qual não poderia se recusar. Ele aceitou e rapidamente montou poderosa força de combate na qual introduziu várias inovações que a tornavam superior à falange grega tradicional. A principal delas foi a substituição das lanças de dois metros dos soldados da vanguarda pelas de seis, chamadas “sarissas”. Assim, fez da falange um bloco mais compacto, com linha de menor extensão e fileiras de maior profundidade. Os lanceiros lhe deram o aspecto de “porco espinho”, com os quatro primeiros de cada fila apontando a lança para a frente na horizontal, a do segundo passando pelo primeiro, a do terceiro pelos dois e a do quarto pelos três à sua frente. O inimigo que ultrapassasse a primeira linha se depararia com a segunda, depois com a terceira e finalmente com a quarta, de forma que teria de passar por quatro linhas de lanças longas até ficar frente a frente com o soldado da primeira fila. Os lanceiros atrás dos quatro primeiros ficavam com as lanças na vertical e a baixavam quando algum dos quatro à frente tombava e o da quinta fila lhe tomava o lugar. Ultrapassar a barreira de lanças era dificílimo porque as linhas não ficavam paradas: avançavam em formação cerrada em cadenciado passo de marcha, atropelando e pondo o adversário em fuga.

Antes da hegemonia tebana as batalhas mais ferozes de falange contra falange foram na Guerra
                                   do Peloponeso entre Atenas e Esparta. Gravura de Hermann Vogel (séc. XIX)

A segunda inovação foi adicionar às linhas de lanceiros outras de espadachins. Depois que a massa de atacantes que não conseguira ultrapassar a muralha de lanças começava a recuar e os lanceiros apressavam o passo a marche-marche transformando-o em impetuoso contra-ataque, as linhas de espadachins na retaguarda corriam para os lados, ultrapassavam velozmente os lanceiros que marchavam a passo rápido e atacavam o inimigo pelos flancos, cercando-o e destruindo-o.

Epaminondas culminou suas reformas com uma inovação que mostra toda a sua genialidade militar: pôs a infantaria pesada na ala esquerda para ficar frente a frente com a infantaria pesada da falange adversária, sempre colocada na ala direita onde ficava o supremo comando segundo o modelo espartano. Ao invés de "A x B" ele adotou "A x A" e "B x B", onde iguais enfrentavam iguais, com a diferença que o seu "A" era muito mais poderoso que o "A" adversário. Quando a batalha começava, o "A" avançava enquanto o "B" mantinha a sua esquerda firme, mas o seu centro e a sua direita recuavam como se a falange fosse os ponteiros de um relógio marcando 12 hs e 35 min no começo da batalha e no período do meio 12 hs e 50 min, transformando sua linha reta em triângulo "ponta-de-flecha", o qual depois novamente se distendia e formava nova linha reta pelo avanço da ala esquerda e finalmente se dobrava em círculo sobre o inimigo, cercando e destruindo o que sobrara dele. Como o "A" da falange tebana era bem mais estreito e profundo que o "A" das outras falanges, a sua infantaria pesada na retaguarda logo se via frente a frente com a infantaria leve do inimigo e a destroçava ainda na primeira metade do período da batalha. A partir daí eram os seus "A" e "B" juntos contra o "A" adversário isolado e cercado.

Falangistas em combate eram um tema popular na pintura dos vasos gregos (séc. IV a.c.)

Essa complicada tática de Epaminondas foi chamada de falange em diagonal e deu a Tebas a vitória contra Esparta na histórica batalha de Leuctras, implantando a hegemonia tebana sobre toda a Grécia. Isto fez com que a falange grega passasse a se chamar falange tebana. Devemos frisar, entretanto, que a quase totalidade dos historiadores credita a invenção da "sarissa" a Felipe da Macedônia e não a Epaminondas, com o que não concordamos pelas razões que aludiremos adiante.

A hegemonia de Tebas deveu-se ao talento político e militar de Epaminondas. Sua morte em combate a deixou
                      sem liderança e ela foi dominada pelos macedônios. Detalhe de tela de Isaac Walraven (1726)

Porém a hegemonia de Tebas e da falange tebana duraria tanto quanto a vida de Epaminondas, pois era preciso grande capacidade de comando e habilidade tática para operá-la. Poucos anos depois da sua morte causada por ferimentos sofridos em sua última grande vitória, Tebas eclipsou-se por falta de lideranças capazes como a dele e a Macedônia tornou-se o novo poder hegemônico da Grécia através de uma versão mais prática e mortífera da falange, criada pelo rei Felipe e que foi chamada de falange macedônica.

Busto de Felipe da Macedônia
            
Além de gênio político, Felipe era gênio militar e reformou a Falange Tebana introduzindo-lhe várias novidades. Sua maior inovação foi extinguir a sua linha contínua, dividíndo-a em blocos retangulares compactos com um largo espaço entre cada um deles, de modo que quando o inimigo se lançava em turbilhão pelos espaços vazios, para evitar bater de frente com o “porco-espinho”, se bifurcava por espaços vazios que vinham depois e os lanceiros laterais de cada bloco mudavam a direção das suas lanças, triturando-o como se ele estivesse entre duas mandíbulas. Os que escapavam eram mortos pelos espadachins.

A grande maioria dos historiadores acha que as "sarissas" foram invenção dos macedônios e não dos tebanos, mas é difícil Tebas ter obtido tantas vitórias caso não as tivesse, pois sendo o seu exército bem menor que o de Esparta não poderia a sua delgada ala direita suportar o avanço da pesada infantaria da ala esquerda espartana sem se dissolver. O fato de ser possível a ela recuar ordenadamente em diagonal até fazer a linha original de batalha girar 180 graus deve ser creditado à invenção de uma arma notável como a sarissa, capaz de triplicar o poder defensivo da falange. Ademais, a passagem de Epaminondas e de Tebas pelo cenário político grego foi rápida e não deixou grandes marcas, sendo bem plausível que numa época em que não havia nenhum dos modernos meios midiáticos para registrar os fatos nem guardar com detalhes a sua memória, certos inventos tenham sido atribuídos a personalidades mais marcantes como Felipe. Poucos relatos históricos chegaram até nós e os que chegaram são de historiadores que escreveram décadas ou séculos depois dos acontecimentos, muita coisa tendo sido escrita apenas por ouvir dizer. Não é de surpreender, portanto, que a notável invenção do humilde Epaminondas tenha sido depois atribuída ao poderoso Felipe da Macedônia, pai do senhor do mundo Alexandre Magno.

O Império Macedônico no último ano do reinado de Felipe (336 AC)

Mas não há dúvida de que até o surgimento de Epaminondas e de Felipe a valentia do soldado era o principal e a formação de batalha o acessório nos combates, mas com as reformas de Epaminondas essa relação começou a se inverter e com as de Felipe ela se inverteu de vez. Em pouquíssimo tempo a antiga e tradicional falange grega virou Falange Tebana e esta virou Falange Macedônica, sendo com ela que Felipe pretendia conquistar a Pérsia após concluída a sua obra de unificação da Grécia e de controle de toda a costa ocidental do mar Egeu. Ao concluí-la e ter a sua retaguarda segura, Felipe declarou guerra à Pérsia e preparava-se para a invasão do grande império asiático quando foi assassinado em sua capital, durante uma cerimônia religiosa propiciatória, por um cortesão traidor, possivelmente a soldo do imperador persa. Assim, quis o destino que a enorme tarefa ficasse para o seu filho e herdeiro Alexandre, que a executaria com inexcedível genialidade política e militar.
  
            

         

domingo, 27 de maio de 2012

Post nº 57

GALLA  PLACÍDIA  -  A  ÚNICA  MULHER  QUE  
GOVERNOU  O  IMPÉRIO  ROMANO

Gala Placidia - Retrato autêntico pintado provavelmente entre 432 e 435 DC
 por artista da época cujo nome a história não registrou

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Algumas mulheres romanas, como Lívia, esposa de Augusto, e Agripina, esposa de Cláudio, tiveram grande influência nos negócios do Império, mas apenas nos bastidores. Outras tiveram relevante papel político público e deram as cartas do jogo, como foi o caso exemplar da bilionária Júlia Maesa, tia do imperador Caracala e avó dos imperadores Heliogábalo e Alexandre Severo, porém jamais exerceu o poder oficialmente. A única que de Fato e de Direito empunhou o cetro imperial foi Galla Placídia, uma das mais notáveis e menos conhecidas estadistas da História, mas só os fatos de nascer em Constantinopla no século de nascimento do Império Romano do Oriente e morrer em Roma no século da morte do Império Romano do Ocidente, já fornecem material suficiente para conjecturas cabalísticas de astrólogos e numerólogos. Ademais, como se fosse para acentuar a sua singularidade, não existe na História mulher que tenha sido tão “sangue azul” quanto ela, pois era neta do imperador Valentiniano I, sobrinha-neta do imperador Valente, filha do imperador Teodósio I, sobrinha dos imperadores Graciano e Valentiniano II, irmã dos imperadores Arcádio e Honório, esposa em primeiras núpcias do Rei Ataulfo e em segundas núpcias do imperador-adjunto Constâncio, tia do imperador Teodósio II, mãe do imperador Valentiniano III e, finalmente, imperatriz munida de poderes institucionais durante mais de uma década. Era, portanto, próxima por sangue a nove imperadores e por lei a um rei e a um imperador, oito dos quais reinantes em sua época. Porém, o mais curioso é que ela também poderia ter sido sogra de Átila, famoso rei dos Hunos, e do filho de Genserico, temido rei dos Vândalos!

                            Mapa do Império Romano do Ocidente no século V, época de Placídia, em meu livro
                                      "Intimate memories of Flavius Marcellus Aetius" (Athena Press - London)

Aelia Galla Placídia nasceu em Constantinopla em 390 e morreu em Roma em 450 aos sessenta anos de idade. Poderia ter uma vida calma e feliz se quisesse, não só por sua origem e posição, mas também por sua beleza, saúde, prendas domésticas (fiava, costurava e bordava com perfeição), inteligência, cultura e fortuna. Todavia, ao contrário do que se esperaria de uma mulher em suas condições, ela preferiu viver em escuro mar tempestuoso e não em tranqüilo lago azul. Talvez para isso tenha contribuído a sua infância infeliz. Filha caçula do imperador Teodósio I e da imperatriz Galla, ficou órfã de mãe aos quatro anos de idade e de pai aos cinco. Gravemente enfermo e prevendo a morte próxima, Teodósio nomeou sua sobrinha Serena e o marido, general Stilicon, tutores dos seus filhos menores, o que fazia do general o regente do Império no caso do seu falecimento. Este efetivamente ocorreu pouco depois e tanto o adolescente Honório como a menina Placídia foram morar na casa de Stilicon. Este passava quase todo tempo ocupado com assuntos do Estado e pouca ou nenhuma atenção dava aos filhos e aos tutelados, deixando-os inteiramente aos cuidados de Serena, mulher culta e inteligente, mas também fria, dura e prática, como o marido e o tio.

    Muralhas de Constantinopla, onde nasceu Placídia. Eram julgadas
               inexpugnáveis e resistiram a ataques durante 11 séculos

O último grande poeta da antiguidade, Claudiano, compôs belo poema sobre os méritos de Serena, mas como era bajulador e fizera o mesmo em homenagem a Stilicon, não se pode confiar muito em seus juízos de valor. De qualquer forma, as virtudes domésticas de Serena eram conhecidas e todos sabiam que ela dirigia sua casa da mesma forma como seu marido dirigia um quartel, impondo rigorosa obediência, severa disciplina e estrita moralidade. Ajuntava a isto um rígido horário de estudos para os adolescentes Euquérius, seu filho, e Honório, seu primo e tutelado. Fazia o mesmo com as meninas, as quais eram também obrigadas a aprender matérias domésticas essenciais a uma esposa nobre da época: administrar a casa, zelar pela higiene, vigiar e dirigir a criadagem, supervisionar a cozinha, tecer, costurar, bordar, etc. Disto não escapou Placídia, que deve ter se sentido maltratada e humilhada por Serena.

Díptico do final do século IV retratando o general Stilicon, sua esposa Serena e seu filho Euquérius,
noivo de Placídia desde a infância. Tudo indica que ela participou do assassinato dos três.

Órfã e dona de imenso orgulho, desde pequena ela deve ter visto na prima e tutora apenas um carcereiro e verdugo, acumulando no coração ódio doentio contra ela e sua família, pois não há outra explicação para sua absurda e cruel atitude posterior. Porém, enquanto Placídia crescia e era educada com severidade por Serena, Stilicon obtinha vitória após vitória sobre os bárbaros, acrescendo imensa popularidade ao seu já enorme poder político e militar. Por isso é difícil entender por que, ao invés de se proclamar imperador, preferiu casar seu tutelado Honório com Maria, sua filha mais velha, e coroá-lo ao atingir a maioridade. Embora correta do ponto de vista moral e institucional, a atitude de Stilicon surpreendeu, sobretudo porque seu tutelado e genro era notoriamente curto de inteligência e tido como idiota pela maioria das pessoas. Mas todos acharam que, sendo um homem decente, Stilicon preferira continuar governando como Primeiro-Ministro do que desrespeitar a lei.


Em minha opinião o fato se deveu mais a razões sentimentais do que a razões políticas, pois Stilicon dedicava amizade e fidelidade caninas ao seu falecido amigo, protetor, e quase sogro Teodósio I, o qual criara a sobrinha Serena como filha e a dera como esposa a um simples oficial de carreira, notável por sua lealdade, bravura e competência, mas pobre e de origem humilde. Teodósio e Serena pertenciam a riquíssima família espanhola de origem romana, enquanto Stilicon era filho de modesto oficial germânico de nacionalidade vândala, que somente se tornara cidadão romano por ter sido guarda-costas do general Teodósio Flaviano, avô de Placídia. Tudo indica que a lealdade e gratidão à família Flávia passou de pai a filho e o nobre caráter de Stilicon jamais lhe permitiria ser ingrato a aqueles que tinham sido tão generosos com seu pai e consigo próprio, por mais favoráveis que lhe fossem as condições políticas e militares. Ademais, ele se tornara um Flaviano pelo casamento, e trair a confiança do seu falecido chefe e benfeitor estava fora de questão.

Porém, como dizem os cínicos, toda boa ação será castigada! Em 408 Stilicon foi assassinado traiçoeiramente por ordem do seu ex-tutelado Honório numa igreja em Ravena, e poucos meses depois sua viúva Serena e seu filho Euquérius foram executados sem que Placídia erguesse um dedo em favor da mãe e do irmão adotivos. A absurda intriga palaciana por trás da tragédia ainda hoje é difícil de entender, e foi um dos fatos que apressaram ainda mais a dissolução do Império Romano. Porém, o grau de apodrecimento da sociedade da época manifesta-se na clara evidência de que a então jovem Placídia estava por trás dos nefandos crimes, porque nada teria acontecido se ela não tivesse com eles concordado, já que era sabida e notória a grande influência que exercia sobre o seu imbecilizado irmão-imperador.

Com a morte de Stilicon, o Império, que já vivia em difícil situação, ficou totalmente indefeso, e em 410 os godos tomaram e saquearam Roma, fazendo reféns muitos nobres ricos e importantes, entre os quais a princesa Placídia. Todos os reféns foram soltos após pagarem pesados resgates, mas ela continuou cativa e se tornou amante de Ataulfo, novo rei dos godos.

 Ataulfo foi o primeiro rei godo da Espanha. 
       Escultura de Felipe de Castro (1753)

Ambos casaram pelo rito ariano em 411 na cidade de Forli, na Itália, mas dois anos depois novo casamento foi celebrado com grande pompa pelo rito ortodoxo em Narbonne, na Gália, porque só assim Honório e os que governavam por trás do trono aceitariam fazer um tratado de paz vantajoso a Ataulfo. Com o casamento, ele tornou-se aliado do imperador idiota e, sem a sua ajuda, derrotou os generais rebeldes Jovinus e Sebastianus, que haviam se proclamado imperador e imperador-adjunto da Britannia e da Galia. Sem fazer qualquer esforço, e talvez nem mesmo entender direito o que se passava, o incompetente Honório conjurou uma das mais graves ameaças ao seu desastroso desgoverno, graças à sedutora beleza da irmã e ao valor militar do cunhado.


Imperatriz Galla Placídia e seus filhos Valentiniano e Honória. Pintura de autor anônimo do século 5º DC

Como prêmio por sua grande vitória, Ataulfo ganhou um reino no sudoeste da Gália, logo acrescido do nordeste da Espanha, e a aventureira Placídia, após percorrer a cavalo com ele toda a Itália e o sul da Gália, onde morou algum tempo em Toulouse, cruzou os Pirineus e foi morar na Espanha, pois Ataulfo escolhera Barcelona para sua capital. Porém, logo depois foi assassinado por um oficial traidor e Placídia foi humilhada, sendo obrigada a desfilar a pé atrás do cavalo do assassino na celebração do seu infame triunfo. Mas ela nem por um minuto perdeu a pose ou mostrou desespero, o que muito contribuiu para aumentar a fervorosa admiração que os godos já lhe tributavam. Isto talvez tenha sido decisivo para que alguns dias depois os indignados partidários de Ataulfo retomassem o poder, executassem os assassinos e Placídia retornasse à Itália firme, forte, e ostentando o pomposo título de Perpetua Regina Gothorum (Perpétua Rainha dos Godos) que o novo rei Vália lhe outorgara.

Honório era imbecilizado e não tinha filhos, por isso Placídia decidiu ser imperatriz reinante e, assim que o luto acabou, casou-se com o general Constâncio, comandante das forças armadas. Pouco depois fez o irmão idiota elevá-lo ao posto de imperador-adjunto, e em 417 teve uma filha a quem deu o nome de Honória para bajular o irmão. Em 419 teve um filho, a quem deu o nome de seu avô Valentiniano, e cuidou para que Honório, cada vez mais enfermo tanto da mente como do corpo, o fizesse seu herdeiro natural. Mas falhou, e isso lhe traria graves problemas no futuro.

                Mausoléu de Galla Placídia em Ravena. Ao fundo seu sarcófago e nas laterais os dos filhos 
                         Valentiniano e Honória. Mas estão vazios e não se sabe o que foi feito dos corpos

Sempre envolvida na política, meteu-se na eleição papal em 419, escrevendo cartas aos bispos e convocando sínodos, mas acabou transigindo e aceitando um Papa que não era do seu agrado. Três dessas cartas, onde discute assuntos teológicos e eclesiásticos, são conhecidas e mostram sua grande cultura e seu refinado estilo literário, mas as dificuldades da eleição papal mostraram-lhe que fazer papas não era tão simples quanto fazer imperadores, e parou de se intrometer nos assuntos da Igreja, passando a manter estreito e respeitoso relacionamento com o clero, coisa que lhe traria grande proveito. Placídia era estadista de primeira classe e o poder era seu principal objetivo, portanto concluiu que era melhor ter a Igreja como aliada do que como adversária, e a cobriu de favores e privilégios. Tudo ia bem quando Constâncio morreu subitamente e Placídia ficou de novo viúva, obrigando-a a multiplicar esforços para se manter no poder e conseguir do enfermiço irmão sem filhos adotar o pequeno Valentiniano como herdeiro. A historiografia do século V é péssima e as datas diferem bastante, uns dizendo que Constâncio morreu em 421 e outros que foi em 422 ou 423. O mesmo ocorre com as datas da morte de Honório, da coroação de Valentiniano III, e de vários outros acontecimentos marcantes da época, mas acho que 423 é a data mais provável para a morte de Constâncio e 425 para a morte de Honório. Embora isso não mude a substância dos fatos, torna a sua sequência mais lógica.

       Honório era um imbecil que se ocupava mais com as aves do galinheiro do palácio do que com os negócios
                                                     do império. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Procurando fazer do filho menino imperador a todo custo, pois só assim poderia exercer diretamente o poder na qualidade de regente, começou a tratar Honório com desusadas e excessivas mostras de carinho, inclusive em público, e disso não gostou Johannes, importante ministro que contava com o sólido apoio do poderoso senador Castinus e desde a morte de Constâncio planejava ocupar o trono tão logo Honório fechasse os olhos. Assim, com intrigas e calúnias torpes, espalhou que Placídia mantinha relações incestuosas com o irmão e, face ao escândalo, conseguiu que o imbecilizado imperador a expulsasse da Itália e a mandasse para Constantinopla, onde viveria exilada e quieta na corte do seu sobrinho Teodósio II, imperador romano do Oriente.

A posterior marcha dos fatos mostra que Johannes fora apenas mais um a ser enganado pela aparência bela e gentil da imperatriz, pois jamais teria mexido com ela se suspeitasse que ao faze-lo teria contra si perigosíssima serpente. Por enquanto ele podia se rejubilar da sua indecente vitória, mas muito em breve sofreria nas mãos de Placídia o castigo mais atroz já aplicado a um imperador romano em toda a longa história do Império.

Em 424 ela chegou a Constantinopla com os dois filhos pequenos na humilhante condição de exilada, mas, tal como ocorrera na trágica morte de Ataulfo, não se abateu e decidiu dar a mais contundente e cabal volta por cima, pois, apesar de bem tratada, percebia na face de todos o desdém e a satisfação que a desgraça dos grandes produz naqueles que os invejam. Por enquanto, se limitaria ao papel de expectadora, mas logo entraria no jogo de forma arrasadora e coroaria, com a mais inesperada das vitórias e a mais terrível das vinganças, a sua implacável marcha para o poder absoluto.

A continuação deste post está no post nº 81: "Johannes - O Imperador que Desfilou como Palhaço Montado de Costas em um Burro Antes de Ser Executado".