sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Post nº 10

NIBELUNGOS  -  O  POEMA  MEDIEVAL  QUE  INSPIROU  O  NACIONALISMO
GERMÂNICO

 As valquírias eram belas guerreiras que galopavam nos céus e levavam
ao paraíso do Valhalla os heróis mortos em combate


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A literatura de ficção da Idade Média foi dominada pelos franceses com o gênero "Romance de Cavalaria e de Amor Cortês", mas outros povos europeus também estiveram presentes ao intenso ressurgimento da Literatura Ocidental ocorrido nos séculos XII e XIII. Dentre esses destacaram-se os germânicos e escandinavos que, inspirados em antigas sagas nórdicas, brindaram a civilização com dois notáveis poemas compostos por talentosas mãos anônimas. O primeiro foi Beowulf, escrito em dialeto anglo-saxão da alta Idade Média, e o segundo, escrito em alemão mais recente, foi Os Nibelungos, também conhecido como A Canção do Nibelungo ou Cantos dos Nibelungos.

   Página de abertura de uma das edições manuscritas de "Nibelungos", feita
              provavelmente na primeira metade do século XIII (1220-1250) 
             
O primeiro, tendo guardado a forma e a linguagem primitiva, a ponto de se dizer que fora publicado tal como composto nos século VIII e IX, não teve público na brilhante baixa Idade Média e não se destacou depois, mas o segundo adquiriu grande voga nos países de língua alemã por ter sido escrito em linguagem bem mais moderna no século XIII e em primorosos versos rimados e metrificados organizados em estrofes. Ademais, o seu talentoso autor, cujas razões para ficar anônimo são desconhecidas, adotara em sua obra a paixão e o estilo do Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, adorado pelo sofisticado público leitor que na época tinha no francês a sua língua culta corriqueira. Isto fez com que o público leitor alemão que não dominava o idioma francês se deliciasse com um poema que celebrava lendas suas em seu idioma, mas impediu que ele ganhasse outros públicos e fosse conhecido fora dos limites da cultura germânica.


"Nibelungos" é inspirado nas sagas nórdicas que têm nas Valquírias os seus mais marcantes seres mitológicos

Porém o mais importante em Nibelungos é ser ele na sua essência um contraponto ideológico ao Romance de Cavalaria e de Amor Cortês, cuja forma adota sem adotar-lhe o conteúdo, pois enquanto este celebra valores éticos do cristianismo como amor, lealdade e justiça, aquele celebra valores éticos do paganismo como ódio, traição e vingança. Tirante a comum afeição pelo fantástico e pelo sobrenatural, sua essência está muito mais próxima da Ilíada do que da Canção de Rolland e por isso não é de estranhar tenha modernamente se tornado o poema favorito de uma parte do povo germânico que repudiou o humanismo universal em favor do nacionalismo exclusivista.
             

       Embora no contexto do poema o dragão seja a personificação do "mal", tampouco é Siegfried a encarnação
                         do "bem" segundo o ideal cristão. Cena do filme de Fritz Lang "Die Niebelungen" (1924)
            
Em "Nibelungos" é evidente o repúdio aos ideais éticos do cristianismo e a romantização de valores éticos do paganismo. Isto talvez tenha sido a causa do seu genial autor medieval ter preferido as sombras do anonimato ao brilho da popularidade e da riqueza, que por certo teria caso tivesse se identificado e escrito em francês. Isto nos leva a crer que o magnífico poeta talvez fosse um clérigo inspirado que estivesse com a sua fé em dúvida e não desejasse correr o risco de ser chamado a um Tribunal Eclesiástico para explicar o conteúdo anti-cristão da sua obra. Embora a repercussão de Nibelungos tenha sido modesta na Idade Média, no século XVIII o poema obteve grande prestígio quando Herder o tomou como base do romantismo nacionalista alemão, pregando uma identidade racial e cultural germânica que viria a produzir funestos resultados no futuro.

         O filósofo, linguista e literato Johann Gotfried Herder era um liberal iluminista,
                    mas chocou o ovo da serpente ao pregar o nacionalismo germânico
             
O nobre objetivo de Herder era tentar curar os alemães de sua baixa autoestima devido à miséria causada por séculos de lutas fratricidas, fanatismo religioso e disputas entre príncipes feudais ambiciosos, ocupados apenas em oprimir e explorar o povo. Achava ele que se os alemães voltassem a se orgulhar de suas raízes culturais e de sua história adquiririam sólido sentimento de pátria, expulsariam os crueis senhores feudais e construiriam uma nação unificada capaz de satisfazer os anseios de todos por liberdade e justiça. Herder alcançou em parte o seu objetivo um século depois quando a Alemanha foi unificada em poderoso Império, mas no processo despertou exarcerbado sentimento étnico e cultural que viria mais tarde a desembocar no mais enlouquecido nacionalismo racista, coisa que jamais esteve nos seus planos e ele nem de longe poderia prever nem muito menos querer.
             
Na revolução cultural por ele desencadeada, o poema foi redescoberto e muito comentado, mas o seu prestígio máximo só foi alcançado no século seguinte quando Richard Wagner compôs a sua obra-prima musical O Anel dos Nibelungos, dividida em quatro óperas: O Ouro do Reno, A Walkyria, Sigfried e o Crepúsculo dos Deuses, as quais lhe deram fama imorredoura. No século XX ele adquiriu notoriedade macabra quando Hitler e o regime nazista proclamaram  Nibelungos "Saga Nacional Alemã" e endeusaram a música de Wagner por tê-lo transformado em belíssima epopeia musical. Todavia, devemos ressaltar que as óperas de Wagner têm pouco a ver com o poema propriamente dito, baseando-se nas coletâneas de lendas nórdicas sobre heróis mitológicos que são também personagens de Nibelungos e não no enredo deste.

          Disposto a apoderar-se do tesouro dos anões feiticeiros, Siegfried invade a caverna onde ele é ciosamente
                      guardado pelo feroz dragão Fafner. Cena do filme "Die Niebelungen" de Fritz Lang (1924)

Polêmicas aparte, a verdade é que se examinarmos com cuidado as poéticas, porém indecentes e sanguinárias lendas, veremos que Nibelungos está eticamente muito mais próximo dos poemas homéricos e de outros poemas pagãos da antiguidade do que dos poemas cristãos que lhe são contemporâneos, repletos dos altos ideais éticos da apaixonada literatura cavalheiresca da Idade Média. Vejamos um breve resumo do tema central do poema.
             
O príncipe Siegfried é líder de uma tribo dos burgundos, também conhecidos como borgonheses. Famoso por sua beleza e valentia, quando jovem ele matara o rei Nibelungo e seu irmão, chefes de uma tribo de anões feiticeiros também conhecidos como "Nibelungos", e depois matara o gigante Fafner, amigo dos anões. Para proteger o seu enorme tesouro, Fafner o guardara em uma caverna e se transformara em dragão para melhor defendê-lo, mas Siegfried dele se apodera após matar o monstro e tornar-se invulnerável banhando-se no seu sangue. No processo, uma folha cai de uma árvore e cola-se nas suas costas, impedindo o sangue da fera de blindá-lo totalmente e deixando-o vulnerável nesse ponto.


                    Siegfried mata o dragão e após banhar-se no seu sangue fica invulnerável, exceto em local das
                           costas onde uma  folha caída se grudara e impedira de ser banhado pelo sangue da fera
             
Depois dessa extraordinária façanha, o seu clan adota o nome de "Nibelungos" por ter a posse do Tesouro e ele vai à Worms, capital da Burgundia, pedir ao rei Gunther a mão de sua irmã Kriemhild, cuja beleza é celebrada por todos. Este não a apresenta de logo ao herói, pois resolve primeiro testar a sua bravura encarregando-o de liderar uma guerra contra os dinamarqueses. Quando ele volta vitorioso após realizar novos prodígios, é apresentado a Kriemhild e fica ainda mais apaixonado, porém Gunther diz que só lhe concederá a mão da irmã se o príncipe ajudá-lo a conquistar a virgem valquíria Brunhild, rainha do "país das névoas" (identificada no poema como a Islândia, mas provavelmente uma tribo da Escandinávia). Ela é famosa por sua extraordinária força e poderes mágicos, tendo declarado que só se casará com o homem que a vencer numa série de desafios por ela própria criados.
             
Não consta do poema, mas consta das sagas nórdicas que ambos já se conheciam, pois anos antes Siegfried, utilizando-se dos talismães enfeitiçados que roubara de Nibelungo, não só a acordara de um sono mágico como a libertara do círculo de fogo onde o deus Wotan seu pai a aprisionara após grave desentendimento. Siegfried e a valquíria teriam se apaixonado, mas ela recusara-se a dar-lhe sua virgindade temendo perder seus super-poderes e ele a abandonara profundamente frustrado. Depois disso ela jurara que só se entregaria ao homem que lhe fosse superior em força e bravura, o que era praticamente impossível acontecer. Ocorre que ao apoderar-se do tesouro Siegfried também se apoderara dos talismães enfeitiçados de Fafner com os quais, segundo as sagas escandinavas, salvara Brunhild e poderia tê-la ganho com eles, porém não o fez por querer que a conquista se devesse aos seus méritos e não à artes mágicas. Por isso desistira dela e se apaixonara por Kriemhild, sendo ardentemente correspondido.

 Brunhild é filha do deus Wotan, mas ele a prende em um círculo de fogo e
               Siegfried a liberta. Gravura de Ferdinand Leek (séc. XIX)
             
No poema ele não se importa com Brunhild e quer ganhar Kriemhild a qualquer custo, por isso veste o capuz mágico roubado dos anões feiticeiros e com os seus super-poderes assume as feições de Gunther para vencer em seu lugar os testes de força exigidos pela indômita valquíria. Porém ela fica desconfiada de ter sido enganada por Gunther e se apaixona por Siegfried, mas tem de cumprir sua palavra e casa-se com Gunther na mesma cerimônia em que Siegfried também se casa com Kriemhild. Contudo, ela o faz contrariada por estar enciumada de Kriemhild e suspeitosa de ter sido vencida nos testes mediante engodo. Por isso nega-se ao marido na noite de núpcias, amarrando-o e pendurado-o no teto de forma ridícula para que ele não a moleste durante o sono.

          No poema Brunhild é poderosa guerreira que reina no País das Névoas e por amor vira mulher comum,
                  mas nas nas sagas nórdicas é divindade que galopa nas nuvens. Tela de Peter Arbo (séc. XIX) 
             
Desesperado, Gunther novamente recorre ao cunhado para que com os seus poderes convença Brunhild a aceitar a consumação do casamento, mas Siegfried resolve divertir-se aproveitando a situação para deflorar Brunhild e não para convencê-la a se entregar a Gunther. Assim, usa o capuz mágico para ficar invisível e entrar no quarto da valquíria, dominando-a e deflorando-a. Não satisfeito, rouba-lhe os mágicos cinto de seda e anel de ouro, que são os símbolos da sua pureza e fontes do seu poder. Após também usar o capuz mágico para fazê-la esquecer o estupro, oculta sua torpeza e diz a Gunther que a encantou e ela não mais lhe resistirá. Ignorante do que o cunhado fizera, coisa que a própria Brunhild ignora, Gunther consuma o casamento por ter ela ficado fraca ao perder a virgindade e os poderes mágicos. Enquanto isso Siegfried, sentindo-se orgulhoso da sua façanha, conta-a à Kriemhild e a presenteia com os troféus roubados da valquíria.

          Sigfried apaixona-se ao conhecer a doce Kriemhild, mas a concepção de amor do poema difere daquela
                                 da Idade Média e da atual, pois é moralmente inaceitável o que ocorre em Nibelungos 
             
Não sabendo da fraude do marido, ela fica enciumada por achar que ele apenas cedera aos encantamentos de Brunhild, mas o perdoa e aceita as jóias da outra. Na verdade ela está não somente enciumada, mas também enraivecida por achar que as jóias foram dadas por Brunhild a Siegfried como suborno para seduzi-lo. Porém ela guarda segredo e as coisas parecem calmas até o dia em que o casal vai a Worms visitar os soberanos. As duas mulheres então brigam por vaidade na entrada da catedral e Kriemhild, com ciúmes de Brunhild, chama-a de prostituta e acusa-a de seduzir Siegfried, trazendo a trama à superfície.
             
Cientes do estupro, a estupefata Brunhild e o indignado Gunther rompem com eles, fazendo com que Hagen, fiel amigo de Brunhild e parente próximo de Gunther, decida vingá-la do sórdido defloramento. Após acumpliciar-se com o marido ultrajado, Hagen engana Kriemhild fazendo-a revelar o ponto fraco de Siegfried enquanto Gunther finge fazer as pazes com ele. Após elaborarem o seu traiçoeiro plano, convidam Siegfried para uma caçada durante a qual Hagen aproveita-se do momento em que o herói se curva para beber água em um regato e crava-lhe a lança no seu único ponto vulnerável: o que a folha impedira de ser banhado pelo sangue do Dragão!

          Atraído a uma caçada por traidores, Siegfried morre ao ser ferido no seu único ponto vulnerável: a parte
                                        das costas que não fora banhada pelo sangue do dragão! Cena do filme "Die Niebelungen"
             
O mal e a total ausência de cavalheirismo eram até então presenças constantes em Nibelungos, mas mostravam-se em vestes discretas, porém o frio assassinato de Siegfried abre a caixa de Pandora e os demônios espalham-se sem peias pelo mundo, tornando-se a única força que de fato domina as mentes e conduz os acontecimentos. Se a desonestidade, o engano e a indecência até então eram o contraponto do poema aos altos ideais de honra, verdade e lealdade que norteiam o romance medieval cristão de cavalaria, agora são os valores abertamente pagãos de ódio e vingança entronizados naquele que vão contrapor-se aos valores de amor e justiça consagrados neste. Untando sua mão no sangue de Siegfried, a até então doce Kriemhild decide que vingará o marido covardemente morto custe o que custar. Para ela, heroína da segunda parte do poema, o ódio é muito mais forte que o amor, o perdão não existe e a vingança é mais importante que a justiça.

                     Kriemhild transforma o amor pelo marido desleal em ódio pelo irmão e decide que a vingança
                                                       é mais importante que a justiça. Cena do filme "Die Nibelungen"
              
Kriemhild volta-se contra o seu irmão Gunther e  seus demais familiares, sobretudo o assassino Hagen, e assume a liderança da família do marido morto, mostrando a todos valentia e determinação até então desconhecidas. É quando o poema mostra que no litígio estão também envolvidos o roubo e a cobiça, pois a principal reivindicação de Kriemhild e seus partidários não é apenas a vingança, mas a devolução do valioso tesouro dos Nibelungos roubado pelos assassinos.
             
Após matar Siegfried, Hagen tinha se apoderado da sua espada famosa e do seu fabuloso tesouro, vangloriando-se da sua traição como se fosse um herói por assassinar covardemente um verdadeiro herói e roubá-lo. Mais do que o assassinato é isto que enfurece Kriemhild e os seus partidários, fazendo inclemente e catastrófica a luta familiar que se segue ao crime. Em consequência, Hagen julga que o Tesouro dos Nibelungos é amaldiçoado e é a causa de todas as desgraças, além de ser também um grande perigo para o seu partido, pois aumentará o poder de Kriemhild caso volte às suas mãos. Assim, resolve livrar-se dele entregando-o à guarda das ninfas do Reno.

                                          A doce Kriemhild chora Siegfried, amaldiçoa os seus assassinos e jura
                                                                   vingança. Cena de "Os Nibelungos" de Fritz Lang
             
Depois que Hagen desfaz-se do tesouro a luta fratricida se acalma, mas Kriemhild persiste secretamente no seu primitivo intento e firma um tratado de paz fingindo ter perdoado os seus parentes assassinos. Ela aparenta manter-se em bons termos com eles, mas é tudo um engodo e o faz apenas para fortalecer-se enquanto espera como serpente traiçoeira a oportunidade de destruí-los.

Hagen suspeita da traição de Kriemhild e adverte Gunther. Cena do filme "Die Nibelungen" 
             
Finalmente, ao casar-se em segundas núpcias com Wetzel, nome que os germânicos dão a Átila o Huno, ela consuma a sua vingança fazendo o seu feroz marido preparar uma armadilha para os seus familiares assassinos. Assim, os convida para um banquete em sua corte na Hungria e eles ingenuamente aceitam, sendo recebidos com grandes festas e efusivas manifestações de amizade até que Wetzel subitamente lhes dá voz de prisão. A luta explode entre hunos e burgundos no salão real e após terrível combate, onde o próprio filho de Átila e Kriemhild é morto à vista do casal, os burgundos expulsam os hunos do palácio e nele se entrincheiram, somente depondo as armas quando Kriemhild manda incendiá-lo. Finalmente dominados, o rei dos hunos entrega à vingança da esposa todos os prisioneiros, entre os quais estão Gunther e Hagen.

                 Kriemhild torna-se monstruosa após a morte de Siegfried e faz com que Wetzel (Átila), seu segundo
                            marido, a ajude a matar o próprio irmão e seus cúmplices. Cena do filme "Die Niebelungen"
             
Com o seu ódio à flor da pele por terem eles durante as festas vangloriado-se do covarde assassinato de Siegfried, julgando erroneamente que de há muito estivesse tudo esquecido e perdoado, Kriemhild os humilha com escárnio e manda executar todos os prisioneiros, inclusive o seu irmão Gunther, mas poupa Hagen porque não acredita que ele tenha entregue o Tesouro às ninfas do Reno e o quer de volta. Assim, ela lhe exibe a cabeça de Gunther dizendo que o mesmo lhe acontecerá caso não revele onde escondeu o tesouro, mas ele se nega e ela pessoalmente lhe corta a cabeça com a mesma famosa espada que ele roubara de Siegfried. Na ocasião o cavaleiro Hildebrand fica indignado com o procedimento traiçoeiro, vingativo e cobiçoso de Kriemhild e mata-a sem que Átila o impeça, pois a essa altura ele também a reprova pelos males causados. O poema termina com o poderoso rei dos hunos lamentando a morte de tantos heróis e manifestando a esperança de que a sua história não seja esquecida.

       A luta no palácio de Átila é feroz e no final os burgundos são exterminados. Cena do filme "Die Nibelungen" 

Inúmeros episódios igualmente crueis e fantásticos permeiam o núcleo central da narrativa, dando ao poema notável vivacidade ao por em evidência o lado negro do ser humano, pois é um festival de roubos, trapaças, intrigas, traições, feitiçarias, vinganças e assassinatos, onde dragões, bruxos e seres demoníacos estão por toda parte. Nele o super-homem está mais para super-vilão do que para super-herói e pouca coisa realmente nobre e decente acontece. As razões de ter se tornado tão famoso só podem ser buscadas na beleza dos versos e na magia da música de Wagner, porque moralmente é calamitoso.

                   Ao contrário dos poemas cristãos onde os maus tornam-se bons pelo perdão e arrependimento,
                                                             em Nibelungos os bons tornam-se maus e Kriemhild vira um monstro 
             
Não é de se estranhar, portanto, tenha a sua intrínseca indecência e desumanidade, apresentadas em belas e sedutoras vestes, impressionado de forma tão avassaladora a doentia mente nazista. Alguns chegam mesmo a dizer, embora disso eu discorde, que o poema revela muito do eu profundo dos alemães e explica parte das atrocidades que praticaram em tempos recentes, mas devemos considerar tais opiniões preconceitos que não fazem justiça ao muito que também deram à humanidade ao longo da história. Em todo caso, tais interpretações são assunto para psicanalistas e não para historiadores.
             
Fritz Lang, o famoso diretor alemão que fez o magnífico filme Die Niebelungen em 1924, era ativo anti-nazista e sempre repudiou as insinuações de que a sua obra contribuíra para a "mitologia hitlerista", afirmando que Nibelungos era tão somente uma obra-prima da poesia germânica medieval celebrando as lendas e os mitos de um povo em seus estágios primitivos de civilização, tendo ele para os alemães o mesmo significado que a Ilíada tinha para os gregos. Mas eu creio que Lang somente estaria certo caso Nibelungos tivesse sido escrito em plena Era Pagã, como foi o caso da Ilíada, e não em plena Era Cristã.
             
Restam vários exemplares fragmentados e alguns completos do que se considera a publicação original de Nibelungos no século XIII, mas apresentam diferenças entre si, uns apresentando episódios que não constam dos outros e vice-versa. Todavia não há duvida de que são do mesmo autor, o que leva a supor que tenham sido fruto de edições separadas por alguns anos e que ele tenha decidido acrescentar alguns episódios e excluir outros, daí as diferenças. Porém elas não alteram o enredo nem afetam o valor literário da obra.

   Cabe à valquíria escolher os guerreiros mortos em combate que devem ir para o Valhala,
                   por isso ela está muito associada à morte. Tela de Peter Arbo (séc. XIX)
             
Há que se levar em conta também que na época os livros eram manuscritos e não impressos, o que fazia com que raramente dois exemplares fossem rigorosamente idênticos. Alguns copistas eram criativos e gostavam de modificar ou inovar sem alterar de modo flagrante a forma ou o conteúdo da obra. Se fossem talentosos para não só criar, mas também assimilar e reproduzir o estilo do autor, versos e até estrofes inteiras podiam ser acrescentadas a um poema sem que se visse a mão alheia. Porém o mais provável é que as mudanças tenham sido feitas pelo próprio autor entre uma edição e outra.
             
Existem poemas germânicos medievais menores e sagas nórdicas tendo como personagens os mesmos heróis e heroínas que povoam os versos de Nibelungos. Brunhild, por exemplo, aparece em alguns poemas escandinavos como "anjo do mal" e em outros como "anjo do bem". Isto é explicável por não ser ela burgunda e em Nibelungos ser apresentada como "raínha do país das névoas", certamente um país da Escandinávia, mas o correto é tê-la como uma primitiva divindade tanto escandinava quanto germânica, pois o germânico deus Wotan, o pai cruel que a castiga aprisionando-a no círculo de fogo, é sob o nome de Odin um deus também escandinavo.
             
Todavia há indícios de que Nibelungos, embora fantasioso na sua essência, baseia-se em fatos reais ocorridos durante as grandes invasões bárbaras do Império Romano, nas quais os burgundos tiveram papel importante. Não só Átila o Huno é um personagem histórico real como historicamente reais foram as sua alianças e lutas com os burgundos, bastante realçadas no poema, sendo certo que ele os massacrou em 437, após estes terem sido derrotados pelo romano Flávio Aécio, e teve como esposas princesas borgonhesas em decorrência de alianças políticas. Assim, é bem possível que Siegfried, Kriemhild e Guntherfried (Sigefredus, Cremilda e Godofredus para os romanos) tenham sido pessoas reais que depois foram mitificadas pela lenda.

             

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Post nº 09

O  DIA  EM  QUE  SANTOS  E  ANJOS  FIZERAM  ÁTILA  RECUAR

O inexplicável recuo de Átila em 452, após conferenciar com o Papa Leão I no norte da Itália, é
um dos grandes mistérios da história. Afresco de Rafael (séc. XVI) 




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Em 452 Átila cruzou os Alpes Orientais com o seu enorme exército de cavaleiros hunos e devastou o norte da Itália. Sem condições de enfrentá-lo em batalha campal, pois o exército romano era muito inferior ao exército huno, o general Aécio foi para as montanhas com os seus poucos batalhões e lhe moveu incansável guerra de guerrilhas. Porém Átila continuou a saquear e destruir, até que resolveu marchar para o sul e apoderar-se da mais rica presa de todas: Roma!

O caminho estava completamente aberto: não havia nenhum exército inimigo e a população civil abandonara suas casas, fugindo aterrorizada para as montanhas. Devido ao ódio que tinha aos romanos e ao cristianismo, o rei dos hunos era chamado de “O Flagelo de Deus” e contava-se que o seu passatempo favorito era incendiar igrejas e crucificar padres, dizendo-lhes rindo que assim eles chegariam à presença de Jesus Cristo de acordo com a sua fé e a certeza da salvação. Porém é possível que muita coisa fosse lenda ou propaganda do próprio Átila para se fazer mais aterrador e assim obter o que queria. Durante anos ele obtivera fortunas chantageando o Império Romano do Oriente, porém quando decidiu fazer o mesmo com o Império Ocidental o general Aécio, que o conhecia bem, se opôs e o derrotou em grande batalha na França atual em 451. Mas para realizar tal façanha Aécio tivera o apoio de Visigodos, Alanos, Francos, Burgundos e dezenas de outras tribos bárbaras menores já estabelecidas na Gália atacada e em acelerado processo de romanização. Porém referidas tribos estavam distantes e Aécio não contou com o mesmo apoio quando no ano seguinte Átila atacou a própria Itália com milhares de ferozes cavaleiros da Europa central e do leste. Por isso o general romano se refugiou nas montanhas com o seu pequeno exército e limitou-se a ações de guerrilhas contra o líder huno, seu ex-amigo e antigo aliado.

O grande adversário de Átila era o general romano Aécio, mas ele não dispunha
de exército capaz de enfrentar os hunos. Ilustração gráfica do autor

Não havendo obstáculos entre os terríveis invasores e a capital do mundo, Átila pôs-se em marcha com suas centenas de batalhões bárbaros e foi aí que aconteceu um dos fatos mais surpreendentes e misteriosos da história: à sua frente surgiu o Papa Leão I montado em uma mula, acompanhado de uma centena de padres e de alguns altos dignitários romanos, todos eles em trajes simples e completamente desarmados. O que se passou de verdade ninguém sabe, pois tudo que temos é o relato da própria Igreja, mas o fato é que Átila fez meia-volta e desistiu de destruir Roma após conversar longamente com o Papa. Em seguida retirou-se da Itália acossado pelos batalhões guerrilheiros de Aécio e regressou ao seu reino. No ano seguinte morreu de causas naturais enquanto dormia ao lado da esposa em seu palácio de madeira na Hungria atual.

Quando ele desistira de atacar Roma todos gritaram “Milagre!”, pois a Igreja dizia que Átila obedecera a ordem de Leão para recuar depois que vira São Pedro e São Paulo pairando no ar sobre a cabeça do Papa, tendo atrás deles uma coorte de anjos com ameaçadoras espadas de fogo; Átila e os seus guerreiros tinham ficado tão apavorados que preferiram não insistir e decidiram fazer o longo caminho de volta. Por incrível que pareça, esta versão predominou durante mais de mil anos e inspirou artistas como Rafael a retratarem o fantástico evento em esculturas e quadros famosos. Somente a partir do século XVIII, com o advento do Iluminismo e da chamada “Era da Razão”, é que surgiram dúvidas e a versão da Igreja foi contestada. Vários historiadores apresentaram versões alternativas, mas nenhuma teve comprovação histórica e elas continuam a ser hoje o que eram no início: apenas hipóteses!

Escultura em mármore no Vaticano sobre o encontro de Átila e Leão I
em 452 no norte da Itália. Alessandro Algardi (séc. XVII)

As únicas testemunhas do fato extraordinário estão mortas há mais de mil e quinhentos anos e a versão que elas nos deram é a que foi divulgada pela Igreja. Duvido que algum dia o mistério possa ser esclarecido. De qualquer forma, peguei um fato histórico comprovado aqui, outro acolá, e embora não se referissem diretamente a entrevista de Átila com o Papa, juntei todos eles de forma coerente e ofereci a minha versão no Capítulo III do meu romance “O Senhor dos Dragões”. Penso que ela não está longe da verdade, mas é uma hipótese como as outras e os interessados no assunto podem discuti-la e formularem suas próprias versões.

Enquanto isso permanece o mistério!



terça-feira, 2 de novembro de 2010

Post nº 08

O  TENEBROSO  JULGAMENTO  DOS  CAVALEIROS  TEMPLÁRIOS

Morte na fogueira em março de 1314 de Jacques de Molay, grão-mestre dos
Cavaleiros Templários. Autor anônimo (séc. XIX)

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Poucos dias depois do golpe, doutores da Universidade, ordens da nobreza, confrarias religiosas, corporações profissionais e enorme multidão reunidos em vasta praça de Paris com bandeiras desfraldadas ao vento, ouvem o libelo acusatório de Felipe: “Uma coisa amarga e deplorável, horrível de pensar e terrível de ouvir, execrável de perfídia e detestável de infâmia, uma coisa que nada tem de humano, mas que é atestada por inúmeros testemunhos, chegou aos nossos ouvidos, causando-nos violento espanto e horror indizível. A nossa dor foi imensa ao sabermos dos crimes enormes praticados contra a majestade divina e a fé católica, crimes que são uma vergonha para a humanidade, um exemplo de perversidade e um escândalo público”! Em seguida, enumera os sórdidos crimes que atribui aos cavaleiros: a) na cerimônia secreta de admissão na Ordem renegam Cristo três vezes e cospem no crucifixo; b) dão e recebem beijos obscenos nas partes íntimas; c) praticam a sodomia; d) adoram ídolos e cabeças de animais empalhadas, sobretudo a de um bode que representa Satanás; e) não fazem a consagração da óstia durante a missa e a rezam diante de uma cruz de cabeça para baixo; f) se masturbam diante da imagem da Virgem; g) urinam nas imagens dos santos; h) festejam com as bruxas nos bosques a noite de Walpurgis; i) promovem orgias na quinta-feira santa para ridicularizar a Última Ceia de Jesus; j) vendem suas almas a Satanás em troca de riquezas... e por aí vai o absurdo rol de acusações, um dos libelos mais estapafúrdios da História!


A Inquisição e os clérigos que odeiam os Templários são as maiores armas
       de Felipe no torpe processo. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)
         
Porém, numa época de fanatismo e superstição, o esdrúxulo libelo é de enorme eficácia para destruir os acusados perante a opinião pública. Sob terrível tortura muitos confessam; os que não confessam morrem e os carrascos dizem que "se suicidaram" por não suportarem o peso dos próprios pecados; aqueles que mais tarde renegarem as confissões serão queimados como impenitentes. Seiscentos anos antes dos “julgamentos” ordenados por ditadores totalitários contra os seus rivais, durante os quais confissões descabidas e insensatas serão atribuídas pela imprensa democrática a refinadas técnicas de lavagem cerebral da polícia secreta, Felipe consegue o mesmo sem dispor de meios tão sofisticados. Sem imprensa ou rádio, ele também cria no século XIV a propaganda difamatória massiva. Para tanto usa arautos que lêem sem cessar em todo reino confissões extorquidas a ferro e fogo, dando no século XX aos tiranos o imoral ensinamento de que a mentira incessantemente repetida acaba se tornando verdade!

Bispos e monges de outras Ordens que odeiam os Templários lhes aplicam
          as mais atrozes torturas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)
            
Enquanto se desenrola o execrável processo, trava-se acirrada luta entre Felipe e o Papa Clemente V, que diante do fato consumado não tem outra opção senão aprovar o ato policial do rei, mas dizendo que o processo judicial é da alçada da Santa Sé, pois só ela tem jurisdição sobre a matéria. Atrás disso não está apenas a tentativa do Papa de restaurar sua autoridade, mas a posse do enorme patrimônio da Ordem. Em consequência, ele recusa-se a extingui-la enquanto o assunto não for resolvido e até lá os príncipes serão apenas fiéis depositários dos bens seqüestrados. Indo adiante, Clemente promove reunião secreta do Colégio de Cardeais no castelo de Chinon onde é aprovada bula papal em junho de 1308 anistiando os Templários. Porém Felipe é informado e impede a sua publicação, mantendo virtualmente prisioneira toda a cúpula da Igreja. Os altos prelados se calam e o decreto de anistia somente será conhecido setecentos anos depois quando os arquivos secretos do Vaticano são abertos à pesquisas de historiadores independentes.

    O Papa Clemente V é o modelo perfeito do indivíduo covarde e
                pusilânime. Gravura de autor anônimo  (séc. XVIII)
 
O Papa tenta salvar sua cambaleante autoridade mudando-se com sua corte para território fora da jurisdição real e em agosto de 1308 convoca Concílio para resolver o caso na cidade de Vienne, sudeste da França, mas independente da autoridade de Felipe. O rei contra-ataca e convoca assembleia de príncipes e bispos franceses na cidade de Lion, muito mais populosa e importante que a pequena Vienne, para examinar a conduta infame do falecido Papa Bonifácio VIII, antecessor de Clemente V. Este se amedronta e adia o início do Concílio, que só se reunirá três anos mais tarde. No interregno Felipe finge negociar, mas não entrega ao Papa nenhum dos prisioneiros. Sadicamente tortura-os nas masmorras e de vez em quando queima alguns em praça pública.
           
Para mostrar que não está brincando, em 1310 manda queimar em Paris cinquenta e dois cavaleiros de uma só vez, no que foi a maior execução por esse tipo de suplício da história. Os executados não ocupam posições importantes e são de categoria social inferior, pois ou pertencem à pequena nobreza sem influência política ou provêm das classes baixas, tendo sido nobilitados pela própria Ordem ao serem sagrados cavaleiros. Isto faz com que a alta aristocracia se abstenha de manifestar insatisfações ou protestos e fortalece ainda mais a autoridade de Felipe, que há tempos é também chamado pelo povo de "O Rei de Ferro". Por enquanto ele poupa o estado-maior templário, não só porque é constituído por cavaleiros bem conectados na alta nobreza, mas também porque tem esperanças de que lhe revelem o paradeiro do Tesouro da Ordem, pois é voz geral que ele não foi encontrado quando o Templo foi invadido na manhã do golpe.

Em 1310 Felipe manda mensagem de advertência ao Papa queimando
templários em massa. Iluminura medieval 
           
Daí em diante o rei implacável adota o expediente de mandar à fogueira de tempos em tempos alguns modestos cavaleiros independentemente de aprovação papal para mostrar à alta cúpula da Igreja que não tolerará absolvições eclesiásticas nem subterfúgios legais que visem salvar a Ordem da extinção. O seu trabalho é facilitado pela covardia de Clemente que passa a aparentar estar ao lado de Felipe, ordenando aos demais príncipes católicos que prendam os Templários que estiverem em seus territórios e lhes confisquem os bens. Porém apenas Eduardo I da Inglaterra, onde a Ordem quase não tem presença, e alguns príncipes alemães o obedecem, mas apenas na Alemanha há algumas execuções. Os príncipes de Chipre e de Rhodes obedecem, mas não há execuções. Todavia na Península Ibérica, onde estão dois terços dos cavaleiros e castelos templários na Europa, os decretos papais são solenemente ignorados e a Ordem continua funcionando normalmente.
           
Enquanto se desenrola o processo, Felipe e os príncipes europeus, exceto os reis ibéricos de Portugal, Castela e Aragão, vão roubando e dilapidando os bens da Ordem. Para agir com tanta desenvoltura e desprezo pela supremacia papal Felipe tem uma arma poderosa: o processo secreto movido pela Coroa Francesa e seus bispos mais fieis contra a devassidão e os desmandos do Papa anterior, Bonifácio VIII, a quem a morte salvara de uma deposição ignominiosa. Friamente, Felipe ameaça torná-lo público e queimar na fogueira os restos do Papa falecido, desmoralizando a Cúria de uma vez por todas caso Clemente insista numa atitude não cooperativa. Assim, tendo o papado em xeque, ele faz o que quer e mantém o Sumo Pontífice calado e omisso.

           Felipe periodicamente queima templários em praça pública para manter submissa toda a alta
                                     cúpula da Igreja através do terror de Estado. Iluminura medieval
             
Em 1311 o Concílio enfim se reúne depois que Felipe consegue impor a sua agenda e impedir a presença de prelados notoriamente favoráveis aos Templários. Como se já dando por certa a extinção da Ordem, o assunto a ser debatido será o que fazer com os seus bens! O tópico é absurdo porque o estatuto da Ordem diz claramente que o papado é o seu herdeiro e portanto não há o que discutir, mas é precisamente o que o acovardado Papa permite discutir, pois o interesse de Felipe e dos seus associados é não só despojar a Ordem, mas também a Igreja dos bens que legitimamente lhe pertencem. Apesar de ser uma assembléia manipulada, os escrúpulos jurídicos da maioria dos seus membros os faz decidir que não é possível condenar os réus sem que eles sejam ouvidos; por isso ordena que Felipe os apresente para que sejam corretamente julgados. Porém, temendo que os cavaleiros sejam absolvidos e escapem das suas garras, Felipe capciosamente argumenta que é desnecessário apresentá-los in corpore, pois uma comissão nomeada pelo Concílio poderá muito bem fazê-lo na prisão onde os réus se encontram. Mais uma vez o Papa se curva e os templários presos ainda vivos, exatamente a cúpula da Ordem, jamais comparecerão diante de um verdadeiro tribunal antes do Juízo Final. É uma luta política feroz e indecente onde todos os meios são válidos, até mesmo a vil chantagem praticada sem qualquer pudor pelas autoridades mais altas da Terra.

  Interrogatório de Jacques de Molay pelo tribunal da Santa Inquisição.
                              Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)
            
Em abril de 1312, no final do Concílio, é selado um acordo que permite ao Papa Clemente V salvar a cara e a Ordem é extinta, mas ao invés dos seus bens irem para a Santa Sé irão para os Cavaleiros Hospitalários, uma Ordem bem menos poderosa e mais acessível à vontade dos reis. Os novos proprietários levarão anos tentando arrecadá-los, pois quase tudo foi desviado através de inescrupulosas manobras de príncipes e bispos vorazes cujos "documentos" os cordatos Cavaleiros Hospitalários não se atrevem a contestar. No fim eles só herdarão dívidas!
            
Controlando o Concílio do começo ao fim, Felipe dele se utiliza para roubar ainda mais e astutamente sugere uma "nova cruzada" para reconquistar Jerusalém. Claro que tanto ele quanto Clemente V sabem que isso é inviável, mas o que ambos de fato pretendem é arrecadar o famoso dízimo dos cruzados, imposto que é lançado sempre que se organiza uma nova Cruzada e que tem por fim financiá-la. A "cruzada" é convocada, o dízimo é cobrado e Felipe e Clemente esquecem o assunto logo que enchem os bolsos.
            
Em Portugal, onde a Ordem do Templo continua funcionando e a Ordem do Hospital não tem presença, o rei Diniz nomeia os próprios ex-templários para administrarem os bens que já administram e tudo continua na mesma. Mais tarde ele cria a Ordem dos Cavaleiros de Cristo e obtém autorização papal para doá-los à nova Ordem, na qual admite os antigos cavaleiros templários. Com essa manobra transforma a Ordem do Templo na Ordem de Cristo e os cavaleiros de uma em cavaleiros da outra.
            
Finalmente o processo do estado-maior Templário é concluído pelos inquisidores, inteiramente dóceis à vontade de Felipe, e os cavaleiros são condenados à morte na fogueira por heresia e devassidão. Felipe os executa coletivamente em horrendo espetáculo público, mas, não se sabe bem por que, poupa os dois mais importantes durante alguns meses. Embora não existam provas documentais ou testemunhais, tudo indica que ele o faz porque ainda tem esperança de por a mão no tesouro desaparecido da Ordem, procurando por isso negociar com os dois altos prisioneiros a revelação do seu esconderijo em troca das suas vidas. Mas as evidências são de que a aquela altura eles não tinham mais nenhuma confiança no sórdido monarca e decidiram levar para o túmulo o segredo, saboreando em silêncio a terrível frustração imposta ao seu feroz inimigo.

                              Jacques de Molay amaldiçoa o Papa Clemente e o Rei Felipe. Gravura de
                                                                           autor anônimo (séc. XIX)
             
Há uma versão que diz terem os cardeais lhes aplicado a pena de prisão perpétua, mas a teriam agravado para pena de morte em virtude dos réus terem veementemente protestado inocência. O fato é verdadeiro, mas os cardeais modificam o veredito não por serem os réus "impenitentes", mas porque Felipe fica furioso e os manda modificá-lo sob pena de irem todos juntos para a fogueira. Não é por acaso que Felipe é também chamado de "O Rei Falsário" e "O Rei de Ferro".
            
No dia 14 de março de 1314 o Grão-Mestre Jacques de Molay e o seu mais importante auxiliar, Godofredo de Cherney, são levados à fogueira em Paris na presença de grande multidão e do rei. Contam que várias vezes ele amaldiçoou os seus algozes e mesmo em meio às chamas ainda teve forças para gritar ao rei: Antes que o ano acabe, tu e Clemente comparecerão ao Tribunal Celeste e receberão de Nosso Senhor Jesus Cristo o justo julgamento!


     A maldição foi forte, dando origem à lenda dos "reis
          malditos". Gravura de autor anônimo (séc. XIX)
            
Em 20 de abril o Papa Clemente V morre em meio a uma repugnante crise de vômitos e em 29 de novembro o rei Felipe o segue, após ficar completamente paralisado por uma queda de cavalo. No ano anterior, poucos meses antes da execução, o jurista Guilherme de Nogaret fora encontrado em sua mesa de trabalho com a cabeça caída sobre os autos que examinava e os olhos esbugalhados, vítima de fulminante apoplexia. Como Jacques de Molay profetizara do alto do patíbulo, os seus três principais algozes estavam mortos antes que o fatídico ano de 1314 chegasse ao fim!

   A execução de Jacques de Molay e Godofredo de Chernay tornou-se
                        célebre. Gravura de autor anônimo (séc. XIX)
            
Coincidência ou não, a morte dos amaldiçoados obedece rigorosamente à hierarquia, pois primeiro morre o Papa, depois morre o Rei, e finalmente morrem os seus descendentes, pois Felipe é sucedido em perfeita ordem de idade pelos seus três filhos que em dez anos morrem um atrás do outro após curtos reinados. Para completar, eles não deixam herdeiros e a Dinastia Capeto se extingue após ter governado a França por mais de trezentos anos. Tão grande coincidência dá origem à famosa lenda dos "Reis Malditos"porque para os supersticiosos a maldição de Jacques de Molay foi daquelas tão fortes que atingem tanto o amaldiçoado quanto à sua família.

Em novembro de 1314 Felipe o Belo morre devido à uma queda de cavalo. Iluminura medieval
             
Outra lenda diz que quando o dia 13 de outubro coincide com uma sexta-feira e há lua cheia, aparece nas ruínas dos antigos castelos templários o fantasma de cavaleiro armado dos pés à cabeça portando o manto branco e o escudo com a cruz. Olhando em volta ele grita: Quem defende o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo?

E o eco responde: Ninguém... A Sagrada Ordem do Templo está morta!