terça-feira, 26 de agosto de 2014

Post nº 81

O  IMPERADOR  QUE  DESFILOU  PELAS  RUAS  COMO   PALHAÇO  ANTES  DE  SER
EXECUTADO

Moedas com efígie de Johannes cunhadas no seu curto reinado (425-26 DC). De todos os imperadores
romanos, ele, Vitellius, Heliogabalus e Maximus foram os que tiveram morte mais infame


Para adquirir estes livros clique acima em nossa livraria
virtual ou no site da Amazon.com



Em 423 a imperatriz Galla Placídia, viúva do ex-imperador adjunto Constâncio, foi expulsa da Corte imperial em Ravena por seu irmão o imperador Honório. Comentava-se que após a morte de Constâncio ela tentara forçar o irmão a adotar como herdeiro e sucessor o seu filho Valentiniano de apenas quatro anos de idade e isto irritara Johannes, secretário de Honório e verdadeiro governante civil do Império. Em consequência, Placídia foi expulsa e exilada em Constantinopla.

O imperador Honório reinou por 30 anos mas nunca governou coisa nenhuma, pois era um idiota enfermiço que deixava tudo na mão dos seus incompetentes e corruptos assessores. Na verdade Honório não tinha capacidade para distinguir ou julgar da competência ou honestidade de quem quer que fosse.

Durante o seu incompetente reinado, de 395 a 425, Roma foi tomada e saqueada pelos Godos em 410 e o Império só não se esfacelou antes ou depois porque teve a sorte de ter no comando do exército competentes generais como Stilicon, Constâncio, Bonifácio e Aécio, sendo que Constâncio chegou a ser seu cunhado e imperador adjunto. Porém passou pouco tempo no cargo, pois morreu subitamente dois anos antes de Honório.

Durante o reinado do incompetente Honório os aguerridos Godos conquistaram e saquearam Roma 

Em 425 os romanos receberam a notícia de que o imbecilizado Honório finalmente morrera e souberam com estupefação que o burocrata Johannes proclamara-se imperador com o apoio do ilustre patrício Castinus, usurpando o trono do herdeiro legítimo Teodósio II, imperador Romano do Oriente e sobrinho do falecido imperador do Ocidente.

Johannes era um burocrata astuto e sabia muito bem que o distante Teodósio nada poderia fazer contra a sua usurpação desde que tivesse a seu favor um poderoso exército, por isso escreveu a todos os altos comandantes militares das províncias fronteiriças, onde se concentrava o grosso das legiões, pedindo o seu apoio. Quase todos evitaram comprometer-se com o secretário usurpador e responderam que eram militares profissionais que não entendiam nada de política e não queriam envolver-se em assuntos fora da sua alçada. De qualquer forma, disseram-lhe que não se opunham à sua pretensão e o serviriam nas mesmas funções, tal como serviriam a qualquer outro governo que fosse legitimamente aceito.

A única exceção foi o general Aécio, que após alguma reticência prometeu auxiliá-lo com um exército de cavaleiros hunos, pois vivera como refém entre eles por vários anos e construíra sólidos laços de amizade com os líderes dessa tribo guerreira estabelecida onde hoje é a Hungria. Contudo há dúvidas sobre a sinceridade de Aécio porque ele nada fez de concreto para sustentar Johannes no poder, ausentando-se do palco dos acontecimentos sob o pretexto de que iria buscar pessoalmente o exército huno que prometera e ficando fora por vários meses enquanto a situação do novo imperador deteriorava-se.

Porém Johannes entendeu as dúbias declarações dos demais generais como sendo apoio tácito e exibiu as cartas aos comandantes das fracas guarnições da península italiana, deles recebendo a peso de ouro o apoio militar de que tanto necessitava. Mas o conde Bonifácio, comandante do poderoso exército do norte da África, foi radical e o informou que se não estivesse ocupado com uma grande revolta dos berberes marcharia sobre Ravena para destronar o usurpador.

O prestigioso general Bonifácio era rival do general Aécio e posicionou-se contra
Johannes a favor de Teodósio

Mas fosse pela falta de algo melhor, fosse porque estavam motivadas por substancial gratificação, as tropas metropolitanas aclamaram Johannes imperador em praça pública e ele continuou o seu curto reinado que terminaria em humilhação e tragédia. 

Não obstante a ausência de Aécio e a oposição de Bonifácio, ele formou meia dúzia de legiões pagando largas somas aos soldados, e preparou-se para lutar contra as tropas de Teodósio II, legítimo sucessor do seu tio Honório no trono do Ocidente. Para os altos chefes militares tanto fazia um como o outro, pois ambos eram corruptos e incompetentes, incapazes de fazer face aos problemas que o Império enfrentava. Na verdade, os mais importantes generais estavam esperando que Bonifácio apresentasse sua candidatura para apoiá-lo, pois se tratava de brilhante oficial muito popular entre as tropas, com enorme prestígio na aristocracia romana e no alto clero da Igreja por sua devoção e amizade com Agostinho, bispo de Hipona e eminente filósofo católico, considerado santo por muitos. Mas quando ficou claro que Bonifácio não se candidataria, pois se posicionara firmemente em favor de Teodósio, os comandantes resolveram continuar neutros e silenciosos.

Pouco depois foram surpreendidos com a notícia de que uma tempestade afundara a frota do Império do Oriente, afogando o exército mandado por Teodósio para combater Johannes, e este aprisionara o general comandante que sobrevivera ao desastre. Isto fortaleceu a posição do usurpador e ela seria segura se na mesma época não viesse a novidade ainda mais surpreendente de que a viúva Placídia conseguira do seu sobrinho Teodósio o que não conseguira do seu irmão Honório: a abdicação do trono do Ocidente em favor do menino Valentiniano, então com seis anos de idade. Para completar, Teodósio nomeara Placídia regente na menoridade do filho!

Todos acharam que se tratava de uma piada, pois não viam como poderia uma mulher assumir o trono naquela difícil situação e governar um império em guerra civil, atacado pelos bárbaros por todos os lados. A pergunta que se fazia era como seria possível Placídia retirar Johannes do poder e assumir o trono, pois ele estava firme em Ravena, possuía o controle da administração da Itália e tinha ao seu lado um exército de aderentes dado a catástrofe que se abatera sobre a frota e as tropas de Teodósio. Ademais, ela estava a centenas de milhas em Constantinopla, não tinha apoio popular e não dispunha de tropas dispostas a lutar pelo seu direito. Mesmo o fervoroso apoio de Bonifácio de nada lhe servia, pois ele estava às voltas com a rebelião dos berberes na África e não podia deslocar um único soldado para combater na Itália. Somando as coisas, tudo que Placídia tinha era um decreto de Teodósio transferindo-lhe um trono que não possuía, o que causava risos nas pessoas, certas de que ela fazia o papel do otário que comprara algo que não existia.

A imperatriz Galla Placídia e os seus filhos Valentiniano e Honória

Porém as dúvidas na época mostram que os seus contemporâneos ainda não conheciam a mulher de ferro que ela era. Sem perder a calma, Placídia levantou grande soma de dinheiro e mandou agentes secretos à Ravena para contatar os generais de Johannes e suborná-los para que mudassem de lado. Ademais, ele cometera o erro fatal de ao invés de meter no cárcere o general de Teodósio aprisionado o mantivera imprudentemente em confortável prisão domiciliar onde recebia visitas e contatava partidários, conspirando contra o seu captor quase que abertamente. Assim, o general prisioneiro avalizou o acordo de Placídia com os generais traidores e foi o fim do breve reinado de Johannes.

O poderoso burocrata imprevidente que ousara desafiar as instituições tivera a má sorte de tornar-se inimigo de Placídia logo depois que ela enviuvara de Constâncio e movera céus e terras na tentativa de fazer o amalucado imperador Honório reconhecer como herdeiro o seu filho órfão Valentiniano de apenas quatro anos de idade na época. Apesar de todos os agrados e carinhos com os quais procurara conquistar o favor do irmão, este não se abalara e preferira ouvir as sórdidas intrigas do seu secretário Johannes, o qual fizera espalhar por toda a capital o maldoso boato de que a ambição e a indecência de Placídia não tinham limites, pois para fazer do menino Valentiniano imperador ela era capaz até mesmo de seduzir o irmão idiota e com ele manter relações sexuais incestuosas. Suas excessivas demonstrações públicas e privadas de “amor doentio” pelo irmão mentalmente enfermo não poderiam ter outro significado senão este.

Habilmente, Johannes fizera com que os boatos por ele mesmo fabricados chegassem aos ouvidos do quase demente Honório, altamente devoto e que muitos diziam ser casto, contando-se como piada que ele era o único homem na face da terra que enviuvara duas vezes de esposas que morreram virgens. Em pânico, ele procurara o seu íntimo auxiliar e conselheiro Johannes para dizer-lhe que estava horrorizado com a “enormidade do pecado” das intenções da irmã Placídia, das quais jamais suspeitara e jurava inocência, vendo com terror demoníaco a infame possibilidade de que as pessoas pudessem acreditá-lo capaz de cometer tamanha aberração, como era o caso do sórdido “crime de incesto”, por si só suficiente para condená-lo às eternas chamas do inferno! Em tão terrível situação, o que lhe aconselhava o seu “fiel amigo”? Hipocritamente Johannes mostrara-se chocado e, após manifestar sua solidariedade ao devoto imperador, disse-lhe que o melhor modo de afastar as acusações seria eliminar a sua causa, expulsando Placídia e exilando-a com os filhos na Corte do seu sobrinho Teodósio II em Constantinopla. Com essa medida o mal seria cortado pela raiz e o povo veria que o virtuoso imperador nada tinha a ver com a torpeza da irmã, tanto que a expulsara e exilara. Em breve tudo seria esquecido e poder-se-ia respirar de novo ar puro na Corte, pois “longe dos olhos longe dos pensamentos”!


O imperador Honório era um completo imbecil, pois se ocupava mais com as aves do
galinheiro do palácio do que com os negócios do Império

Em nome do imbecil Honório, o pérfido burocrata agira imediatamente. Placídia foi presa em seus aposentos no palácio e posta sob forte guarda. Antes que a notícia se espalhasse, ela e os dois filhos pequenos foram embarcados na calada da noite em um navio militar com destino a Constantinopla levando somente bagagem leve e acompanhada por modesta comitiva de apenas uma dúzia de serviçais e damas de honra. Embora formalmente bem recebida na Corte do sobrinho, ela foi tratada pela nobreza com o desdém que sofrem os poderosos quando subitamente decaem de suas antigas posições de grandeza, mas não se abalou nem baixou a crista e passou a planejar cuidadosamente sua vingança, acumulando dinheiro e bons relacionamentos no meio civil e militar. Assim, ela estava com tudo pronto e caiu sobre Johannes como um raio quando a ocasião favorável surgiu.  

Johannes foi deposto e preso em um calabouço infecto (426 DC) e quando Placídia chegou triunfante a Ravena com sua brilhante comitiva, em condições completamente opostas às de quando partira em opróbrio dois anos antes, ordenou que Johannes fosse submetido as mais cruéis torturas. Depois mandou que lhe cortassem a mão com a qual assinara a ordem de sua prisão e expulsão e lhe cortassem a língua com a qual espalhara o torpe boato que tanta dor moral e injusta humilhação lhe tinham causado.

Detalhe do belíssimo teto do mausoléu da imperatriz
Gala Placídia em Ravena

Não satisfeita, esperou que o deposto imperador se recuperasse fisicamente dos horríveis ferimentos e deu prosseguimento à sua atroz vingança.

Em um belo dia de sol, Placídia mandou vestir Johannes de palhaço e o fez montar de costas em um burro no qual foi fortemente amarrado. Depois ordenou que o infeliz prisioneiro fosse conduzido em desfile perante a multidão que gargalhava e aplaudia nas ruas apinhadas o imperial “palhaço”, seguido por uma trupe circense como se ele fosse o seu chefe. O grotesco desfile terminou no circo da cidade, onde o decapitaram publicamente e espetaram sua cabeça, assim como a mão e a língua amputadas já ressecadas, em três lanças postas lado a lado em uma praça para simbolizar a justa punição dos que pensam indecências, assinam indignidades e espalham infâmias.

De todos os imperadores romanos em cinco séculos, Vitelius, Heliogabalus, Johannes e Petronius Maximus foram os que tiveram morte mais ignominiosa. Curiosamente, as duas últimas ocorreram no século V, último do Império e quando o Cristianismo já reinava absoluto no mundo romano. Parece que devotos cristãos, como Galla Placídia, não tinham assimilado muito bem os ensinamentos Evangélicos sobre caridade e misericórdia.

A trajetória do secretário cuja ambição o fez viver gloriosamente como imperador e cuja torpeza o fez morrer humilhantemente como palhaço, terminou com uma brutal alegoria sobre a fatuidade da grandeza material e uma sangrenta advertência ética. Por outro lado, Placídia reinou sozinha gloriosamente por vários anos com o apoio do competente general Aécio até a coroação do seu filho Valentiniano III. Mesmo assim continuou a mandar por trás do trono até sua morte em 450 DC e passou à história como a única mulher que governou o Império Romano por seus próprios méritos políticos e administrativos. Mais de mil anos se passariam até que na pessoa de Elizabeth I da Inglaterra surgisse à frente de uma grande nação outra mulher tão valente, dura e capaz quanto ela.

2 comentários: