sábado, 27 de agosto de 2011


Post nº 45

ALARICO  REI  DOS  GODOS
CONQUISTA  ROMA

Vindos da Ucrânia e do norte da Romênia, os godos invadem e ocupam Roma em 
agosto de 410 DC. Tela de Ulpiano Checa (séc. XIX)



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Se houve um Império que caiu mais pela incompetência dos seus dirigentes do que pelas suas reais condições, foi o Império Romano do Ocidente. Quando olhamos as coisas retrospectivamente, vemos que apenas algumas atitudes corretas teriam evitado a catástrofe, pois o poder de conciliação e de adaptação dos romanos era um dos traços mais peculiares da sua civilização. Fora assim nas disputas patrícios x plebeus, republicanos x imperiais, nacionalistas x internacionalistas, jus civile x jus gentium, religião local x religiões estrangeiras, raça latina x outras raças, uniculturalismo x pluriculturalismo, paganismo x cristianismo, etc. Ao longo de 700 anos a palavra de ordem da civilização romana fora “inclusão”, mas na 2ª metade do século IV mudou para “exclusão”. Estudar as razões disto é tarefa árdua, mas as evidências mostram que foi ela, em última análise, a causadora da derrocada do Império.

Como já vimos anteriormente, os povos góticos que fugiam dos hunos foram admitidos no território imperial como imigrantes em 376, mas ao invés de lhes dar tratamento de súditos os romanos deram-lhes tratamento de refugiados, espécie até então desconhecida no Direito do Império, internando-os em “campos de concentração”, à exceção de alguns poucos milhares de jovens fortes e saudáveis incorporados ao exército. Porém muitos outros milhares não foram tão afortunados e, vendo os maltratos a que eram submetidas suas famílias, rebelaram-se, organizaram-se e esmagaram os romanos na batalha de Adrianópolis em 378, destruindo o exército do Oriente e matando o imperador Valente. O exército ocidental e o seu imperador Graciano, prudentemente voltaram à Itália temendo que os godos marchassem sobre Roma após dominarem Constantinopla, mas eles nem a dominaram nem saíram dos Bálcãs, onde ficaram confinados pela hábil política diplomática e militar de Teodósio, novo imperador romano do Oriente.

Mas o principal obstáculo à integração dos godos no Império era o fato de serem cristãos da seita ariana, que disputava com a seita católica o domínio da Igreja Cristã. Teodósio era católico e partilhava da intolerância e do exclusivismo de sua seita, que não tolerava nenhuma outra por mais devotos e virtuosos cristãos que fossem os seus fieis. Este era o caso dos godos, fervorosos adeptos da doutrina do bispo Ário, declarada herética pelo concílio de Niceia por considerar "politeísta" a teoria da "santíssima trindade", pilar doutrinário da seita católica, defendida com extremado zelo por seu líder, o bispo Atanásio. Na época da chegada dos godos, o catolicismo dominara a Igreja Cristã, controlava vastos setores do governo, e perseguia os arianos com todas as armas ao seu alcance. Por mais absurdo que pareça, os católicos tinham mais ódio aos arianos, apesar destes serem cristãos devotos, do que aos pagãos, que rejeitavam totalmente o cristianismo. Foi, portanto, a intolerância católica o principal obstáculo à inclusão dos godos na sociedade romana, gerando o rol de catástrofes que, conjugados a outros fatores, levariam o Império à sua derrocada final.

Após a absurda “exclusão” dos povos góticos, causadora do desastre de Adrianópolis, os romanos não voltaram à antiga política “inclusiva” e persistiram na política suicida de lidar com os incômodos “hóspedes” cruel e desonestamente, considerando-os “bárbaros” apesar de serem cristãos devotos, trabalhadores honestos e soldados valentes. Em um Império onde tudo que desejavam era a admissão como súditos leais, os godos continuaram vivendo marginalizados e sujeitos à permanente injustiça, mas por volta de 390 um novo líder surgiu entre eles: Alarico!

Após a morte de Teodósio os godos dominaram os bálcãs e Alarico entrou
vitorioso em Atenas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)

O seu valor logo atraiu a atenção do imperador Teodósio e do seu ministro Stilicon, que “compraram” a sua colaboração. No ano de 393 o usurpador Eugênio dominou a Gália e a Itália, obrigando Teodósio a marchar contra ele e derrotá-lo na batalha do rio Frígido, próximo aos Alpes Julianos. A vitória foi custosa e deveu-se principalmente aos godos, que lutaram nas posições mais perigosas e sofreram as maiores perdas. Como recompensa, Alarico obteve boa paga e o posto de general romano, mas nenhum comando importante. Ele sentiu-se injustiçado, pois devendo-se a vitória aos godos justo seria fossem eles incorporados ao exército e lhe fosse dado um comando relevante. Isto não ocorrendo, voltou às suas bases com os seus homens indignados enquanto o já gravemente enfermo Teodósio cometia mais um erro de funestos resultados ao Império: ao invés de nomear seu sucessor o competente general Stilicon, leal ministro e marido de uma sobrinha que criara como filha, nomeou seus dois filhos menores imperadores do Ocidente e do Oriente sem que nada os credenciasse aos altos cargos, a não ser o fato de serem seus filhos.

O fato do império ter sido dividido e entregue a dois idiotas, produziu enormes atritos entre eles, imobilizando na Itália o bravo Stilicon, que teve de dirigir todas as suas energias para resolver os problemas criados pela corrupta corte de Constantinopla, presidida pelo incompetente Arcádio e seus ministros ladrões, devassos e pervertidos, destituídos da mais mínima sombra de espírito público. Da confusão aproveitou-se Alarico para vingar-se da ingratidão dos romanos, devastando os Bálcãs e a Grécia, cuja capital Atenas ocupou e saqueou, sem encontrar qualquer resistência por parte dos dois decadentes impérios, mais interessados em intrigas, rivalidades pessoais e lutas intestinas do que na preservação da paz e da prosperidade pública.

Sendo apenas tutor do idiota Honório, imperador do Ocidente, e nenhum controle tendo sobre o petulante Arcádio, imperador do Oriente, Stilicon desdobrou-se na tarefa de manter de pé o Império. Para tornar ainda mais difícil a sua tarefa, os romanos confundiam os civilizados godos com os primitivos germânicos e por isso também odiavam os godos. O fato impediu o bravo comandante de tomá-los como aliados e o fez persistir na política de tê-los como “traiçoeiros inimigos”. Isto produziu várias batalhas entre godos e romanos, sempre vencidas por estes devido ao talento militar de Stilicon, porém quando finalmente viu que os godos não eram problema, mas solução, procurou convencer o imbecil Honório, seu genro e ex-tutelado, a firmar um tratado de paz e colaboração com os mesmos. Todavia, enquanto ocorriam as negociações, Stilicon foi assassinado em 408, vítima de uma absurda intriga palaciana, e o tratado foi esquecido.

O assassinato de Stilicon deixou o Império indefeso e Alarico iria fazê-lo
pagar por todas as iniquidades praticadas contra os godos

Após a morte de Stilicon, seguiu-se brutal massacre de milhares de famílias góticas que viviam pacificamente em cidades italianas e a indignação dos godos chegou ao máximo. Afastado do cenário o único líder romano que respeitava, Alarico perdeu a paciência e invadiu a Itália em 409, derrotando a incompetente nova liderança militar inimiga e sitiando Roma. Isto não acontecia desde o século III AC, quando o alarme ressoara nas ruas ao saberem que o cartaginês Aníbal aniquilara as suas aguerridas legiões na batalha de Canas e marchava sobre a cidade. A diferença é que seiscentos anos antes os romanos eram guerreiros que lutavam por patriotismo e vontade própria, mas agora eram um bando de arrogantes preguiçosos, acostumados a viverem à custa do Erário, suprido por províncias cuja espoliação era garantida por um exército profissional de mercenários estrangeiros.

Para enfrentar a grave situação, tudo que podiam fazer era rezar por um milagre, e este ocorreu porque o objetivo do devoto Alarico não era fazer mal a Roma, que respeitava por considerá-la a sagrada cidade de São Pedro, mas forçar o idiota imperador Honório a negociar a INCLUSÃO dos godos no Império. Como sempre, tudo que queriam era tornarem-se cidadãos, receberem terras ociosas para os seus agricultores, cargos no Serviço Público para os seus letrados e postos no Exército para os seus guerreiros.

Efígie de Alarico em uma antiga gravação em aço

Por incrível que pareça, o que os decadentes romanos deveriam ter como generosa dádiva foi tida como humilhante chantagem e por isso negaram-se a negociar com os “saqueadores bárbaros”, como chamavam os godos, mantendo a mesma política suicida de exclusão adotada há mais de 30 anos. Seguro na inexpugnável cidade-fortaleza de Ravena, o idiota Honório e seus lacaios não deram importância ao perigo que corria Roma e tentaram cansar Alarico com negociações onde promessas jamais viravam atos. Ele então resolveu depor Honório fazendo o Senado proclamar imperador o nobre Átalo, um tolo pomposo que lhe serviria de dócil instrumento, mas isto apenas agravou a situação, pois o governador do Egito, membro da quadrilha de Ravena, cortou o fornecimento de grãos à capital e esta se viu assolada pela fome, ameaçando o próprio exército godo. Vendo que o tiro saíra pela culatra, Alarico “demitiu” o inútil Átalo e a comida voltou, iniciando-se nova rodada de negociações. O impasse já durava mais de um ano quando Honório o convidou para uma conferência em local próximo a Ravena, mas ao invés de preparar-lhe um comitê de recepção preparou-lhe uma cilada, da qual escapou após derrotar o general Saro, e voltou a sitiar Roma com as suas tropas, que já começavam a criticar a sua boa fé e a lhe questionar a liderança.

Saque de Roma pelos godos. O quadro mostra incêndios e gente apavorada nas ruas, mas roubos e depredações foram só de palacetes e prédios públicos. Os pobres pouco sofreram
         
Os muitos meses de cerco sem que os godos invadissem a cidade deram aos moradores um falso sentimento de segurança, fazendo-os acreditar que, enquanto o Imperador ficasse longe em Ravena e o Papa governasse Roma, o devoto cristão Alarico não profanaria a cidade de São Pedro. Por isso os muitos que haviam fugido no início voltaram com as suas riquezas e os poucos que tinham ficado não cuidaram de mandá-las para outro lugar. Até mesmo a princesa Gala Placídia, irmã do imperador Honório, ficara durante o cerco, mais preocupada em vingar-se por ofensas verdadeiras ou imaginárias da sua prima Serena, viúva do seu ex-tutor Stilicon, do que com os ameaçadores godos.

Assim, quando em 16 de agosto de 410 eles arrombaram os portões após desbaratarem a fraca resistência e espraiaram-se pelas ruas aos milhares, os surpreendidos romanos entraram em pânico e renderam-se. O saque começou logo após Alarico instalar-se no palácio imperial, porém, ao contrário do que se pensa, não foi um saque furioso e destruidor, mas metódico e violento apenas na medida do necessário. O clero, as igrejas e mosteiros foram poupados, assim como também as moradas humildes, de sorte que o saque foi principalmente das repartições públicas, casas comerciais, mansões dos ricos e residências de classe média. Incêndios, mortes, torturas e estupros foram poucos em uma operação de tal envergadura, e a maioria deveu-se mais à escória local do que aos conquistadores.

Terminado o saque, Alarico fez cordial visita ao Papa, a quem homenageou como bispo de Roma e sucessor de São Pedro. Depois prosternou-se e orou na basílica do apóstolo diante do seu túmulo, seguido por ordeira fila de todo o exército godo, que mais parecia uma respeitosa multidão de devotos peregrinos do que um exército de bárbaros invasores!

Alarico surpreendeu a todos ao não se proclamar imperador após conquistar
Roma. Gravura de Ludwig Thiersch (1894)
          
A boa conduta dos "heréticos" arianos conquistadores não parava de surpreender os católicos romanos conquistados, que já tinham como certo Alarico proclamar-se imperador logo que os ânimos serenassem, mas a surpresa maior veio no dia 27 de agosto quando, já estando tudo em ordem, ele e o seu exército partiram e marcharam para o sul, dizendo que iriam estabelecer o seu reino na Sicília. Levavam centenas de carroças com os tesouros saqueados e muitos nobres reféns, entre eles a princesa Gala Placídia. Antes de serem libertados mediante pesado resgate, teriam que servir aos godos como escravos a fim de provarem o gosto do trabalho, do sofrimento e da humilhação.

O que se viu nos dias que se seguiram foram patrícias romanas trabalhando como arrumadeiras, cozinheiras, copeiras e lavadeiras, além de prestando sofisticados serviços sexuais aos seus captores. Nobres latifundiários e ricos mercadores foram mandados tratar de cavalos, limparem estábulos e carregarem pesados fardos sob o chicote vigilante dos vencedores. À medida que os polpudos resgates eram pagos, iam sendo libertados e voltavam a Roma contando sua "odisseia" com as tintas piores possíveis, reivindicando para si as glórias do martírio pelo "sofrimento" durante o cativeiro entre os “cruéis bárbaros heréticos”. Ainda bem que alguns foram honestos e contaram a verdade, reconhecendo que o sofrimento fora apenas o merecido castigo por sua sórdida arrogância e pérfida mesquinhez. A única refém não libertada foi a princesa imperial Gala Placídia, seja porque Alarico quisera mantê-la como valiosa moeda de troca em futuras negociações com Honório, seja porque ela se tornara amante do príncipe godo Ataulfo.

Após dois meses percorrendo o sul da Itália, ele chegou ao estreito de Messina onde começou a preparar a travessia marítima do seu povo para a Sicília, que julgara ser a sua Canaã. Porém, em meio aos intensos preparativos, teve um súbito colapso e morreu.

O funeral de Alarico foi misterioso. Dizem que represaram um rio e o enterraram no seu leito seco. Depois
liberaram o rio e ele cobriu o túmulo para sempre. Gravura de Heinrich Leutemann (séc. XIX)

Conta-se que muitos guerreiros se suicidaram para acompanhar na morte o grande chefe morto, mas isso é improvável dado que os godos eram cristãos devotos e o cristianismo proíbe o suicídio, mas a verdade é que o povo chorou durante dias o seu Moisés, morto antes de ver a terra prometida e que além de liderá-los durante anos na travessia do deserto também derrotara o faraó romano em campo aberto e se apossara da sua capital. O seu funeral está repleto de lendas e não se sabe o local do seu túmulo, pois os milhares de godos que o acompanhavam juraram guardar o segredo para sempre, de forma que o único homem que conquistou Roma em oito séculos de História repousa para sempre em lugar ignorado. Isto dá bem a medida da seriedade e honradez dos godos, pois é o único caso na história em que um povo inteiro, com seus milhares de homens, mulheres e crianças cumpre um juramento de forma tão completa e absoluta. Nem mesmo a prisioneira princesa Placídia, presente ao funeral e mais tarde rainha dos godos pelo casamento com Ataulfo, traiu o juramento. Certamente porque na ocasião já devia se sentir mais gótica do que romana!

Todos juraram guardar segredo sobre o local do túmulo de Alarico no leito de um rio temporariamente
represado para o enterro. Gravura de Heinrich Leutemann (séc. XIX)
          
Porém, mais misterioso que o local do seu túmulo é o motivo pelo qual não se proclamou Imperador quando tinha tudo para fazê-lo e, ao invés de tornar-se “Senhor do Mundo”, preferiu abandonar a mais famosa e poderosa cidade de todos os tempos, marchando para longe na busca de criar um modesto reino para o seu sofrido povo em uma ilha supostamente paradisíaca. Jamais saberemos o que se passou em sua mente modesta naqueles poucos dias vividos como senhor absoluto no suntuoso palácio imperial em Roma, mas é razoável supor que sendo ele homem de fé tenha pressentido o fim próximo e tido uma iluminação mística, fazendo-o ver que uma metrópole de costumes duvidosos não era lugar para um povo rural de hábitos sóbrios se estabelecer. Daí sua pressa em partir à procura de um lugar apropriado à sua gente antes que os seus dias na terra findassem.

Ou talvez fosse mais lógico simplesmente pensar que ao invés de se importar com as grandezas do mundo, as delícias do poder efêmero e a vaidade da glória pessoal, Alarico fosse apenas um homem decente que desse muito mais importância à tranquilidade da sua consciência de cristão honesto e à felicidade simples do seu povo humilde.

A longa marcha dos godos das planícies da Ucrânia até a Península Ibérica, onde se
estabeleceram definitivamente, durou 42 anos 

Os godos viram a súbita morte de Alarico como mensagem divina dizendo-lhes que deviam desistir da Sicília, e o novo rei Ataulfo, parente e melhor general do falecido líder, fez a sua imperial amante Gala Placídia obter de Honório um tratado que dava aos godos a cidadania romana e um vasto reino no oeste da França e norte da Espanha, tornando-a rainha dos godos pelo casamento com Ataulfo. A justa romanização dos valorosos imigrantes permitiu a vitória de Aécio sobre Átila em 451 na gigantesca batalha dos Campos Catalúnicos, última grande vitória das águias imperiais. Nos anos seguintes, eles dominaram toda a Península Ibérica onde se fixaram definitivamente, de modo que a terra prometida dos godos terminou sendo a Espanha e Portugal e não a Sicília, como sonhara Alarico.