segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Post nº 61

CAVALEIROS  TEUTÔNICOS  -  A  SINISTRA  ORDEM  MILITAR  MEDIEVAL  QUE  SE  TORNOU  UM  IMPÉRIO


A Ordem dos Cavaleiros Teutônicos foi a mais letal da Idade Média. Através do cinema de Eisenstein inspirou as figuras de lord Vader, do imperador e das tropas do "Império do Mal" da série "Guerra nas Estrelas"

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I
A  FUNDAÇÃO  NA  PALESTINA  DA  ORDEM  DOS
CAVALEIROS  TEUTÔNICOS


Nos primeiros anos das cruzadas o grosso dos seus participantes vinha da Europa Ocidental e o reino católico de Jerusalém era essencialmente francês, mas nos anos 1130 começaram a chegar grandes levas de peregrinos e militares alemães da Europa Central, chamados na época de teutônicos. Como não tinham sido parte do Império Romano, poucos falavam latim e quase todos ignoravam as línguas neolatinas, o que lhes tornava difícil a comunicação com os não alemães na Palestina, onde a língua usada pelos católicos era o francês. Assim, um grupo de sacerdotes e cavaleiros alemães criou uma instituição para hospedar e dar assistência aos seus compatriotas, por eles batizada “Casa de Santa Maria dos Teutônicos” (“Domus Sanctae Mariae Theutonicorum”)Durante meio século a instituição desempenhou relevante papel assistencial e tornou-se uma espécie de “embaixada alemã” em Jerusalém, mas com a reconquista do sultão Saladino em 1187 a Casa de Santa Maria dos Teutônicos mudou-se para outra cidade da Palestina ainda em mãos dos cruzados. Na III Cruzada (1189-1193) o próprio imperador alemão veio à frente de numeroso exército, que não chegou a ter papel importante nas lutas devido à morte acidental do poderoso monarca ainda nos seus estágios iniciais e regressou, mas muitos cavaleiros ficaram para continuar lutando contra os muçulmanos ao lado dos reis Felipe Augusto e Ricardo Coração de Leão, que segundo voz geral estavam se preparando e em breve chegariam à Terra Santa.

Em 1192 os cruzados alemães fizeram da Casa o seu quartel-general e fundaram uma Ordem Militar a que deram o nome de “Ordem da Casa de Santa Maria dos Combatentes Teutônicos” (Ordo Domus Sanctae Mariae Vexillum Theotonicorum) . Pouco depois seus estatutos foram aprovados pelo Papa e eles adotaram como brasão a cruz teutônica negra em campo branco, séculos mais tarde tornada a mais alta condecoração militar alemã com o nome de “Cruz de Ferro”.

Inspirada na cruz negra Teutônica, o reino da Prússia criou a "Cruz de
                                        Ferro", alta comenda militar.

Logo o seu extenso nome foi abreviado pelo povo e a Ordem ficou conhecida como Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, cujos membros chegaram a cerca de quinhentos durante os combates que se seguiram. Porém o fim da III cruzada fez a maioria regressar à pátria e apenas uma centena deles ficou na Palestina para prosseguir na luta. A partir daí o seu número voltou a crescer muito lentamente, o que não os impediu de destacarem-se nos combates por sua invulgar disciplina e por construírem sólidos castelos na Terra Santa.

   Hermann von Saltza, eleito 4º grão-mestre da Ordem em 1208 e a governou
               por mais de trinta anos. Tela de artista anônimo do século XVI
           
O seu número havia se estabilizado em torno de trezentos quando em 1208 o barão Hermann Von Saltza foi eleito grão-mestre e deu enorme impulso ao progresso da Ordem, pois tinha forte liderança e altas conexões políticas. Estas fizeram o rei da Hungria convidá-lo para sediar a Ordem no seu principado vassalo da Transilvânia na Romênia e ajudá-lo a controlar os seus rebeldes súditos, todos eles cristãos ortodoxos que repudiavam o domínio católico dos nobres húngaros e dos mercadores alemães estabelecidos no país.

II
O  DOMÍNIO  TEUTÔNICO  DA  TRANSILVÂNIA


Em 1211 o poderoso barão Von Saltza e os seus excelentes cavaleiros, que a essa altura tinham dobrado de número e já somavam mais de seiscentos, disseram adeus à Palestina e rumaram para o leste europeu, abandonando de vez os objetivos cruzados que tinham motivado a criação da Ordem a que pertenciam. Transformados em “defensores” de interesses econômicos destituídos de motivações religiosas, os Cavaleiros Teutônicos implantaram na Transilvânia um regime de puro terror e a Ordem da Casa de Santa Maria tornou-se ela própria rica dona de terras e maior exploradora dos recursos locais, oprimindo e massacrando a população cristã ortodoxa romena. Desde então a sua espada não mais se voltaria contra os muçulmanos, mas apenas contra os pagãos e os “hereges” cristãos ortodoxos.

          Os cavaleiros devotos queriam reconquistar Jerusalém e não saquear a Romênia, por isso abandonaram a
                         Ordem Teutônica e juntaram-se à Ordem Templária na Palestina. Iluminura do século XII

Essa nova postura a fazia poderosa senhora feudal e incansável construtora de castelos no território ocupado, mas também a tornava carente de princípios e sem atrativos para os jovens cavaleiros alemães devotos, os quais sonhavam com a gloriosa reconquista dos lugares santos na Palestina e não com roubalheiras na Romênia. Por isso deixaram os Teutônicos para se juntarem aos Templários e aos Hospitalários, que tinham ficado fiéis aos seus estatutos, lutando com ardor contra os muçulmanos na honrosa tentativa de reconquistar Jerusalém. As muitas defecções do que havia de mais idealista em seus quadros obrigaram a gananciosa Ordem Teutônica a contratar grande número de mercenários e por volta de 1220 eles já eram maioria em suas fileiras. O resultado foi que ela ficou militarmente ainda mais forte, porém ainda mais insensível e voraz.

         Para solidificar seu domínio na Transilvânia, os Cavaleiros Teutônicos construíram vários castelos, mais
                          tarde usados pelo Conde Drácula em suas guerras contra os turcos. Este é o mais famoso.

Sempre proclamando-se a serviço da Igreja de Roma, poucos anos depois o seu excessivo poder, fome de riquezas e completo domínio da Transilvânia começaram a inquietar o rei húngaro até que ele se viu forçado a adotar medidas drásticas quando foi informado que Von Saltza pleiteava secretamente junto ao Papa fosse o principado reconhecido como “Estado Eclesiástico” de propriedade dos Cavaleiros Teutônicos e vassalo unicamente da Igreja. Mobilizando poderoso exército, muito superior ao da Ordem, o rei intimou Von Saltza a entregar-lhe todos os magníficos castelos que construíra no principado e dele retirar-se imediatamente.

III
O  IMPÉRIO  DOS  CAVALEIROS  TEUTÔNICOS 
NO  NORTE  DA  EUROPA


Diante da inércia de Roma, que nada fez para ajudá-lo, Von Saltza viu que cometera um clamoroso erro de cálculo e que não poderia resistir às superiores tropas húngaras. Assim, aproveitando-se de um providencial convite do católico rei polonês, em 1225 rumou para o norte com o tesouro da Ordem e os seus cavaleiros. Chegando à Polônia, o rei Konrad I o fez ciente dos graves problemas que o país enfrentava no norte, onde os pagãos lituanos, que habitavam o litoral nordeste do mar Báltico, tinham ocupado a Prússia Oriental e ameaçavam Varsóvia.

              Expulsos da Transilvânia, os Cavaleiros Teutônicos foram para a Prússia Oriental,  onde construíram                                                                                      magnífico castelo para sua sede na cidade de Marienburg, hoje na Polônia  

Von Saltza e os seus treinados batalhões de cavaleiros pesadamente couraçados lançaram-se ao combate, conseguindo em poucos anos expulsar os invasores pagãos da Polônia e dominar largas faixas de território, dos quais se tornaram proprietários por direito de conquista. Entre os seus novos valiosos domínios estava toda a Prússia Oriental, o que lhes permitiu estabelecerem-se firmemente no que seria o seu lar definitivo durante séculos. As grandes vitórias obtidas em pouco tempo contra os pagãos nórdicos deram aos Cavaleiros Teutônicos não somente fama e vastas propriedades, mas também a hegemonia política e militar no nordeste da Europa, fazendo com que suas fileiras aumentassem substancialmente devido ao grande número de nobres alemães que correram a se alistar sob sua bandeira. Isto fez do seu imponente castelo na cidade de Marienburg movimentado quartel e sede do incontrastável poder econômico e militar da Ordem na região. Quando Von Saltza morreu em 1239, após exercer durante décadas o seu grão-mestrado, ele e os seus principais oficiais tinham sido elevados à categoria de príncipes e a Ordem conquistara vastos territórios no litoral do mar Báltico, incluindo a Lituânia ao norte e partes mais a leste da Prússia Ocidental ao sul. Façanhas tão notáveis em tão curto espaço de tempo fizeram-na grande potência militar e lhe deram enorme prestígio político, conferindo-lhe voz ativa nos negócios do Sacro Império Romano-Germânico. Isto a colocou no mais alto nível internacional, com posição igual ao da Polônia e da Hungria, os dois reinos católicos mais importantes do leste europeu.

O exército da Ordem era pequeno, mas era o melhor da Europa. Sua semelhança com as tropas do Império
                                                                        do Mal na série "Guerra nas Estrelas" é marcante

Com sua soberania firmemente assentada sobre cidades nórdicas importantes como Dantzig, Koëningsberg e Riga, ela também se estendeu para o sul, tornando-se senhora de grandes feudos na Tchecoslováquia e na Áustria. Mas o seu objetivo principal era a conquista de toda a costa oriental do mar Báltico até o Golfo da Finlândia e, sob o pretexto de promover uma "cruzada para converter os pagãos bálticos ao cristianismo" devidamente endossada pelo Papa, marchou para o norte na primavera de 1240 varrendo a ferro e fogo toda e qualquer oposição.

IV
OS  CAVALEIROS  TEUTÔNICOS  TENTAM  EXPANDIR  O  SEU
IMPÉRIO  E  INVADEM  A  RÚSSIA


Até então as guerras da Ordem tinham motivação aparentemente religiosa, alegando combater para submeter e converter pagãos ao cristianismo, porém um ano após iniciada sua ofensiva rumo ao norte os seus batalhões conquistaram a Letônia, na época chamada de Livônia, e infletiram para o leste, invadindo o ducado russo de Novgorod, governado pelo devoto príncipe cristão-ortodoxo Alexandre Nevski. Isto deixou claro que o seu alegado propósito de natureza religiosa era apenas pretexto para cruel guerra de conquista e rapinagem desenfreada de outros povos, fossem eles pagãos ou cristãos.

           O príncipe russo Alexandre Nevski foi o primeiro general que infligiu enorme derrota aos  poderosos                                                                                              Cavaleiros Teutônicos. Cena do filme de Eisenstein "Os Cavaleiros de Ferro"

Após derrotarem os russos nos combates iniciais, os cavaleiros ocuparam a cidade de Pskov e implantaram cruel regime de terror, tal como já tinham feito anos antes na Transilvânia e mais recentemente na Lituânia e na Letônia. Os seus métodos eram terríveis e tinham por finalidade aterrorizar o inimigo que buscavam subjugar definitivamente, o que fazia os seus feitos atrozes serem comentados de boca em boca e lhes conferiam a pouco invejável fama de "agentes do demônio". Entre as suas muitas façanhas nesses anos de guerra feroz estava o de reintroduzir a escravidão no nordeste da Europa, pois faziam das regiões conquistadas feudos de sua propriedade e aboliam os direitos dos servos, fazendo-os voltar à condição de escravos sob a alegação de que “pagãos” e “hereges ortodoxos” não possuíam direitos. Muitas vezes deslocavam populações inteiras de regiões cuja exploração lhes parecia antieconômica para outras mais rentáveis, porém carentes de mão de obra. Assim, incendiavam vilas inteiras e deportavam os habitantes para os seus feudos onde eles eram mais necessários.

        Ao ocuparem a cidade russa de Pskov os Cavaleiros Teutônicos fizeram absurdos autos-de-fé, executando                                                                        líderes da resistência e clérigos ortodoxos para aterrorizar o povo. Cena do filme de Eisenstein
             
Outra de suas cruéis façanhas era quebrar o espírito de resistência dos povos dominados com absurdos autos de fé, nos quais prisioneiros e clérigos ortodoxos eram torturados e levados à fogueira. Embora não se saiba ao certo se verdade ou mentira, dizia-se que até mesmo velhos e crianças, inaptos para o trabalho, eram queimados vivos pelos “Cavaleiros de Ferro”, nome como eram eles chamados pelo povo aterrorizado.

               Pskov foi quem mais sofreu com os absurdos autos de fé promovidos pela brutal ocupação Teutônica
             
Uma singular característica contribuía ainda mais para o terror que a Ordem inspirava: o exclusivismo étnico! Ao contrário das demais Ordens religiosas militares medievais, que fiéis ao universalismo cristão aceitavam em seus quadros guerreiros das mais diversas nacionalidades, a Ordem da Casa de Santa Maria somente aceitava candidatos etnicamente teutônicos, dizendo que se assim não fosse a Ordem deixaria de ser "dos teutônicos". Isso por um lado lhe dava coesão e fortaleza,  mas por outro a tornava exclusivista e lhe dava o anti-cristão sentimento de superioridade étnica sobre os povos dominados, fazendo-a ainda mais cruel e indiferente ao sofrimento dos não teutônicos. O fato de adicionar o terror político e racial ao terror religioso e militar talvez explique por que ao aderir séculos depois à Reforma Protestante ela não conseguiu levar consigo outros povos do leste europeu, como os poloneses, os tchecos e os eslovacos. Quase como se fora uma resposta étnica ao exclusivismo prussiano, estes povos eslavos rejeitaram o protestantismo e se tornaram ainda mais católicos do que eram antes.

           Dizia-se que os Cavaleiros Teutônicos queimavam crianças russas na fogueira para aterrorizar o povo e
                        melhor dominá-lo, mas é possível que fosse apenas boato. Cena do filme "Alexandre Nevski"
             
Porém, fossem quais fossem os motivos inspiradores dos métodos da Ordem, eles eram bastante eficazes, pois o terror espalhou-se na Rússia e o príncipe Alexandre Nevski viu-se às voltas com o pânico generalizado dos seus súditos, que largavam tudo e fugiam para lugares que julgavam mais seguros. Isto fez com que ele tivesse grande dificuldade em mobilizar um exército minimamente capaz de oferecer batalha ao invasor com alguma chance de êxito, pois suas tropas, embora numericamente muito superiores, não dispunham nem da sua excelente técnica de combate nem das suas ótimas armaduras e espadas, segredos da invencibilidade dos Cavaleiros Teutônicos.

          O príncipe Alexandre Nevski já os combatera e sabia que não teria chances contra eles em uma batalha                                                                                       clássica, mesmo tendo muito mais soldados. Cena do filme de Eisenstein

O seu número sempre fora pequeno e nunca passara de três mil, divididos em uma dúzia de batalhões de em média duzentos e cinquenta cavaleiros cada um, mas o seu ótimo comando tático, excelente treino, férrea disciplina e primoroso armamento os capacitavam a vencer exércitos dez vezes maiores de desorganizados camponeses sem comando adequado. Pode-se dizer que eles possuíam o melhor e mais bem armado exército europeu da época, pois os grandes recursos da Ordem eram empregados basicamente em treinamento e armas, sobretudo em sofisticadas armaduras para cavalos e cavaleiros. Claro que o número médio de três mil homens refere-se apenas aos cavaleiros consagrados, não incluindo o outro tanto de mercenários bem armados que quase sempre combatiam a pé. Estas tropas de infantaria geralmente ficavam na retaguarda e só intervinham na batalha após a cavalaria destroçar a linha inimiga. Quando o trabalho dos cavaleiros terminava, os mercenários avançavam e massacravam o que sobrara dela.

Investimentos pesados em armas, armaduras, escudos e treinamento intensivo deram aos Cavaleiros
                                                       Teutônicos enorme superioridade bélica sobre os seus adversários
             
Porém o armamento dos mercenários era de tão boa qualidade quanto o dos cavaleiros, sobretudo as armaduras. Estas podiam ser mais grossas que suas congêneres europeias do sul graças ao clima muito mais frio da região onde lutavam e à estatura mais robusta dos nórdicos, tanto de homens como de cavalos. Elas eram menos incômodas e protegiam melhor infantes e cavaleiros, tornando apropriado o apelido de “Cavaleiros de Ferro” que lhes davam as populações em pânico.

A moderna tática de atacar em massa com a cavalaria blindada apenas um ponto da linha de infantaria inimiga lhes permitia penetrá-la como um raio, dispersá-la e cercá-la pela retaguarda, destruindo-a completamente ainda que lhe fosse dez vezes superior em número de combatentes.  Essa tática pensada de batalha, que hoje seria chamada de "guerra relâmpago", era desconhecida das indisciplinadas hordas de guerreiros nórdicos, o que permitia aos Teutônicos infligir-lhes enormes derrotas com apenas umas poucas centenas de cavaleiros couraçados.

Os russos eram superiores em número, mas inferiores em técnica militar e equipamento bélico
             
Nevski já testara o poderio dos Cavaleiros Teutônicos emboscando alguns dos seus destacamentos menores e tendo depois que recuar face à flagrante superioridade técnica e tática dos invasores, embora sempre estivessem em menor número. Diante dos insucessos localizados, ele viu que mais cedo ou mais tarde teria que lançar todo o seu exército ao combate em uma grande batalha que decidiria o destino do principado de Novgorod. Não tendo suas tropas treino adequado nem, muito menos, armas e armaduras que se comparassem às dos temíveis invasores, ele sabia que seria inútil usar flechas e lanças contra os cavalos e cavaleiros inimigos pesadamente blindados e que, mesmo contando com grande superioridade numérica, só poderia vencê-los pela astúcia. E foi o que fez.


V
A  BATALHA  DO  LAGO  GELADO

            
O inverno de 1241-42 lhe deu uma trégua, mas ainda em fevereiro os teutônicos reiniciaram suas operações e ele concluiu que teria de vencê-los no início da primavera ou perder tudo. O inverno terminava no final de março, mas no noroeste da Rússia o degelo só começava em meados de abril, embora as placas de gelo que cobriam rios e lagos afinassem a partir do início do mês. Com muita perspicácia, calculou que até o meado do mês elas ainda seriam bastante fortes para suportar o peso de homens portando armas leves, mas não para suportar o peso da infantaria russa acrescida da pesada cavalaria couraçada teutônica caso ela atacasse em massa. Se o fizesse, como sempre fazia, o gelo se quebraria e os russos com armadura leve alcançariam facilmente a margem próxima, mas isso seria impossível aos cavaleiros teutônicos vestindo pesadas couraças.

             Durante semanas Alexandre Nevski e o seu estado-maior esperaram a hora certa para a batalha vendo a
                                devastação que os Cavaleiros Teutônicos faziam em sua terra. Cena do filme de Eisenstein

Com o plano pronto após discuti-lo em detalhe com o seu estado-maior, o príncipe russo escolheu lugar apropriado nas margens do lago Peipus para a batalha que planejara. Durante semanas negaceou e driblou o inimigo com pequenas escaramuças para espicaçar sua imensa arrogância e atraí-lo para onde queria, fazendo-o aproximar-se cada vez mais do local da armadilha enquanto esperava o momento decisivo.

Habilmente o príncipe russo atraiu os Cavaleiros Teutônicos para a armadilha. Na série "Guerra nas
                                Estrelas" é flagrante a semelhança de Lord Vader com o líder teutônico do filme de Eisenstein
            
Por fim, posicionou no momento certo suas bem orientadas tropas sobre as margens do lago gelado e para lá habilmente atraiu o inimigo. Este se jogou na batalha com o ímpeto que já lhe dera inúmeras vitórias, atacando em forma de flecha para romper a linha adversária num ponto determinado e depois envolvê-la por trás, cercando-a e aniquilando-a. Os russos ficaram firmes esperando a temível onda de cavaleiros aproximar-se veloz e ao sinal combinado correram para os lados, dando-lhes passagem na hora exata. Impossibilitada de frear pela velocidade em que vinha, e sem entender direito o que se passava, a cavalaria teutônica adentrou a superfície do lago em carga avassaladora fazendo o gelo quebrar e centenas de cavaleiros se afogarem, tal como Nevski previra. O golpe de misericórdia foi dado pelas pontas da linha russa de batalha, que rapidamente se adiantaram e fecharam-se em tenaz sobre a retaguarda inimiga, espancando a traseira dos cavalos que vinham em furioso galope e impedindo-os de frear, fazendo com que também caíssem nas águas geladas onde tiveram o mesmo destino.

A superfície gelada do lago Peipus rompeu-se e centenas de cavaleiros teutônicos afogaram-se
                                               com seus cavalos. Cena do filme "Alexandre Nevski e os Cavaleiros de Ferro"
            
Ao contrário da mortandade registrada entre os cavaleiros teutônicos na batalha do lago gelado, quase todos os russos escaparam do ataque da cavalaria e suas grandes perdas se deram quando atacaram e aniquilaram a infantaria inimiga após os cavaleiros afogarem-se, mas não se sabe quantos russos nela lutaram, calculando-se o seu número entre quatro e cinco mil. Também não se sabe quantos cavaleiros combateram e pereceram, mas julga-se que eram cerca de cinco batalhões somando pouco mais de mil e duzentos homens, dos quais parece não ter havido sobreviventes, pois mesmo os que se desviaram a tempo da armadilha foram derrubados dos cavalos a pauladas e mortos a facadas pelos camponeses furiosos, mostrando que a cavalaria é arma de guerra fragílima quando é detida e os cavaleiros são cercados e agarrados por grande número de guerreiros a pé.

A derrota na batalha do lago gelado afastou os Teutônicos da Rússia mas eles continuaram se expandindo
                                            e dominaram todos os chamados países bálticos. Cena do filme de Eisenstein
            
Devido à falta de registros confiáveis, até hoje discute-se o número de cavaleiros mortos na batalha, uns afirmando que eram bem mais e outros bem menos, alguns chegando a dizer que não passavam de quinhentos. Todavia é difícil acreditar que militares experientes como os Teutônicos pudessem cometer a estupidez de se lançarem na imensidão da Rússia com tão poucos combatentes, por melhores que fossem. O número de mil e duzentos é o mais provável porque os registros dizem terem eles desfechado sua ofensiva deixando dois batalhões em suas bases e avançando com dez, o que significa aproximadamente dois mil e quinhentos cavaleiros. Dizem também que após entregarem a guarda das terras conquistadas a padres e mercenários prosseguiam sua marcha, tudo indicando que na Letônia se dividiram em duas colunas com cerca de mil e duzentos homens cada uma, embora disso não haja registro. Todavia a lógica sugere que tendo a primeira coluna avançado para o norte sobre a Estônia, que veio posteriormente a conquistar, e a segunda para o leste sobre a Rússia, esta teria sido a coluna destruída na batalha. Portanto, o número de mil e duzentos cavaleiros mortos no lago Peipus é bastante razoável face aos elementos históricos de que dispomos. Entre os mortos teutônicos não estão computados os mercenários que constituiam a infantaria do exército invasor e que se posicionavam atrás da cavalaria, só avançando após esta dispersar a linha adversária, mas não é exagerado pensar que igualassem o número de cavaleiros, ou seja, mil e duzentos. Destruída a cavalaria, a infantaria ficou só no campo de batalha para enfrentar os russos muito mais numerosos e foi igualmente massacrada.

A muito mais numerosa infantaria russa esmagou a infantaria teutônica após o lago gelado "engolir" a
                                                                  sua poderosa cavalaria.  Cena do filme de Eisenstein
             
O número de mortos deve ter ficado em torno de dois mil para cada lado, com a diferença de que do lado teutônico estava toda a sua esplêndida cavalaria, até então considerada invencível. Mas qualquer que tenha sido o número de teutônicos mortos na batalha, a derrota teve efeito arrasador sobre o moral da Ordem, pois ela jamais tentou novamente invadir a Rússia depois da catástrofe, na qual é correto supor ter perdido um terço dos seus efetivos. Assim, os seus batalhões restantes pararam na Letônia e na Estônia, abandonando  projetos de novas conquistas ao norte, mas continuaram a exercer férreo controle das regiões já dominadas, acumulando enorme riqueza e prestígio político mesmo perdendo completamente o pouco que lhes restava do antigo apelo religioso, essencial às ordens militares medievais.


VI
GRANDEZA  E  DECADÊNCIA  DO  IMPÉRIO
DOS  CAVALEIROS  TEUTÔNICOS

             
A derrota nas margens do lago Peipus fez os Cavaleiros Teutônicos retirarem-se do território russo e os enfraqueceu bastante, mas eles logo se recuperaram e acresceram ao seu domínio na Lituânia também o domínio da Letônia e da Estônia. Não satisfeitos, ocuparam as ilhas do mar Báltico próximas ao seu litoral leste e avançaram a oeste sobre a Prússia Ocidental, anexando a Pomerânia. Por fim, expandiram-se para o sul, adquirindo vastos feudos na Saxônia, Tchecoslováquia e Áustria. Meio século após a humilhante derrota frente aos russos, eles eram agora donos do maior império do leste europeu e tornaram-se parceiros do Sacro Império Romano-Germânico.

Império dos Cavaleiros Teutônicos na segunda metade do século XIII. Mas o seu apogeu somente ocorreu
                               no século XIV, quando dominaram também a Prússia Ocidental e uniram as duas Prússias
            
Com o fim do fervor religioso que a criara e sua metamorfose em poderoso império, a Ordem tornou-se um poder temporal como outro qualquer e adquiriu seus mesmos vícios, envolvendo-se nos conflitos militares apenas por razões políticas e econômicas. Aos poucos ser sagrado cavaleiro teutônico virou honraria almejada pelos membros das famílias principescas do leste e a incômoda tarefa de guerrear, não para expandir a fé, mas para aumentar riqueza e poder, foi deixada aos mercenários, limitando-se os cavaleiros à comandá-las de confortável ponto na retaguarda, tal como fariam todas as cabeças coroadas europeias a partir do fim da Idade Média. Sempre intervindo nos negócios do leste europeu com suas tropas mercenárias comandadas por hábeis cavaleiros versados em tática e estratégia militares, a Ordem Teutônica tornou-se rival e acerba inimiga da coroa polonesa, mordendo a mão que a acolhera e alimentara no seu alvorecer nórdico. Cada vez mais forte após recuperar-se da desastrosa batalha do lago Peipus contra os russos, ela continuou a desfrutar de enorme poder por mais de século e meio, até ser esmagada por coalizão de poloneses e lituanos na batalha de Tannemberg em 1410.

Em 1410 os Cavaleiros Teutônicos foram esmagados pelos poloneses coligados com os
                                                     lituanos na batalha de Tannemberg. Tela de Jan Matejko (séc. XIX)
             
Após a derrota a Ordem perdeu não só força e prestígio, mas também o pleno domínio da Prussia Oriental, a qual virou ducado  vassalo do rei da Polônia, dando-se início ao lento desmembramento do seu império. Mas ela fortaleceu-se na Prussia Ocidental e em 1525 as duas Prussias foram unificadas de novo quando o rei Albrecht Hohenzollern obteve do rei Sigismund da Polônia sua elevação a príncipe feudatário do ducado da Prússia Oriental. Para isso lhe pagaria vassalagem anual, mas seria o soberano de fato e de direito das duas Prússias, de uma a título de rei e da outra a título de duque vassalo do rei da Polônia, tais eram as peculiaridades do direito feudal europeu.

Em 1410 o império da Ordem Teutônica chegou à sua máxima extensão e era um dos maiores da Europa, mas
                                   os polacos-lituanos o abateram na batalha de Tannemberg e ele entrou em decadência
             
Com os novos arranjos políticos a Ordem deixou de existir na prática como pessoa jurídica autônoma de direito público e tornou-se entidade meramente simbólica. Para o seu declínio e gradual desaparecimento muito contribuiu o fato de que, dentre todas as ordens militares medievais, ela fosse a única a utilizar-se largamente de mercenários, coisa que outras ordens de grande prestígio, como os Templários e os Hospitalários, jamais fizeram por terem candidatos de sobra aos seus quadros. Todavia, o escasso ardor religioso que movia os Teutônicos lhes tornava difícil o recrutamento de jovens bravos e devotos da nobreza, os quais não viam razões éticas para colocarem o seu idealismo a serviço de uma organização que se afastara dos ideais espirituais motivadores da sua criação para se dedicar totalmente à conquista de bens materiais. Isto fez com que em meados do século XV o número de seus cavaleiros-membros tivesse se reduzido a cerca de quinhentos e no final do século fosse ainda menor, sem contar que eram em sua maioria aristocratas oportunistas sem fortuna que viam na Ordem apenas meio de obter glória e riqueza.
            
Assim, para manter seguras suas imensas possessões e continuar travando suas guerras destituídas de conteúdo religioso, ela era obrigada a recorrer a tropas de aventureiros assalariados, cabendo aos seus poucos cavaleiros apenas os postos de administração dos quartéis e de comando dos batalhões. Suas tropas mercenárias eram valentes, eficientes e bem treinadas, mas estavam sempre dispostas a trocar de lado caso lhe oferecessem mais, disto se aproveitando os seus adversários para reduzir-lhe o poder combativo e derrotá-la em momentos decisivos.

VII
O  FIM  DO  IMPÉRIO  DA  ORDEM  DOS  CAVALEIROS  TEUTÔNICOS 
COMO  POTÊNCIA  POLÍTICA  E  MILITAR

           
Em 1525, o grão-mestre teutônico Albrecht Hohenzolern aderiu à Reforma Religiosa e tornou-se um dos mais poderosos príncipes protestantes da Europa, dando decisivo impulso ao movimento reformista por governar diretamente a Prússia Ocidental, até então apenas uma província da Ordem, porém a maior e mais rica de todas. Há séculos o poderoso grão-mestre deixara de ser um monge-guerreiro e tornara-se um príncipe secular com nível de duque, o que muito facilitou ao titular do cargo na difícil época da Reforma fazer-se coroar rei do país que governava e dar início a dinastia dos Hohenzolern, os quais seriam promovidos a imperadores da Alemanha no século XIX.

Com a derrota de Tannemberg a Prussia Oriental ficou sob a suserania do Rei da Polônia como
                                   ducado vassalo, mas a Ordem manteve sua independência na Prussia Ocidental
             
Logo em seguida ele obteve do rei Sigismundo da Polônia a devolução da Prussia Oriental a título de ducado feudatário e o novo reino se tornou quase tão poderoso quanto durante o apogeu da Ordem Teutônica no século XIV, o que deu enorme força ao movimento reformista. Mas apesar da adesão maciça das províncias teutônicas do norte ao credo luterano, as províncias do sul romperam com o Grão-Mestrado protestante e permaneceram católicas, estabelecendo nova sede em Viena e colocando-se sob a proteção do Sacro Império Romano-Germânico. Isto as fez proclamarem-se “única e verdadeira Ordem dos Cavaleiros Teutônicos”, porém representavam menos de um quinto dos seus efetivos e propriedades, o que lhes retirou significado e importância maiores. Dessa forma, enquanto no norte a Ordem era absorvida pelo Estado Prussiano e tornava-se Ordem Militar Honorária, no sul ela era absorvida pela Igreja Católica e tornava-se ordem religiosa igual às demais.

Em 1525 o grão-mestre teutônico Albrecht Hohenzollern coroou-se rei da Prússia Ocidental e foi aceito como
                       duque feudatário da Prússia Oriental pelo rei Sigismund da Polônia. Quadro de Jan Matejko (1882)

No início do século XIX o imperador Napoleão Bonaparte derrotou a coalizão austro-prussiana e, tal como já fizera na França, exigiu que os monarcas vencidos abolissem em seus territórios as ordens religiosas militares. O resultado foi a legal extinção tanto do ramo católico austríaco como do ramo protestante alemão da “Ordem dos Cavaleiros Teutônicos”. Porém, após a queda do império napoleônico em 1815, ela foi restaurada e subsistiu com idas e vindas até ser novamente extinta pelos revolucionários que aboliram os impérios austríaco e alemão no final da Primeira Guerra Mundial. Em 1931 o Papa Pio XI corretamente a restaurou como ordem estritamente religiosa com finalidades assistenciais, mas em 1938 ela sofreu suprema injúria quando o enlouquecido ditador Adolfo Hitler a transformou numa espécie de “ordem maçônica” de caráter cabalístico, ligada às aterrorizantes tropas SS, apelidadas de "morte negra" por usarem uniforme preto e uma caveira no quepe. Sob a liderança do sórdido Henrich Himmler, chefe das SS, rituais pagãos e insensatas sessões de ocultismo passaram a ser realizados secretamente no Castelo de Marienburg com o mistificador propósito de "revitalizar" um nunca existente "antigo espírito teutônico da Ordem". A absurda mistificação prosseguiu até o final da Segunda Guerra Mundial, quando só então a "ordem apócrifa" desapareceu junto com os seus repulsivos mentores.

Os nazistas elegeram os Cavaleiros Teutônicos símbolos do poder alemão
                       tolhido por sinistros inimigos. Cartaz de propaganda do NSDP
            
Finalmente, em 1947 o Papa Pio XII a restaurou nos termos corretos em que o fizera o seu antecessor dezesseis anos antes e desde então a "Ordem da Casa de Santa Maria dos Combatentes Teutônicos” tem sua sede em Viena e presta bons serviços assistenciais, mas para evitar atrozes equívocos e sórdidas mistificações só podem dela fazer parte e atuar nos seus trabalhos membros do clero católico expressamente convidados.
Os nazistas recriaram a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos como organização ocultista secreta vinculada
                                             às sórdidas SS. Suas sinistras reuniões eram no antigo castelo-sede da Ordem
            
Porém a indecente "refundação" da Ordem pelos nazistas, associando-a aos carrascos das SS, trouxe-lhe enormes prejuízos, pois fez os europeus orientais relembrarem não o seu recente passado benemerente, mas o seu antigo passado sombrio, trazendo de volta à memória de suas vítimas históricas todas as crueldades que a Ordem praticara em seus países vários séculos antes. Isto motivou o ditador soviético Joseph Stalin, que já previa a eclosão da II Guerra Mundial, a encomendar ao cineasta Sergei Eisenstein um filme sobre o assunto, mas que servisse de restaurador dos brios patrióticos russos e de propaganda anti-alemã. O resultado foi o filme “Alexandre Nevski e os Cavaleiros de Ferro”, obra-prima cinematográfica hoje incluída entre as mais perfeitas de todos os tempos. O filme é notável não pelo tema, mas pelo excelente roteiro, ótima atuação dos atores, inusitados efeitos especiais, trilha musical primorosa e, sobretudo, pela sua magnífica fotografia em preto e branco. A repercussão e influência do filme têm sido duradouras, pois muitos cineastas nele se inspiraram. O caso mais notável é o do diretor americano George Lucas em seu seriado “Guerra nas Estrelas”, pois lord Vader, o imperador e as tropas do “Império do Mal” são claramente inspirados no Chanceler, no Grão-Mestre e nos Cavaleiros Teutônicos do filme de Sergei Eisenstein. Também é grande no seriado de George Lucas a semelhança do idealismo, bravura e altruísmo dos Cavaleiros Jedi com as virtudes patrióticas do príncipe Alexandre Nevski e dos seus oficiais na obra do diretor russo.   

Tudo bem examinado, verifica-se que apesar dos decentes esforços da Igreja Católica a Ordem da Casa de Santa Maria dos Combatentes Teutônicos realmente deixou de existir em termos militares, políticos e históricos ainda durante a Reforma Religiosa no século XVI e subsiste apenas como reminiscência de um cruel passado distante.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Post nº 60

RICARDO  CORAÇÃO  DE  LEÃO  -  O  MAIS
VALENTE  DOS  REIS  MEDIEVAIS

As batalhas entre o rei Ricardo e o sultão Saladino fizeram da III Cruzada a mais famosa
de todas - Tela de Phillipe Jacques de Loutherbourgh (século XVIII)


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I

A Marcha Para o Trono em Uma Família Disfuncional

            
Nenhum rei na história teve vida mais aventureira, cheia de lendas e relembrada ao longo dos séculos do que Ricardo I da Inglaterra, cognominado O Coração de Leão. Isto surpreende porque, quando se examina o seu governo, verifica-se que foi ruim e nada de útil fez para os governados em particular nem para a humanidade em geral. Na verdade Ricardo foi um rei ausente, pois dos seus dez anos de reinado passou apenas seis meses na Inglaterra e dela só se lembrou para cobrar impostos e leiloar cargos públicos afim de angariar fundos para suas aventuras guerreiras! Então qual a causa de ser tão celebrado, a ponto de ser o único rei inglês conhecido por seu cognome e o único a ter uma estátua eqüestre diante do vetusto Parlamento Britânico?

Creio que a resposta está na admiração que as pessoas dedicam aos guerreiros, sobretudo quando além de bravos são belos, cultos, boêmios, simples e aventureiros, esquecendo todas as suas demais virtudes e defeitos. Isto é exatamente o que ocorre com Ricardo, de quem ilustre historiador disse com acerto: foi mau filho, mau marido e mau rei, porém foi o mais esplêndido dos guerreiros! Fato curioso simboliza bem essa sua condição: foi o primeiro príncipe reinante que buscou ser sagrado cavaleiro!

Embora a “Cavalaria” estivesse no auge, nenhum monarca até então buscara a condição de cavaleiro, achando que a sua coroa já lhe dava esse status, mas Ricardo, provado em combate e duque reinante da Aquitânia, buscou a honraria, conferindo-lhe excepcional valor ao ser sagrado cavaleiro por seu primo, o rei Luis VII de França. Daí em diante, todos os príncipes buscaram ingressar nas Ordens da Cavalaria, pois se um duque coroado, veterano de guerra, fazia questão de se tornar oficialmente cavaleiro, que dirá outros nobres muito menos importantes!


Sarcófagos de Henry II e Eleanor D'Aquitaine, pais
de Ricardo, na abadia de Fontevraud na França

Ricardo nasceu em 1157 em Oxford, terceiro filho homem do rei da Inglaterra Henrique II e de Eleanor, duquesa da Aquitânia. Bravo, inteligente e com talento musical e poético, recebeu ótima instrução cultural e militar, tocando com maestria instrumentos de corda e cantando bem aos doze anos de idade, conversando bem e versejando com facilidade aos treze, disputando torneios com habilidade aos quatorze e combatendo com valentia aos quinze. Relatos dizem que era bonito, louro, olhos claros, forte e com 1,90 m de altura. O pai era bom general e estadista, mas era também ganancioso, violento e devasso. A mãe era mulher séria que, além de boas qualidades políticas, possuía ótimos dotes intelectuais, mas era serpente gulosa e astuta que pariu ninhada de iguais, e dedicou o seu amor a mais bela, culta e valente de todas: Ricardo!

Ambiciosa e sem escrúpulos, ela fez o marido dividir em vida seus domínios com os três filhos guerreiros provados, conservando sobre eles a suserania e cabendo a Ricardo a Aquitânia. Esta era o riquíssimo ducado da mãe, que por isso fez coroar o filho duque reinante e investi-lo no poder com os símbolos da sua soberania: anel, cetro e estandarte! O caçula João, ainda menino, ficou fora do arranjo e não ganhou nada, por isso recebendo o apelido de "João Sem Terra”!
 
Ricardo lutou anos na França, mas foram as cruzadas
que lhe deram fama . Gravura de G. Doré (séc. XIX)
            
Eleanor era não só a princesa mais rica e culta da Europa, como a maior patrocinadora das artes na época. Aficionada da trova, gênero poético-musical profano surgido há pouco tempo para escândalo dos tradicionalistas, os quais achavam que a poesia e a música só deviam ocupar-se de temas religiosos, ela passou a patrocinar os trovadores talentosos e a sua corte tornou-se a mais brilhante do seu tempo. Talvez tenha sido o fato de Ricardo ser bom músico e poeta, muito mais do que o fato de ser bravo e bonito, que o tenha feito ser o seu "filho predileto", embora não do seu marido.

Valente e aventureira, Eleanor participara da II Cruzada ao lado do primeiro esposo, o seu correto primo-irmão Luis VII da França, de quem se divorciaria mais tarde por questões de consanguinidade para casar com Henrique II da Inglaterra, pois na época a Igreja não era muito zelosa da indissolubilidade do vínculo matrimonial quando os interessados eram príncipes poderosos. Todavia ela continuou amiga do decente ex-marido, de quem parece ter sido mais irmã que esposa, tudo indicando que teve relação apaixonada com o brutal Henrique pela filharada que produziu, mas as evidências são de que sua inteligência e valentia, junto com sua veia artística e aventureira, transmitiram-se ao filho Ricardo em dose concentrada e fizeram dele o que ele foi.

Eleanor e Henrique II foram personificados no cinema pelos grandes atores Katherine Hepburn
e Peter O'Toole. Há evidências de que se amavam, mas eram como cão e gato
  
Fosse como fosse, Ricardo e os irmãos foram instigados pela mãe, indignada com os excessos do marido e pelo primo rei de França Luis VII, cansado dos saques e extorsões de Henrique, a se rebelarem contra o pai devasso e brutal. Ansiosos por livrarem-se do jugo paterno e governarem sozinhos os seus domínios, incendiaram o reino, espalhando morte e destruição. Ressalte-se que o “Estado”, como o conhecemos, desaparecera na Idade Média, e “países” eram apenas vastos feudos de famílias poderosas que os exploravam em sociedade com outras iguais, numa incrível teia jurídica de senhorio e vassalagem.


O rei Henrique II foi à coroação de Felipe por ser seu vassalo em vários
feudos. Iluminura medieval em "Grands Chroniques de France"

Os títulos significavam o que diziam, pois rei, duque ou conde desse ou daquele lugar, sobre ele reinava absoluto, tendo apenas que pagar ou receber a vassalagem da terra dada ou recebida em feudo. Nesta incluíam-se também a obediência e o auxílio, caso necessário, mas estes só eram prestados quando havia interesse do vassalo em prestá-los. Assim, o rei ou o duque nada mais eram que grandes senhores a quem outros pagavam tributo pelo uso da terra, e não um chefe de “Estado”, pois este não existia. Aos olhos de hoje, às vezes chegava-se ao ridículo, porque embora reis e duques estivessem no alto da hierarquia, não era raro serem eles vassalos neste ou naquele feudo de seus pares ou mesmo de seus inferiores. Reis vassalos de duques e duques vassalos de condes era comum e não surpreendia ninguém.

Ricardo nada fez pela Inglaterra, mas é o único rei inglês que mereceu a honra de ter
uma estátua equestre em frente ao vetusto parlamento britânico
            
A rebelião de Ricardo e dos irmãos contra o pai foi uma guerra sem amor, como disse um historiador do século XII, e quando eles finalmente se renderam, pedindo perdão e jurando obediência, Henrique se garantiu da sua duvidosa lealdade mantendo a venenosa matriarca Eleanor prisioneira na Inglaterra, vigiada com rigor dia e noite. Ambos há muito viviam separados, mas enquanto Eleanor aparentemente levava vida casta, Henrique deitava e rolava com inúmeras amantes, entre as quais Alys, irmã de Felipe Augusto e noiva de Ricardo, capturada durante a rebelião dos filhos. A sua poderosa família, portanto, era uma das mais acanalhadas no turvo cenário europeu da época.

Manter a decência em sua disfuncional família não parece ter sido uma das
principais preocupações da intelectual e boêmia Eleanor
            
Querendo provar a “lealdade” de Ricardo, o pai o mandou punir os senhores da Aquitânia que se recusavam renderem-se, pondo Ricardo na ingrata tarefa de punir seus próprios ex-aliados. Mas gratidão e decência eram coisas raras no período e o filho tratou de servir com desvelo o pai que lhe seduzira a noiva, arremetendo contra os barões rebeldes. Indignados com a sua “traição”, opuseram-lhe tenaz resistência, mas Ricardo os venceu um a um em brilhante campanha militar, realizando prodígios de bravura e ganhando o apelido com o qual passaria à História: Coração de Leão!
 
Enquanto Ricardo lutava Felipe Augusto era coroado aos dezesseis
anos . Iluminura medieval em "Grands Crhoniques de France"
            
Os relatos dessa campanha são contraditórios, pois, embora nenhum lhe negue a bravura, alguns o acusam de frios assassinatos, horríveis destruições, cruéis massacres e até mesmo incontáveis estupros, mas fosse por interesse, arrependimento ou inclinação, Ricardo foi cavalheiresco com os vencidos e ganhou também, merecidamente ou não, a fama de generoso e correto. Daí em diante foram dez anos de morticínios, traições e intrigas, com todos agindo como cobras vorazes engolindo umas as outras, enquanto a morte dos seus irmãos mais velhos Geoffrey e Henrique o colocava à testa da linha sucessória.

Enquanto a família de Ricardo se entredevorava, o seu valoroso primo Felipe Augusto, com quem tinha difícil relacionamento, e mais tarde viria a ser seu tenaz inimigo, substituíra o bondoso Luis VII no trono francês e aos poucos ganhava força, mostrando-se temível ameaça às possessões inglesas no continente. Muito hábil, jogava os seus primos contra o pai e também uns contra os outros, tirando o melhor partido possível. Como resultado da sua inteligente política, recuperou várias possessões extorquidas por Henrique, entre as quais a importante cidade de Tours, façanha brilhante para a qual contou com a ajuda de Ricardo. Assim, quando o violento rei inglês faleceu em 1189, Ricardo mais que depressa foi a Londres e se fez coroar na catedral de Westminster duque da Normandia e rei da Inglaterra, fazendo armas da monarquia inglesa os quatro leões do seu escudo e o seu lema Pour Mon Dieu Et Mon Droit!

II
O Cavaleiro Cruzado

Apesar de nada fazer de realmente útil, as Cruzadas fizeram de Ricardo o rei mais popular e
famoso da Idade Média - Tela de Merry-Joseph Blondel (séc. XIX)

Mas Ricardo estava se lixando para a Inglaterra, pois, apesar de lá ter nascido e vivido algumas temporadas quando jovem, nunca buscara aprender inglês ou estabelecer laços mais profundos com o povo inglês. Isso não era excepcional, pois a dinastia reinante era francesa e a língua falada pela elite inglesa era o francês, mas o fato mostra o quanto eram frágeis suas ligações com a Inglaterra. Os escassos seis meses vividos em seu reino após a coroação foram dedicados somente a levantar dinheiro e soldados para o que passara a ser o seu principal objetivo: conquistar Jerusalém! Nisto não havia devoção ou cobiça, pois não era apegado à religião ou riquezas, donde se conclui que o projeto se devia apenas à sua insaciável fome de guerras e aventuras. Para ele, quanto mais longínquos e exóticos fossem os países onde elas ocorressem, melhor!
 
Em 1189 Felipe Augusto ocupou Tours e juntou forças antes de ir para
as Cruzadas. Iluminura medieval em "Grands Chroniques de France"

Ricardo corria contra o tempo porque, enquanto estava na Inglaterra, o seu primo Felipe Augusto se fortalecia em Tours, tomada de Henrique II pouco antes com o seu apoio, lá arregimentando o seu grande exército antes de partir para as Cruzadas. Ricardo enfrentava agora um sério dilema, pois se fosse disputar Tours com o primo nenhum dos dois conseguiria viajar à Terra Santa, e isso era a última coisa que desejava. Portanto, confirmou a posse de Felipe e o "tratado de colaboração" existente entre os dois desde a guerra com o seu pai Henrique II. Combinaram também somar forças e partir juntos para a Palestina, onde já estava o famoso imperador alemão Frederico Barba-Roxa à frente de poderoso exército.
          
O imperador Barba-Roxa iniciara a III Cruzada e Ricardo
ansiava partir ao ser coroado. Tela de Max Barack

Logo após a tomada de Jerusalém pelo sultão Saladino em 1187, o Papa convocara nova Cruzada para reconquistar a cidade santa e para lá partira o poderoso imperador alemão Frederico Barba-Roxa, por isso Ricardo não via a hora de partir, pois temia que o imperador ganhasse a guerra antes que ele chegasse e dela pudesse participar. Porém Barba-Roxa morreu afogado quando o barranco do rio por cujas margens passava cedeu e ele caiu nas corredeiras com vários cavaleiros, fazendo com que a cruzada ficasse paralisada devido ao trágico acidente. Ricardo viu então que ainda teria bastante guerra pela frente, podendo se preparar melhor antes de partir porque o filho e sucessor de Barba-Roxa decidira ficar na Alemanha e não participar da campanha.
 

Barba-Roxa e vários cavaleiros cairam em um rio e se
afogaram. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
            
Durante os seus preparativos, massas fanáticas massacraram judeus em toda a Inglaterra, mas, ao invés de se aproveitar da irracional fúria popular para reforçar o seu projeto, Ricardo mandou prender e enforcar vários massacradores sem dar importância aos protestos de importantes prelados da Igreja, tão fanáticos e brutais quanto as ignorantes massas que eles incitavam. Ao partir, ordenou aos regentes que não admitissem perseguição aos judeus e defendessem com firmeza suas pessoas e propriedades, ordem que na sua ausência não foi seguida à risca, pois muitos massacres ainda ocorreram. Mas a sua generosa atitude fora coisa rara na época, e ele não tinha motivos egoísticos para assim agir, o que fez sua fama de justo e generoso aumentar ainda mais.

Antes de partirem para as cruzadas os reis recebiam contritos as bênçãos da Igreja, mas permitiam que
massas fanáticas massacrassem os judeus. Quadro de Jean Baptiste Mauzaisse (séc. XIX)
            
Após fazer pública penitência para se purgar dos pecados antes de iniciar a sagrada missão, ele e o primo Felipe Augusto partiram na primavera de 1191 e chegaram com suas tropas à Sicília, cujo rei, casado com sua irmã Joana, falecera recentemente e fora sucedido pelo príncipe Tancredo, parente próximo e aliado de Henrique, sucessor de Barba-Roxa no trono do império alemão. Querendo haver para si também o patrimônio do tio, Tancredo despojara a rainha viúva e Ricardo exigiu a sua devolução, mas o ganancioso príncipe recusou e a guerra irrompeu.
 
Barba-Roxa e o seu filho Henrique, futuro inimigo de Ricardo e que
mais tarde o prenderia durante meses. Iluminura medieval

Como um raio, Ricardo tomou e saqueou Messina, onde instalou sua base de operações, mas antes que a ilha fosse devastada Tancredo aceitou pagar gorda indenização à rainha viúva, e o “Coração de Leão” rumou para a Terra Santa com a irmã, que levava o Tesouro ganho de Tancredo, e a noiva Berengária, filha do rei de Navarra. Os dois já se conheciam de um torneio, durante o qual ela se apaixonara perdidamente, e quando se organizara a Cruzada ela se fizera simpática ao alistar um pelotão de soldados, coisa bem ao gosto de Ricardo. Eleanor, que patrocinava com ardor o casamento por querer para o filho também o reino de Navarra, vizinho aos seus domínios, a levou à Sicília e lá acertaram o noivado. Precisando do selo do pai da noiva no contrato nupcial, a interesseira raposa Eleanor voltou à França, mas a inocente Berengária e a rainha-viúva Joana viajaram com a frota para a grande aventura.

              E tratando-se de Ricardo aventura era o que não faltaria!


Escultura de Berengária na abadia de L'Epau, na França,
onde viveu como freira após enviuvar de Ricardo
             
Já navegavam próximos à Palestina quando um tufão dispersou a esquadra e o navio, que transportava Berengária e Joana com o seu tesouro ganho na Sicília, aportou na Ilha de Chipre, província do Império cristão-ortodoxo de Constantinopla. Mostrando que as Cruzadas nada mais eram que expedições de rapina, onde religião era apenas pretexto para mobilizar massas fanáticas do Ocidente, o príncipe Isaac Komnenos, governador “cristão” da ilha e primo do duque da Áustria, ignorou tratarem-se de “cruzados” e aprisionou a noiva e a irmã de Ricardo, confiscando o navio e o tesouro!

Ricardo em combate na Palestina. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
         
Quando os demais navios chegaram, nova guerra estourou entre “príncipes cristãos” por conta de pura e simples ladroeira. As coisas estavam difíceis, mas a sorte veio na pessoa de Guy de Lusignan, nobre francês e ex-rei de Jerusalém que o sultão Saladino aprisionara e depois libertara num gesto de generosidade que lhe seria danoso, pois Guy voltara a pegar em armas e desde então lhe movia intensa guerrilha na tentativa de reaver o reino perdido. Guy era parente distante e súdito feudatário de Ricardo na França, mas era também viúvo de uma sua prima muito próxima, a famosa princesa Sibila de Jerusalém, coisa que o fazia membro da família. Assim, foi admitido no estado-maior do rei inglês e mostrou ter sido sua chegada providencial, pois a essa altura Felipe Augusto, que nunca se dera bem com Ricardo, fazia corpo mole e quase não participava da luta.

Com o auxílio de Guy e das Ordens militares, Ricardo triunfou, aprisionou o governador salteador e o humilhou pondo-o a ferros, proclamou-se rei de Chipre e casou-se com Berengária em meio a grandes festas. Na oportunidade, proclamou a mulher também rainha da Inglaterra, onde ela nunca pisara, mas a sua lua de mel durou pouco porque logo a deixou na ilha com a irmã para desembarcar na Palestina e conquistar, junto com Felipe Augusto, a estratégica cidade-fortaleza de Acre após sangrenta batalha. Saladino a tinha ocupado algum tempo antes, impulsionado pela reconquista de Jerusalém, mas agora ela voltava ao domínio dos cristãos pelas espadas de Ricardo e de Felipe Augusto, fazendo a balança da guerra novamente inclinar-se a favor dos cruzados.
  
Ricardo era bom em todo combate, mas seu forte era a conquista das cidadelas
inimigas. Tela de Merry-Joseph Blondel (séc. XIX)
   
Foi aí que ocorreu incidente que prejudicaria a Cruzada e traria funestos resultados futuros a Ricardo. Logo após a custosa vitória, o duque Leopoldo da Áustria, já desgostoso por Ricardo ter posto a ferros em Chipre seu primo Isaac Komemnos, chegou por terra e, sem ter tomado parte na luta, fincou suas bandeiras na cidade como se fosse um dos seus conquistadores. Isto deixou indignados Ricardo e Felipe, que mandaram retirá-las e expulsaram o “usurpador de vitórias”. Fanfarronice e arrogância eram coisas que não faltavam aos príncipes cruzados!

Felipe Augusto diante das muralhas de Acre. Ele tinha grande valor militar, mas era inferior a
Ricardo, de quem tinha grande inveja. Quadro de Merry-Joseph Blondel (séc. XIX)
             
Com Acre segura em suas mãos, Felipe e Ricardo romperam definitivamente e o rei francês voltou à França, mas Ricardo decidiu marchar sobre Jerusalém sem sua ajuda e dos exércitos austro-alemães, que tinham abandonado a Cruzada após vários infelizes acontecimentos, entre os quais o afogamento do famoso imperador alemão Frederico Barba-Roxa. Contando apenas com as próprias forças e as das ordens militares, sobretudo Templários e Hospitalários, Ricardo derrotou Saladino novamente na grande batalha de Arsuf, mas sérios problemas na retaguarda o impediram de ir adiante. Imobilizado no sul após a vitória, Ricardo voltou à fortaleza de Acre e cometeu absurdo ato de crueldade, que se não fora pelas brutais necessidades da guerra teria manchado para sempre a sua honra de cavaleiro.

Ricardo derrotou sozinho Saladino na grande batalha de Arsuf, mas recuou devido a
problemas na retaguarda. Tela de Eloi Firmin Feron (séc. XIX)

Durante a luta fizera dois mil e setecentos prisioneiros, e não tendo como mantê-los nem como afastar-se da sua base sem correr o perigo de perdê-la por conta de possível rebelião dos presos, propôs a Saladino libertá-los mediante resgate, mas o sultão viu o fardo que eles eram para o seu adversário e recusou. Furioso, Ricardo os executou  a sangue frio, promovendo enorme carnificina que horrorizou até mesmo os seus mais brutais soldados.

A matança de dois mil e setecentos prisioneiros em Acre é a mancha mais
negra na vida de Ricardo. Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Porém Saladino vira que esticara demais a corda e reconheceu que não lhe deixara opção, por isso foi moderado ao condená-lo pelo horrendo ato de crueldade, contentando-se com uma lição de moral e a "modesta represália" de durante duas semanas decapitar todos os cruzados que caíssem em suas mãos! Isto mostra que os critérios de "humanidade" da época eram bastante diferentes dos de hoje. O próprio Ricardo estava confuso com a infame desgraça que praticara, mas a resposta elegante e "moderada" de Saladino, com poucos insultos e maldições, o tranquilizou e parece que este foi um dos atos cavalheirescos do seu opositor que o fez para sempre estimar o sultão.

Contando apenas com o apoio das Ordens religiosas, Ricardo retomou a
ofensiva contra Saladino. Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)
             
Mas uma desgraça nunca vem sozinha. Guy de Lusignan lhe prestara grande ajuda em Chipre e ele retribuíra apoiando-o na luta pelo presuntivo trono de Jerusalém contra Conrad de Montferrat, primo do novo imperador alemão e preferido pelos barões. Feita uma eleição, Conrad ganhou e Ricardo teve de se conformar ao voto majoritário, mas pouco tempo depois Conrad foi assassinado e Ricardo casou depressa a viúva com um seu sobrinho, levantando fundadas suspeitas sobre o seu envolvimento no crime.

Além da inimizade do duque da Áustria, Ricardo tinha agora também a inimizade do imperador alemão, a quem já ofendera ao humilhar outro seu parente próximo: o rei Tancredo da Sicília! Suas tensas relações com Felipe Augusto já tinham sido rompidas e o rei francês voltara à França para sabotá-lo, o mesmo tendo acontecido com o duque Leopoldo, que voltara à Áustria após tornar-se seu inimigo, de sorte que Ricardo agora conduzia a Cruzada quase sozinho, contando apenas com o apoio de Guy e dos Cavaleiros das Ordens religiosas. Fosse outro desistiria, mas o Coração de Leão não esmoreceu e rechaçou várias contra-ofensivas de Saladino, retomando a iniciativa e de novo aproximando-se de Jerusalém.
  
Felipe Augusto tornou-se inimigo de Ricardo e o sabotou. O fracasso da III Cruzada deve-se
a ele. Tela de Louis-Félix Amiel (séc. XIX)

O esforço dos dois lados até então fora enorme e todos estavam esgotados. Uma trégua extra-oficial instaurou-se, permitindo que durante meses Ricardo e Saladino negociassem intensamente, trocando presentes e gentilezas, sem todavia chegarem a uma conclusão satisfatória. Fala-se que o casamento da sua irmã Joana, rainha-viúva da Sicília, com um irmão de Saladino chegou a ser tratado, mas a rainha recusou quando soube que seria apenas a "1ª esposa" em um harém de várias outras. Dizem que foi também sugerido seu casamento com uma irmã de Saladino, pois a poligamia era legal entre os muçulmanos, mas não entre os cristãos, porém Ricardo teria dito ao sultão que se este lhe desse Jerusalém como dote da noiva ele obteria do Papa a anulação do seu casamento com Berengária e o matrimônio cristão-muçulmano se realizaria sem empecilhos, pois a Igreja era muito solícita com os príncipes nessas questões e concedia anulações de casamentos nobres com grande facilidade. Erroneamente Ricardo pensara poder conquistar Jerusalém por meios familiares ao invés de militares, porém, verdade ou lenda, Saladino achou o dote exigido alto demais e a ideia foi esquecida.

Ilustração em obra do século XIX sobre lendário encontro de Ricardo e
Saladino para tratar do casamento de Joana com o irmão do sultão

Fosse por estas ou por outras razões, Berengária e Joana também abandonaram a Cruzada e voltaram à Europa, mas Ricardo não se perturbou com a partida delas e aproveitou a ausência da mulher para vender Chipre aos Cavaleiros Templários, pois precisava desesperadamente de dinheiro. Com a fortuna obtida, se fortaleceu e reiniciou a ofensiva, tendo vitórias e derrotas parciais até obter vitória maior que lhe abriu o caminho para o seu objetivo final.


Ricardo marchou sobre Jerusalém com todas as suas forças após o fracasso das conversações
com Saladino. Tela de James William Glass (séc. XIX)

Bem mais velho que o seu adversário, Saladino estava bastante doente e morreria no ano seguinte, mas ainda tinha suficiente ânimo combativo para arregimentar o seu grande exército e preparar-se com invulgar energia para travar a batalha decisiva em frente às muralhas de Jerusalém. Ricardo, muito mais jovem e saudável, estava possuído de enorme determinação e marchou para a batalha à frente de suas motivadas tropas abrindo caminho a ferro e fogo, mas quando já avistava as torres da cidade santa, onde o aguerrido exército muçulmano o esperava para o tudo ou nada, recebeu urgente mensagem da Europa: seu irmão João sem Terra tramava com seu primo Felipe Augusto usurpar-lhe o trono e despojá-lo dos seus domínios!

De nada adiantaram a Ricardo suas vitórias, pois a sabotagem  dos seus parentes
o venceu. Gravura de Gustave Doré (séc. XIX)
           
Vendo que não mais poderia se demorar no Oriente, Ricardo interrompeu a marcha e pediu um armistício. Após rápidas conversações, fez um apressado Tratado de Paz com Saladino e escreveu-lhe carta de despedida que é um dos mais perfeitos exemplos de cavalheirismo da História: saiba vossa alteza que em minha vida tive muitas honras, porém a maior delas foi o privilégio de ter como adversário o grande Saladino, o mais bravo e honrado de todos os guerreiros!

Saladino respondeu à altura: mais privilegiado do que vossa alteza fui eu, pois se não houvera nascido Saladino quisera a honra de ter nascido Ricardo!

Este foi por certo o momento mais alto da Cavalaria Medieval.


III
O Infeliz Regresso

Ricardo diz adeus à Terra Santa sem ter conseguido conquistar Jerusalém.
Gravura de Alphonse-Marie-Adolphe de Neuville (1883)
           
Uma das coisas que mais contribuíram para a imensa popularidade de Ricardo foi não gostar dos ambientes sofisticados, com suas etiquetas e frivolidades. Estivesse ocupado nas guerras ou relaxando nas caçadas e nos torneios, preferia sempre as tendas aos castelos, e numas ou noutros o seu divertimento era comer e beber com os amigos, geralmente guerreiros dos mais diversos níveis sociais, tocando, cantando e travando duelos poéticos sobre temas lúbricos e chistosos, o que o fazia aos olhos do povo modelo perfeito e acabado do “bom companheiro”. Ressalte-se que as massas da época não esperavam dos senhores “boa administração”, conceito para elas desconhecido, mas tão somente simpatia, simplicidade, atenção e bom tratamento no convívio pessoal. Um rei que lhe fosse próximo, decidido, valente, aventureiro, simpático e generoso, era tudo que o povo queria de um bom monarca, e Ricardo personificava esse ideal mesmo estando centenas de léguas distante.

Levando ao extremo sua irresponsabilidade e sede de aventuras, resolveu temperar sua viagem de volta com mais algumas e, ao invés de rumar direto a França pelo mar Mediterrâneo, como seria obvio, subiu o mar Adriático e desembarcou no seu litoral norte, próximo à Áustria. Com meia dúzia de amigos tão malucos e aventureiros quanto ele, disfarçou-se de humilde peregrino e entrou a pé nos domínios do duque Leopoldo, seu inimigo. Este soube do desembarque, mas achou que Ricardo tinha algum negócio no norte da Itália e por lá resolvera passar antes de chegar à França, porém, quando não teve notícias dele em território italiano, veio-lhe a suspeita de que o rei pretendia cruzar incógnito a Áustria para depois ridicularizá-lo, vangloriando-se por toda a Europa: “passei cantando e tocando guitarra pelas barbas de Leopoldo e o imbecil nem percebeu”!

Mesmo sendo isso absurdamente irracional e improvável, Leopoldo sabia que de Ricardo se podia esperar qualquer tipo de maluquice, e colocou seus guardas à espreita. Não demoraria muito, pois arrogantes cavaleiros bancando humildes peregrinos era coisa ridícula que não enganava ninguém. Por onde passavam, a farsa logo era percebida, e quando entraram altivos numa estalagem ordenando vinho e frango assado, iguarias de ricos, a polícia local foi acionada e foram todos presos.

Versão romantizada da captura de Ricardo na Áustria. Na verdade ele e seus cavaleiros
vestiam trajes civis e não houve luta. Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Leopoldo logo libertou os cavaleiros mediante módico resgate, mas resolveu punir Ricardo com longo período de prisão em recôndito castelo, enquanto combinava com o imperador alemão o que fazer com o ilustre prisioneiro. Foi em sua solitária prisão no remoto castelo de Durstein que Ricardo recebeu a notícia da morte por causas naturais do sultão Saladino, seu galante adversário, fato que agravou ainda mais o seu triste estado de espírito. Há notícia de que em sua solidão escreveu poema lamentando a morte e exaltando as virtudes do grande estadista muçulmano, mas não há certeza e nada chegou até nós.

O islamismo proíbe escultura de animais e de pessoas, mas abriu
exceção para Saladino. Estátua sua no museu de Damasco

Ricardo esperava ser tratado com dignidade e respeito pelos seus captores, pois não podia imaginar que príncipes cristãos fossem inferiores em generosidade e nobreza no trato com seus pares a príncipes muçulmanos, como Saladino, mas enganou-se redondamente, pois cavalheirismo não era virtude comum entre os potentados do Ocidente. O imperador alemão Henrique, filho do famoso Barba-Roxa, era também inimigo de Ricardo por ter este humilhado seu sobrinho Tancredo na Sicília e possivelmente participado do assassinato de Conrad de Montferrat, também seu parente próximo. Por isso não só ficou imensamente feliz ao saber que o leão estava na jaula, como decidiu com Leopoldo não lhe dar privilégios maiores e dele tirarem a maior vantagem possível, apesar de não haver qualquer estado de guerra entre eles.

Ruínas do castelo de Durnstein na Áustria onde Ricardo foi aprisionado
e provavelmente recebeu a notícia da morte do sultão Saladino
            
Nada estava ainda decidido quando surgiram rumores de que “comandos” de audazes cavaleiros se preparavam para libertar o idolatrado chefe. O boato dizia que, incertos do castelo onde o rei estava preso, um dos cavaleiros disfarçara-se de trovador e fora de castelo em castelo cantando ao pé das muralhas canção cujo estribilho-resposta jocoso só era sabido por ele e por Ricardo. Quando finalmente ouvira ser cantado da janela de um dos castelos o estribilho, tivera certeza do paradeiro do rei e informara aos demais, que agora se preparavam para libertá-lo em fulminante operação de “comandos”. Verdade ou lenda, Leopoldo ficou amedrontado e entregou Ricardo ao poderoso imperador alemão, que tinha muito mais recursos para manter segura a valiosa presa.

Visão poética das ruínas do castelo de Durnstein onde Ricardo foi
prisioneiro. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX)
            
Era ilegal prender um cavaleiro cruzado, que dirá um rei que voltava da guerra santa, e o fato causou grande escândalo, fazendo com que o Papa excomungasse o duque e o imperador. Mas os dois pouco se incomodaram e, agindo como chefes mafiosos, cobraram da riquíssima Eleanor fabuloso resgate pela liberdade do filho querido. Ela se pôs em campo para obter a alta soma exigida e foi aí que a bandalheira se tornou realmente cômica, pois João Sem Terra e Felipe Augusto ofereceram ao duque e ao imperador soma maior ainda para que NÃO O SOLTASSEM! Seguiu-se ridículo leilão onde o "PRENDE" e o "SOLTA" ficou ao sabor do “QUEM DÁ MAIS” até que Eleanor fez irrecusável lance, equivalente hoje a dois bilhões de libras esterlinas, o dobro da arrecadação anual da Inglaterra na época. Após um ano de prisão e um dos mais absurdos “leilões” da História, o imperador o soltou, mas antes escreveu aos dois cretinos parentes de Ricardo: “Cuidem-se! O diabo está novamente à solta”!

Estátua de Felipe Augusto. O seu ódio a Ricardo fê-lo oferecer alta soma
ao imperador alemão para que o mantivesse na prisão
            
Ao voltar, Ricardo encontrou seus domínios em péssima situação devido às rapinagens do seu irmão João sem Terra e dos altíssimos impostos lançados para pagar o seu resgate, mas em vez de contemporizar os elevou ainda mais, espremendo os seus súditos ao máximo e fazendo com que revoltas estourassem em toda parte. Em meio à confusão, João sem Terra encolheu-se, mas Felipe Augusto aproveitou a balbúrdia para declarar guerra a Ricardo e este o derrotou batalha após batalha, forçando-o a pedir a paz em termos extremamente desfavoráveis. Curiosamente, nos três anos de paz que se seguiram o Coração de Leão não empregou os frutos materiais das suas vitórias em exércitos e armamentos, mas em uma nova paixão artística: a arquitetura!

Seu amor pela música e pela poesia era antigo e muito conhecido, tendo um dos seus poemas-canção, Nenhum Homem Aprisionado, se tornado bastante popular em toda a Europa após compô-lo em sua prisão austríaca e o enviar a uma de suas irmãs dotada de gosto literário, a qual se encarregou de transformá-lo em importante peça de propaganda na campanha pela sua libertação. Mas sua paixão pela arquitetura era nova e surpreendeu a todos. Ele não só fez a planta como dirigiu pessoalmente a construção do famoso Chateau Gaillard, que se tornou um marco arquitetônico tanto pela beleza como pelas inovações na arte da edificação dos castelos, isto na mesma época em que as magníficas catedrais góticas eram erguidas e revolucionavam a arte da edificação das igrejas.


Desenhado e edificado por Ricardo, o Chateau Gaillard hoje está em ruínas, mas foi uma
revolução na arte da construção de castelos
    
Embora fosse um guerreiro em toda a sua essência e tenha praticado terríveis crimes e crueldades, não há evidências de que Ricardo tivesse instinto sanguinário ou perverso, pois eram conhecidos os seus atos de generosidade desinteressada. Por outro lado, são indiscutíveis os seus dotes artísticos e, se nenhuma obra poética ou musical de sua lavra chegou até nós, isto deveu-se ao seu caráter dispersivo e relaxado. Ademais, não existia escrita musical nem imprensa na época, o que fazia com que músicas apenas se transmitissem pelo ouvido e poemas apenas por cópias manuscritas. Se as músicas não fossem conservadas por corais de igrejas, e os poemas por bibliotecas de mosteiros, desapareceriam com o autor ou não resistiriam ao passar dos séculos, o que explica porque nenhum poema ou canção de Ricardo chegou até nós. Porém o Chateau Gaillard era de pedra e cal, o que permitiu aos modernos arquitetos atestarem o seu valor como obra de arte e de engenharia, mesmo estando hoje em ruínas.

Após terminá-lo, Ricardo ficou encantado com a sua obra e fez do castelo palácio real e sede de governo. Nele chegou ao auge do seu poder ao ver ser eleito Sacro Imperador Romano-Germânico o seu sobrinho Otto da Saxônia, em sucessão do falecido imperador Henrique, seu inimigo que o prendera e humilhara ao lhe extorquir o bilionário resgate.
 
Na primavera e no verão de 1198 Ricardo promoveu brilhantes caçadas, torneios e festas em seu belo castelo recém-construído, passando horas banqueteando-se em meio a desafios poéticos e musicais, nos quais demonstrava para os nobres convidados toda a sua habilidade literária e artística. Não há notícia de que Berengária tenha vivido com ele em Chateau Gaillard, embora ambos tenham estado sob o mesmo teto por um período depois que ele voltou do cativeiro, indo à missa juntos em obediência às ordens do Papa. Tal convivência forçada mostra que ele, além de mau filho, mau irmão e mau rei, era também mau marido. Só não se pode dizer que também era mau pai porque, apesar de jamais ter convivido com o filho bastardo Felipe de Cognac, o reconheceu e lhe deu títulos nobiliárquicos junto com valiosas propriedades.

Mas em defesa de Ricardo deve-se dizer que seu pai e irmãos não lhe eram eticamente superiores, e os príncipes do seu tempo raramente tinham conduta diferente da sua no que se refere aos cuidados com a administração dos reinos e o bem-estar dos súditos. Na verdade, por viver bastante próximo do povo, Ricardo era bem melhor do que todos eles, e foi por isso que se tornou tão popular e querido.

             
IV
O Rei Morre ao Entardecer
 
O belíssimo sarcófago de Ricardo na abadia de Fontenevraud no interior da França
            
Para quem acredita em destino, o de Ricardo não era viver e morrer no conforto aconchegante de um belo castelo, mas no campo de batalha. E assim foi!

Mal se encerrara a brilhante temporada de festas de 1198 no galante Chateau Gaillard, revoltas eclodiram em toda a Aquitânia e Ricardo pôs-se em marcha no início do outono. Como de hábito, capturou os castelos inimigos um após o outro e submeteu os barões rebelados, mas deixou atrás de si horrível rastro de miséria e destruição.
As guerras entre os príncipes feudais consistiam basicamente na conquista
dos castelos do inimigo. Quadro de Eloi Firmin Feron (séc. XIX)
            
No início da primavera de 1199, cercou um dos últimos castelos ainda insubmissos e, como era do seu costume, foi pessoalmente inspecionar as muralhas adversárias para anotar os pontos mais favoráveis ao massivo ataque que faria em breve. O fato de estar sempre na linha de frente e de jamais ter sofrido ferimentos graves dera-lhe sentimento de imunidade e tornara-o descuidado, a ponto de só vestir a armadura na hora do combate, mesmo em campanha. Assim, sem sequer colocar a cota de malha, foi fazer a inspeção, durante a qual teve sua atenção atraída por guarda inimigo que fazia palhaçadas no alto da muralha, e começou a trocar piadas com ele enquanto se aproximava perigosamente para ouvir melhor. Disto se aproveitou outro guarda para disparar flecha certeira que se cravou no seu ombro, próximo ao pescoço.

O sarcófago de Ricardo está junto aos dos seus pais e de uma cunhada
em imponente galeria da milenar abadia
             
O ferimento não foi grave e ele voltou andando a tenda, onde “cirurgião” de mãos imundas extraiu a flecha, mas causou-lhe grave infecção que se espalhou rapidamente, impedindo-o de participar da conquista do castelo, a que assistiu febril da sua maca. Esta derradeira vitória permitiu-lhe praticar o seu último ato de cavalheirismo, pois o quase adolescente autor do disparo foi capturado e levado à sua presença. Perguntado por que atirara durante conversa amigável entre o rei e seu colega, respondeu que Ricardo matara seu pai e dois irmãos mais velhos, razão pela qual aproveitara a sua distração para vingar-se. O rei disse-lhe que a vingança era nobre, mas como qualquer outro ato da vida jamais deveria ser feita à traição. Em seguida o perdoou por ser muito jovem, e para que se lembrasse a cada nascer do sol de que o seu novo dia se devia à generosidade de Ricardo! Por fim, mandou dar-lhe 100 xelins, uma boa quantia na época, e o libertar.

Baseada em sua máscara mortuária, a escultura do seu rosto no sarcófogo
é o retrato mais fidedigno que temos de Ricardo
            
Mas os soldados não eram tão compreensivos e disseram ao rapaz que rezasse para que um milagre salvasse a vida do rei, pois se ele morresse suas ordens não seriam cumpridas. E foi o que aconteceu. Após sua morte o jovem assassino foi cruelmente torturado e depois enforcado. Nem todos possuíam o coração cavalheiresco daquele a quem chamavam o "Coração de Leão"!

Chamada às pressas, Eleanor chegou com os mais importantes ministros para anotar suas últimas vontades e assistir seus momentos finais. Após fazer legados e donativos em profusão aos amigos e aos mosteiros, pediu o perdão daqueles a quem ofendera e, nos braços da sua querida mãe, deixou este mundo ao por do sol do dia 06 de abril de 1199 e foi viver para sempre no mundo da aventura e da fantasia.

A coincidência do “fim dos seus dias” com o “fim do dia” fez um cronista da época escrever: Ao entardecer o rei partiu com o seu amigo Sol para novas aventuras em firmamentos distantes!