RICARDO III - UM DOS MAIS BRAVOS CAVALEIROS MEDIEVAIS E O MAIS
INFAME REI INGLÊS DA HISTÓRIA
Ricardo III na batalha de Bosworth (1485) - Gravura de Edmund Leighton
INFAME REI INGLÊS DA HISTÓRIA
Ricardo III na batalha de Bosworth (1485) - Gravura de Edmund Leighton
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Ricardo Plantageneta, duque de Gloucester e mais tarde rei Ricardo III da Inglaterra, é uma das figuras mais controversas da História, pois é o que se pode chamar de herói e vilão ao mesmo tempo. Nascido em berço de ouro em 1452, terminou seus pouco mais de trinta e dois anos de vida estraçalhado no campo de batalha após ser traído por vários dos seus aliados, e foi enterrado anonimamente, nu como indigente, em buraco cavado às pressas na capela de um mosteiro na cidade de Leicester, depois demolido durante a Reforma Protestante. O local virou um descampado e depois um largo onde, em 2012, a prefeitura decidiu construir um estacionamento de automóveis. Durante as obras, esqueleto sem identificação foi achado em cova rasa que os especialistas certificaram estar situada no que era o coro da capela do antigo mosteiro. A ossada datava da segunda metade do século XV e as várias marcas nos ossos atestavam que a morte ocorrera em conseqüência de severos ferimentos feitos em combate por arma branca.
Ricardo III - Reconstituição facial feita por cientistas ingleses com base em seu crânio achado em Leicester |
Após cuidadosos estudos, concluiu-se que aqueles eram os restos de Ricardo III, o mais infame rei da História da Inglaterra, e comprovou-se o que dizia a tradição: ele não tivera caixão, mortalha, túmulo ou epitáfio na deliberada tentativa dos seus inimigos de humilhá-lo mesmo depois de morto e riscá-lo da história! No processo de desconstrução da sua memória, o descreveram como anão manco e corcunda, e tornaram o seu nome sinônimo de “monstro”, para isso utilizando-se da genial pena de Shakespeare em uma de suas melhores peças teatrais. Dizem os entendidos que ela possui a mais arrebatadora abertura que se conhece em obras do gênero, pois começa com notável monólogo de Ricardo em versos que são familiares a todos que estudam e se dedicam ao teatro: Now is the winter of our discontent / Made glorious summer by this sun of York; / And all the clouds that lour’d upon our house / In the deep bosom of the ocean buried.
Filho do duque de York e irmão mais novo do rei Eduardo IV, o serviu com lealdade e valentia. Quando este foi deposto em 1470, teve participação decisiva na guerra que lhe devolveu o trono no ano seguinte. Depois, sufocou revoltas, eliminou adversários e esmagou os escoceses em feroz guerra, façanha que lhe valeu o apelido de Pounder of the Scots (“porrete dos escoceses”). Sua dedicação ao irmão rei era reconhecida por todos e ele adotou como lema Loyalty Binds Me (a lealdade me governa). Com certeza ninguém mais do que ele contribuiu para a segurança do trono, o que lhe deu títulos, riquezas, prestígio, popularidade e respeito. O rei, com sua corte em Londres, não tinha condições de cuidar de todo o reino e nomeou o seu leal irmão governador com poderes absolutos do turbulento norte da Inglaterra. Após anos de lutas, ele pôs ordem na região, revelando-se não só bravo e hábil general, mas também justo e competente administrador, muito admirado por sua honestidade e decência na vida pessoal. Depois do seu sucesso, foi nomeado Constable of England (Chefe de Polícia do Reino) e Judge-Chief of England (Juiz Geral do Reino). Uma das coisas que mais lhe fez ganhar a estima do povo foi criar tribunais para ouvir queixas dos pobres e julgar gratuitamente suas questões com imparcialidade, mesmo aquelas contra os poderosos.
O mais antigo retrato de Ricardo que se conhece. Feito por pintor anônimo
possivelmente durante seu curto reinado (1483-85)
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Ao tornar-se rei, estabeleceu em Londres um tribunal mais bem estruturado com igual finalidade, chamado Court of Requests. Este foi o primeiro do mundo destinado a prestar assistência judiciária aos pobres e proteger os seus direitos. Também criou o direito dos acusados responderem processo em liberdade sob fiança e proibiu fossem confiscados seus bens antes da condenação por corte regular de justiça. Possuía boa biblioteca, coisa rara entre os príncipes da época, e sua admiração pela recentemente inventada imprensa o fez editar a primeira lei da História proibindo a censura prévia e preservando a liberdade de expressão. Indo mais longe, proibiu fossem cobrados impostos ou taxas sem autorização do Parlamento, princípio legal em vigor desde a Magna Carta promulgada quase 300 anos antes, mas cinicamente violado pelas chamadas benevolências. Estas nada mais eram que extorsões do rei e de altas autoridades, feitas através da exigência da benevolência deste ou daquele ricaço para que lhe doasse quantia certa em dinheiro a fim de “atender necessidades" do momento. Ricardo foi radical e não só negou-se a cobrá-las para si como proibiu aos outros fazê-lo, tornando-as crime de corrupção.
Para completar, seu esqueleto mostra que embora sofresse de escoliose, que o fazia manter um ombro mais erguido que o outro para aliviar a dor intensa, não era o anão manco e corcunda de feições horrendas descrito por seus inimigos. Na verdade era mais alto que a média e a reconstituição do seu rosto por modernos métodos científicos mostra que tinha feições agradáveis e bastante simpáticas. Se este foi o verdadeiro rei Ricardo III, bravo guerreiro de boa aparência, razoável cultura e grande talento administrativo, então por que a sua fama de “monstro”?
Creio que a certa altura de sua vida ele se convenceu de que seus irmãos mais velhos, Eduardo e Clarence, eram dois idiotas que não mereciam as altas posições que ocupavam, pois não tinham um décimo da sua visão e valor pessoal. O duque de Clarence não possuía talento algum e além de participar de várias conspirações contra o seu irmão mais velho tentara impedir o mais novo de casar-se com a prima por pura mesquinharia e questões patrimoniais, chegando a conseguir fosse deixada em aberto na “dispensa papal” (necessária para casamentos de primos em 1º grau) a questão da consangüinidade, coisa que lhe permitiria anular o casamento de Ricardo no caso de futuras disputas legais. Já o rei Eduardo era um promíscuo bon-vivant que se ocupava mais com mulheres e farras do que com o reino, jogando o fardo das tarefas mais pesadas sobre os doloridos ombros do seu competente e puritano irmão caçula. Isto deve ter criado em sua mente já enferma, embora ninguém o percebesse, a convicção de que a coroa deveria ser sua, acordando a doentia ambição que perverteu-lhe os sentimentos e o fez considerar tolo o seu lema sobre “lealdade”. Para usar expressão muito popular após o sucesso da série cinematográfica “Guerra nas Estrelas”, poder-se-ia dizer que Ricardo aderiu ao “Lado Negro da Força” e virou escravo do seu demônio interior, sucumbindo ao “Império do Mal”.
Eduardo IV , tela de autor anônimo da época. Incapaz e mulherengo, punha
sobre Ricardo o fardo do governo, fazendo-o ambicionar-lhe a coroa
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Sobre a doentia ambição que passou a dominá-lo há uma pista em seus livros, onde sempre escrevia seu nome na página título, pois em várias delas escreveu também um novo lema: Tant Le Desiree (Tanto a tenho desejado). Apesar de ter tido filhos bastardos, coisa comum aos nobres da época, ele não era dado a aventuras galantes e, certamente, o lema escrito em livros como O Guia dos Príncipes e A Arte da Guerra não se referia a mulheres, mas à coroa real.
Metodicamente, eliminou todos os que poderiam se por em seu caminho, agindo sempre de forma disfarçada e indireta, pois na época conspirações pululavam e como Constable of England estabeleceu eficiente serviço de informações que o mantinha a par de tudo. Assim, valendo-se dos seus cargos policiais e judiciais, à primeira suspeita prendia os pretensos “conspiradores”, julgava-os e os decapitava, pois a pena para o crime de traição era a morte. Suas primeiras vítimas foram os parentes próximos da rainha Elizabeth, que pertencia à família Woodville, partidária da Casa de Lancaster, tradicional rival da Casa de York. Muitos dos seus membros tinham participado de revoltas contra o rei e eram notórios partidários de outros candidatos ao trono. Alguns haviam sido executados, mas outros foram perdoados devido à paixão que Eduardo tinha pela linda esposa. Apesar de ser considerada a mulher mais bela da Inglaterra e pertencer à nobreza, ela não tinha sangue real e era viúva de um simples cavaleiro que morrera combatendo o rei. Por isso o casamento fora muito discreto, mas ao tornar-se público os yorkistas ficaram indignados com a cretinice de Eduardo e também porque os Woodville passaram a gozar de grande prestígio na Corte. Ricardo era menino na época e ao ficar adulto manteve-se calado, mas ao adquirir imenso poder tratou de corrigir o erro do irmão, prendendo e executando por “conspiração” vários membros da família Woodville e de outras famílias rivais, muitas vezes através de provas forjadas.
Elizabeth de Woodville, esposa de Eduardo IV e na época considerada a mulher
mais bela da Inglaterra. Tela de autor anônimo (séc. XV)
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Quando terminou a “limpeza”, voltou-se para a sua própria família, primeiro eliminando parentes distantes e depois parentes mais próximos, até chegar ao seu próprio irmão Clarence, único que se interpunha entre ele e o rei numa possível linha de sucessão colateral. Clarence era um bêbado idiota de caráter fraco que já traíra o irmão mais velho e tentado prejudicar o irmão mais novo, sendo sempre perdoado pelo bom gênio de Eduardo e sem sofrer maiores reprimendas do "gentil caçulinha" Ricardo, nem, muito menos, perder sua fraternal amizade. Confiante na costumeira tolerância dos irmãos, meteu-se em mais uma conspiração contra a coroa, que Ricardo logo descobriu e tratou de aumentá-la aos olhos do rei por meios indiretos, pois não queria ser visto como principal causador da desgraça do irmão. O resultado é que Clarence foi preso e condenado à morte "em privado" (longe do público). Desesperado, apelou para que o “justo” Ricardo interviesse em seu favor, coisa que ele fez abertamente a fim de afastar de si quaisquer suspeitas enquanto forjava provas e mais provas contra o irmão idiota. Porém Eduardo não estava disposto a manchar as mãos com o sangue do próprio irmão e confidenciou a Ricardo que iria perdoá-lo. Isto o fez agir rápido e, enquanto o indeciso Eduardo demorava-se a emitir o decreto de perdão, Clarence "sumiu" dos seus aposentos de prisioneiro na Torre de Londres. Nunca se soube ao certo o que aconteceu, pois Ricardo nada investigou, como competia ao Chefe de Polícia do Reino, e um manto de silêncio foi estendido sobre o assunto. Tudo indica que Eduardo conformou-se com a ação dos "desconhecidos" assassinos de Clarence, achando que eles tinham feito a coisa certa, e deu o caso como fato consumado sobre o qual não convinha fazer estardalhaço. Melhor o silêncio!
Clarence era um bêbado que traiu o rei várias vezes e por fim foi morto, mas ao invés de
decapitado foi afogado em barril de vinho. Tela de Richard Godfrey (1700)
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Tempos depois boatos circularam de que ao invés de ser formalmente decapitado em seus aposentos, como mandava a lei no caso dos nobres, alguns "amigos" o embriagaram a pretexto de festejarem o "próximo perdão do rei" e o afogaram em um barril de vinho. Depois puseram o cadáver dentro e o fecharam, retirando o barril da Torre sem despertar suspeitas e enterrando o corpo em cova anônima na abadia de Twiksbury. Todos acharam que o boato era uma piada alusiva ao alcoolismo de Clarence, porém concordaram que ele não teria sido executado, mas morto a facadas por ordem de alguém poderoso e enterrado em segredo. Como a intervenção de Ricardo “em seu favor” era notória, as suspeitas voltaram-se contra o próprio rei, pois dizia-se que não queria aparecer perante os demais como matador do irmão alcoólatra e assim procedera para que se pensasse ter o traidor fugido para o continente. Os insistentes boatos de que ocorrera não uma execução decente, mas um infame assassinato, fizeram o rei romper o silêncio e encerrar o assunto de uma vez por todas, certamente a conselho de Ricardo, informando ao Parlamento que Clarence "fora executado nos termos da lei". Ninguém sentiu falta do beberrão traidor e no violento panorama da época o assunto logo foi esquecido. Anos depois sua ossada foi descoberta em cova rasa e nela não se achou sinais de decapitação, como era próprio à execução de um príncipe, nem de golpes com arma branca, o que reforça a tese do afogamento no barril de vinho. Depois dos exames forenses, a ossada foi dignamente sepultada na mesma abadia.
Só uma mente doentia e perversa poderia ter concebido forma tão bizarra e humilhante de vingança e, sabendo-se o que depois se veio a saber da monstruosa crueldade de Ricardo, poucas dúvidas podem restar de ter sido ele o autor da inédita proeza.
Com Clarence fora do caminho, Ricardo se tornou o "1º irmão" e, sendo astuto e instruído, viu que o domínio da nobreza, com suas eternas brigas e rivalidades, era prejudicial à nova sociedade burguesa que surgia na Europa em conseqüência da Revolução Comercial, ainda em seus estágios iniciais. Viu também que a nova classe era muito devota e puritana e por isso procurou adotar procedimento mais puritano do que aquele que já possuía. Quanto à devoção, que quase não tinha, tratou de fingi-la com a mais refinada hipocrisia e percebeu que o dinheiro deslocara-se da mão dos nobres latifundiários para a mão dos burgueses comerciantes. Aqueles ainda eram os donos das grandes fortunas, mas estas eram constituídas por terras, riqueza de mínima liquidez e de pouca utilidade nos casos de grave necessidade política e econômica, enquanto que a muito menor fortuna dos mercadores plebeus das cidades era constituída por dinheiro sonante, coisa que realmente tinha valor e funcionava nas horas de crise. Assim, aproximou-se da burguesia e a fez sua aliada. Muito cauteloso, ia pouco a Londres e quase não frequentava a corte, preferindo exercer suas altas funções militares, administrativas, policiais e judiciais a partir de York, no extremo norte do país. Embora fosse o 1º ministro de fato, ele se esforçava para não aparecer como tal aos olhos dos demais e isto lhe fortalecia a fama de modesto, o que não só o mantinha longe dos invejosos como lhe dava ampla liberdade de ação, conservando-o a salvo das suspeitas de alimentar desmedidas ambições e de intrigas de cortesões. Todavia não descuidava do contato constante com o rei através de intensa comunicação epistolar, mantendo-o a par de tudo que se passava no país e dando-lhe contas detalhadas das suas ações em prol da prosperidade e maior glória do reinado de Eduardo.
Porém o que mais agradava ao tolo monarca eram as gordas rendas que Ricardo pontualmente lhe mandava. Para ele aquele irmãozinho caçula eficiente, gentil, modesto, bravo e dedicado, cujo lema era lealdade a qualquer custo, constituía motivo de alegria e gratidão e não de cuidado e preocupação.
Eduardo IV era alto e bonito, amante de festas e mulheres. Deve ter morrido
por excessos e não por venenos. Tela de autor anônimo (séc. XV)
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Em abril de 1483 Eduardo morreu após breve enfermidade e correram boatos de envenenamento, mas estes logo sumiram porque os prováveis aspirantes ao trono tinham sido eliminados pela eficiente mão de Ricardo e o falecido rei tinha sucessores legais nos seus dois filhos homens ainda meninos. Portanto, não havia à vista qualquer beneficiário da morte do rei. O modesto Ricardo era apenas o terceiro na linha de sucessão no improvável caso da morte dos dois saudáveis herdeiros legítimos e nenhum benefício imediato lhe poderia advir do “duvidoso envenenamento” do rei. Ademais, vivia modestamente longe da corte, sua “lealdade” ao irmão era patente e sua decência e devoção eram tais que o tornavam o mais improvável dos suspeitos. Por isso o Parlamento deu a morte como natural e aclamou novo rei o garoto de doze anos Eduardo V.
Sendo ele ainda menino, a regência caberia à rainha-viúva sua mãe, porém ela era de família partidária da Casa de Lancaster, rival da Casa de York, e não gozava da simpatia do Parlamento, sobretudo da Câmara dos Comuns, formada por burgueses fartos de guerras civis e disputas dinásticas que davam grandes prejuízos à economia, esfolavam os contribuintes e prejudicavam os negócios. Em conseqüência, sem sequer consultar Ricardo, que se achava prudentemente longe em York, os parlamentares o aclamaram regente sob o título de Lord Protetor da Inglaterra. Não se exclui a hipótese de que ele tenha manipulado tudo à distância, pois o controle da Polícia e da Justiça lhe permitia fazê-lo e os seus amigos burgueses dominavam a Câmara dos Comuns, sem falar na quase ausência de oposição na Câmara dos Lordes, porém o mais provável é que o astuto príncipe tenha ficado ausente, evitando manipulações que poderiam prejudicar sua reputação se viessem a público. Certo de que os fatos não poderiam ter outro desfecho e o poder lhe viria às mãos naturalmente, manteve-se discreto, observando com calma o desenrolar dos acontecimentos.
Eleito Lord Protetor da Inglaterra, deslocou-se para Londres e constatou o que previra e temera: os Woodville, parentes da rainha-mãe, haviam tomado conta do palácio real e agora mandavam na corte, sobretudo um irmão e um filho do primeiro casamento de Elizabeth. Porém, dispondo da Polícia, da Justiça e do Parlamento, Ricardo não perdeu tempo: pôs a rainha em prisão domiciliar e executou sumariamente o seu filho e o seu irmão! Por fim, alegando que era para a segurança do rei-menino e do seu irmão mais novo, ambos cercados por inimigos ostensivos e "ocultos", os mandou para a Torre de Londres, fortaleza que funcionava como prisão para os membros da alta nobreza.
O rei-menino Eduardo V e o irmão caçula presos na Torre de Londres
por ordem do tio Ricardo. Tela de John Everett Millais (séc. XIX)
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Até então todos julgavam que Ricardo agia corretamente porque os meninos tinham realmente muitos inimigos e era inconcebível que uma família da nobreza de segunda linha, como era o caso dos Woodville, se apoderasse do poder, mandando e desmandando, sobretudo sendo ela tradicional aliada da Casa de Lancaster, inimiga da dinastia reinante, mas quando surgiram boatos de que o novo rei Eduardo V e seu irmão duque de York eram filhos bastardos, inaptos para o trono, a Câmara dos Lords, reduto da nobreza, agitou-se e houve acerbos debates. Como sempre, Ricardo estava por trás de tudo e dava curso ao seu velho e oculto plano de apoderar-se da Coroa. Assim, fez um jurista amigo levar ao Parlamento contrato pré-matrimonial secreto que provava estar o falecido Eduardo IV comprometido com outra mulher ao casar discretamente com Elizabeth Woodville. Isto era bem do feitio do falecido rei mulherengo e ninguém duvidou da autenticidade do documento, mas os opositores alegaram que sua existência e posterior violação acarretava danos civis por quebra de contrato perante a família prejudicada, mas não invalidava o casamento do irresponsável Eduardo com a bela Elizabeth.
Foi quando um “santo frade” apareceu e jurou sobre a Bíblia que o contrato fora cumprido e ele próprio oficiara em segredo o casamento do falecido rei com a outra mulher antes do casamento com Elizabeth, coisa que o invalidava totalmente. Como tal modo de proceder era típico do promíscuo falecido rei, cujo próprio casamento com Elizabeth fora quase secreto, ninguém pôs em dúvida o depoimento do “santo frade”, fazendo o Parlamento declarar inválido o “segundo casamento" e bastardos os príncipes presos na Torre de Londres. Em conseqüência, Ricardo foi aclamado rei em meio ao grande júbilo político e popular, pois todos achavam que as suas virtudes e méritos o faziam talhado para o trono. Com fingida “humildade”, aceitou a decisão do Parlamento e quase que imediatamente se fez coroar na abadia de Westminster.
Tudo poderia ter terminado aí e ele feito longo e profícuo governo se continuasse agindo com a habitual astúcia e não se entregasse ao lado mais negro do seu coração, mandando matar covardemente os seus dois sobrinhos meninos presos na Torre. Possuído pela paranoia, os julgou perigosos à sua segurança por achar que rebeldes poderiam se unir em torno do garoto Eduardo V alegando ser ele "o rei legítimo", destituído do poder por manobras escusas do tio!
Os príncipes aterrorizados ouvem os passos dos assassinos e o cãozinho late para as sombras
abaixo da porta. Tela de grande dramaticidade de Paul Delaroche (séc. XIX)
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Tudo poderia ter terminado aí e ele feito longo e profícuo governo se continuasse agindo com a habitual astúcia e não se entregasse ao lado mais negro do seu coração, mandando matar covardemente os seus dois sobrinhos meninos presos na Torre. Possuído pela paranoia, os julgou perigosos à sua segurança por achar que rebeldes poderiam se unir em torno do garoto Eduardo V alegando ser ele "o rei legítimo", destituído do poder por manobras escusas do tio!
Fosse Ricardo homem de mente saudável, teria achado solução menos radical e cruel, que não somente afastasse perigos de rebeliões como agradasse a todos. Uma dessas seria destinar os meninos à carreira eclesiástica, internando-os em mosteiro na distante Roma sob a guarda do Papa. Quanto a Elizabeth, agora reduzida à condição de viúva de um simples cavaleiro, poderia tê-la internado em mosteiro português sob a guarda do rei de Portugal, com quem a Inglaterra possuía ótimas relações comerciais e diplomáticas. Com mãe e filhos presos em mosteiros de países longínquos, separados por grandes distâncias e sob severa guarda de seus governantes, ninguém de bom coração e corretas intenções veria maldade nisso e conspirações urdidas em torno dos "bastardos" se tornariam improváveis. Mas o demônio se apoderara de sua alma e antes de assassinar seus inocentes sobrinhos resolveu livrar-se dos seus poderosos aliados, os duques de Hastings e de Bukingham, que haviam incorrido no seu desagrado ao se oporem à destituição do jovem rei . Após rápido julgamento por “traição”, realizado sob sua presidência na própria Torre de Londres, Hastings foi decapitado. Bukingham só escapou porque fora avisado das malévolas intenções do rei e não atendeu ao seu "convite" para ir à Torre, sabiamente fugindo para a França.
Depois de removidos parcialmente estes dois obstáculos, ele deu continuidade ao seu perverso plano livrando-se dos príncipes-meninos da forma mais infame que se possa imaginar: sufocando-os com travesseiros durante o sono e sepultando-os secretamente em cova rasa sob as lajes de escadaria de pedra na própria Torre de Londres. A nefanda sepultura, sobre a qual todos os dias transitavam pessoas, ficou ignorada por mais de século e meio, até que em 1643 foi descoberta durante reformas no sinistro prédio e consertos na centenária escadaria. Só então as infelizes crianças receberam enterro digno!
Os príncipes meninos dormem enquanto os carrascos de Ricardo se preparam para asfixiá-los
com travesseiros. Tela de Pedro Américo (1880)
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Julga-se que os príncipes foram assassinados no final de agosto de 1483, pois foi a última vez que foram vistos brincando no pátio da sombria fortaleza. Daí em diante não mais se soube deles e o primeiro boato foi que tinham fugido e estavam escondidos sob a proteção de opositores de Ricardo. Mas quando nenhum desses opositores foi localizado e nenhuma notícia do paradeiro das crianças surgiu, o boato passou a ser de que elas tinham sido assassinadas e secretamente enterradas pelo perverso tio. A partir daí o seu apoio popular evaporou e o seu suporte no Parlamento enfraqueceu, sobretudo porque ele não fez qualquer pronunciamento sobre o sórdido assunto e não ordenou qualquer investigação para apurar o misterioso sumiço dos sobrinhos. Isto reforçou na mente das pessoas a crença no crime e na culpa de Ricardo, que virou certeza quando ele não fez nenhum esforço para negá-la. Tudo indica que uma espécie de loucura e de sentimento de onipotência tenha se apoderado dele e a crescente indignação da nobreza foi seguida pelo geral desprezo do povo ao até então querido monarca, fazendo com que em novembro de 1483 estourasse rebelião que convulsionou o reino durante meses. Mais uma vez Ricardo mostrou seu grande talento militar e derrotou os rebeldes, executando-os em massa. Entre os mortos estava o poderoso duque de Bukingham que poucos meses antes lhe havia escapado ao fugir para a França. Depois disso Ricardo se tornou totalmente paranoico, suspeitando de tudo e de todos e vendo traições em toda parte. A feroz repressão que ordenou fez do seu reinado um dos mais tirânicos da história da Inglaterra, embora ele se esforçasse para readquirir o apoio do povo editando ótimas leis que protegiam a economia, incentivavam a prosperidade e, curiosamente, reforçavam os direitos civis e políticos dos cidadãos plebeus (commoners). Isto fez com que muitos ilustres juristas e historiadores escrevessem mais tarde que ele fora um tirano torpe, mas promulgara excelentes leis que beneficiaram o país e o povo!
Cerca de 20 anos após o seu sórdido reinado, um dos assassinos dos príncipes foi preso e revelou os nomes dos cúmplices, todos homens da confiança de Ricardo. Jurando que tinham agido sob ordens do Rei, disse que o enterro dos meninos fora feito por terceiros seus desconhecidos após os criminosos deixarem o local do crime. Por isso não sabia dizer onde ficava a sepultura secreta.
Batalha de Bosworth - Gravura de Philip de Loutherbourg (séc. XVIII). Ricardo lutou até o fim, mas o pouco
entusiasmo dos seus homens, que não queriam lutar pelo "assassino de crianças", o derrotou
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O reinado de Ricardo continuou de mal a pior e em agosto de 1485 estourou nova rebelião chefiada pelo conde de Richmond, líder da Casa de Lancaster. O exército real era superior ao dos rebeldes, porém tudo indica que faltou aos seus soldados entusiasmo para lutar em favor do assassino de crianças e ele foi morto na batalha de Bosworth após ser traído por importantes aliados. Mas não se rendeu e combateu quase sozinho até o fim com inexcedível bravura. Diz a tradição que durante a batalha várias das suas montarias foram mortas e substituídas, mas quando a última tombou sob os golpes inimigos ele manteve-se de pé lutando valentemente e abrindo claros entre os muitos atacantes que o cercavam enquanto bradava: Um cavalo! Tragam-me um cavalo! O meu reino por um cavalo!
Nunca um cavalo valeu tanto e um reino valeu tão pouco!