Post nº 74
AVITUS - O IMPERADOR QUE VIROU BISPO
PARA FUGIR DA PENA DE MORTE
PARA FUGIR DA PENA DE MORTE
Em 455 Genserico, rei dos vândalos, marchou contra Roma e o covarde imperador Petrônio Maximus ao invés de lhe opor resistência resolveu fugir, aconselhando os senadores a fazerem o mesmo. Estes o apuparam com desprezo e quando ele saiu à rua com sua claque de fujões o povo os vaiou raivosamente jogando-lhes todo tipo de objetos. Os membros da comitiva imperial correram, mas a furiosa multidão agarrou o imperador e o apedrejou até matá-lo em plena via pública. Depois o arrastou pelas ruas e o jogou nas águas do rio Tibre, de onde o cadáver nunca foi recuperado. A cidade ficou entregue à anarquia até os vândalos chegarem alguns dias depois e a saquearem durante uma semana, roubando e prendendo gente rica para dela cobrar resgate. Concluído o saque de tudo que tivesse algum valor, Genserico voltou ao seu reino deixando a “capital do mundo” nua das imensas riquezas que por tantos séculos ostentara.
Em 70 DC os romanos saquearam o sagrado tesouro do Templo de Jerusalém e o guardaram em Roma como troféu, mas em 455 os Vândalos o tomaram e o levaram para a África, onde sumiu para sempre |
Roma ficou várias semanas sem governo até assembléia de príncipes germânicos reunida em Arles aclamar novo imperador o príncipe Avitus, galo-romano de família riquíssima, natural de Clermont na França atual, que fora amigo íntimo de Aécio e ocupara importantes cargos imperiais, inclusive o de governador da Gália nos anos 430. Enfadado das tarefas oficiais, ele se recolhera à luxuosa vida privada em seu palácio particular de Clermont por mais de uma década, mas Aécio interrompera o seu ócio e o trouxera de volta à atividade durante a invasão de Átila, fazendo com que ele participasse ao seu lado da batalha dos Campos Catalúnicos em julho de 451. Sendo homem muito culto, passara longa temporada na corte de Teodorico, rei dos visigodos, aproveitando sua estadia para ensinar poética, retórica e literatura ao príncipe herdeiro, futuro Teodorico II. Ótimo diplomata, antes da decisiva batalha fora encarregado por Aécio de trazer o velho rei Teodorico para a coalizão contra Átila, pois devido a antigas querelas ele hesitava juntar-se ao general romano. Avitus aplainara as divergências e Teodorico aliara-se a Aécio, possibilitando a derrota dos hunos.
Agradecido, Aécio o fez novamente governador da Gália e ele ficara no cargo até o assassinato do amigo, quando então se demitiu, mas Petrônio Maximus, em um dos seus poucos atos inteligentes, insistira para que voltasse devido às suas excelentes relações com os povos germânicos de há muito estabelecidos na grande província. Estava há pouco tempo no cargo pela terceira vez quando a assembléia de príncipes o aclamou imperador, mas a escolha só foi aprovada pelo senado romano sob a condição dele vir residir na cidade, pois há quase um século a capital administrativa mudara por razões estratégicas, primeiro para Milão e depois para Ravena, permanecendo Roma apenas a capital oficial. Avitus aceitou e viajou para a grande metrópole sob gerais aplausos.
Os visigodos possuíam grande valor guerreiro e o seu apoio aos romanos, conseguido por Avitus, foi decisivo para que Aécio derrotasse Átila na grande batalha dos Campos Catalúnicos (451 DC) |
O auspicioso início do seu governo logo deu lugar à intensa recriminação popular e à forte oposição no Senado, pois o novo imperador nenhuma medida tomou para sanar a grave situação em que ficara Roma após a catastrófica invasão dos vândalos. Enquanto a economia e a administração imperial se deterioravam ainda mais, ele permanecia inerte e indiferente, preocupado apenas em manter o luxuoso estilo de vida a que estava acostumado na vida privada e do qual jamais se afastara mesmo quando exercera importantes magistraturas oficiais e governara a Gália. A verdade é que Avitus era afeiçoado ao ócio e estava habituado apenas a funções burocráticas rotineiras que davam grande prestígio, mas não exigiam esforço nem requeriam a tomada de graves decisões, sendo inteiramente inadequado para lidar com situações excepcionais onde liderança e competência administrativa eram fundamentais. O resultado foi o Senado expulsá-lo do trono imperial sob instigação do poderoso conde Ricimerus após apenas um ano de governo. Inconformado, Avitus voltou-se para a Gália em busca de suporte porque, repudiado pelo senado que festivamente o recebera um ano antes, fugira de Roma e agora pedia aos príncipes gauleses que o aclamaram para repô-lo no trono.
Como pudera ocorrer tão brusca mudança de sentimentos em menos de doze meses? A resposta era simples: incompetência e corrupção, as mesmas doenças dos outros dois últimos imperadores. As virtudes que tinham feito o riquíssimo Avitus popular entre os rudes príncipes da Gália eram a refinada educação e o talento diplomático. Muito gentil, instruído, elegante e sedutor, ele conquistara os príncipes e, conforme as más línguas, também suas mulheres. Como governador, pusera em prática aquilo que melhor sabia fazer: nada! Deixava os príncipes dirigirem seus domínios como bem entendessem, limitando-se a assinar os decretos que lhe traziam prontos e suas inspeções eram agradáveis visitas sociais aos amigos ao invés de fiscalizações de um enérgico delegado imperial visando corrigir abusos e injustiças. Em conseqüência gozava de grande popularidade entre os príncipes, dos quais era apenas um carimbo.
Na verdade, o seu modo de governar era adequado ao caso da Gália, pois de há muito fora ela dividida em principados bárbaros romanizados cujos líderes governavam sob títulos romanos dados pelo imperador: cônsul, prefeito, pretor e conde. Mas a obediência ao monarca limitava-se ao fornecimento de tropas para repelir outros invasores que viessem tomar as terras que lhes tinham sido concedidas e ao pagamento de um tributo anual. Nada mais. Isto significa que referidos príncipes eram independentes de fato, embora não de direito, o que os tornava súditos inúteis ao imperador no caso de revolta ou de invasão em outro lugar que não fosse a Gália. Ao ir para a Itália Avitus ficara por conta própria, apesar de não sabê-lo e achar que ninguém em Roma o desafiaria por contar com os príncipes gauleses caso lhe ameaçassem o poder por eles outorgado, mas a falsidade da sua certeza ele teria de descobrir com a própria experiência.
Infelizmente ele não percebeu que em Roma teria de governar para e com os romanos, fazendo face aos imensos problemas que enfrentavam e não deles se distanciando como se ainda estivesse na Gália governando para e com os seus compadres gauleses. Ao se deparar com a dura realidade, custou a entender que o confortável estilo por ele adotado na Gália era totalmente inadequado para um vasto império que se desintegrava e necessitava de um líder forte e enérgico. Sua fina educação, elegância e diplomacia, que tanto sucesso faziam entre os bárbaros, eram irrelevantes em Roma, pois a cidade estava cheia de nobres com suas mesmas qualidades. Para piorar as coisas, na sofisticada capital do mundo ele se dedicara com afinco ao seu esporte predileto na rude província: a caça às mulheres!
Tudo indica que acostumado às grosseiras damas gaulesas ele perdera a cabeça ao ver as lindas e elegantíssimas damas romanas, passando a agir de forma cínica e despudorada, assediando até mesmo aquelas de reconhecida virtude. Em todo caso tivera sucesso com muitas senhoras e senhoritas da mais alta aristocracia e pusera afrontosos chifres nas testas de alguns dos mais influentes senadores.
Flavius Ricimerus (nome germânico Richomer ou Ricimer). Um dos poucos generais que tiveram sua efígie em moedas sem ocuparem o trono imperial |
Sua incompetência administrativa e seu mau comportamento já tinham posto sua reputação em nível baixíssimo quando o general Ricimerus, mercenário a serviço do Império, destruiu grande frota vândala que ia para o norte da Itália fazer o mesmo que fizera um ano antes no sul: roubar, destruir e escravizar. A vitória foi esmagadora e o general vitorioso foi recebido em Roma não só como triunfador, mas também como vingador! Desmoralização suprema, Avitus não foi convidado para as festas, e quando quis ir de qualquer forma Ricimerus lhe disse que seria preso se fosse, devendo deixar o trono antes que dele fosse retirado à força. Em desespero, fugiu para o norte com seus guardas e pediu aos príncipes gauleses que lhe dessem tropas para resistir à rebelião, mas eles se negaram ao ver que nada ganhariam, pois Ricimerus proibira a sua volta a Roma e eles não iriam lutar por uma causa que nenhuma vantagem lhes traria. O imperador inútil teria que se costurar com as próprias linhas.
Ao saberem da recusa dos príncipes e verem a ameaça de guerra civil afastada, os senadores romanos resolveram se vingar das humilhações, da desonra das filhas e dos chifres que Avitus lhes pusera, condenando-o à morte e prometendo boa recompensa a quem o executasse. A sentença era absurda, pois Avitus não cometera crime algum, a não ser os de adultério e sedução de esposas e filhas de aristocratas, mas para eles referidas "infrações" eram muito mais graves do que roubo e assassinato! Tentando escapar do supremo opróbio ele não só renunciou formalmente ao trono como praticou ato de supremo cretinismo: gastando rios de dinheiro obteve dos habitantes de Piacenza sua eleição para o cargo de bispo da cidade, pois a lei canônica conferia imunidade aos príncipes da Igreja. O resultado foi que num passe de mágica um imperador virou bispo como se fora o auge de uma tragicomédia em teatro de 3ª categoria!
A história do século 5º é péssima, havendo versão de que Avitus travou batalha com Ricimerus e após ser derrotado foi por ele obrigado a se tornar bispo, mas isso não tem nenhum suporte lógico porque Avitus não possuía exército devido à geral falta de apoio e não havia razão para que Ricimerus o obrigasse a usar a tiara ao invés do diadema. Até porque o seu dever era executá-lo, cumprindo sentença do Senado, e não dar-lhe imunidade. Tudo indica que o pseudo fato é invenção de Sidonius Apolinarius, genro de Avitus e historiador que tudo fez para livrar sua memória do ridículo.
Vago o trono definitivamente, não havia a menor suspeita sobre quem o ocuparia, pois o conde Ricimerus, único com poder militar suficiente para ocupá-lo, não podia fazê-lo porque era mercenário bárbaro que nem sequer era cidadão romano. Se o ocupasse, ninguém o levaria a sério: nem os romanos nem os reis bárbaros vassalos, todos eles rivais entre si. No entretempo, Avitus pediu ao Senado que a sentença de morte expedida contra ele fosse revogada devido ao seu novo status clerical, mas aí lhe veio o golpe final: o Papa declarou nula sua eleição ao bispado de Piacenza devido ao fato dele não possuir ordens sacras e por isso estar impedido pela lei canônica de ser bispo. Vendo que poderia ser preso a qualquer momento, ou até mesmo assassinado por alguém em busca da recompensa oferecida pelo Senado, Avitus fugiu com seus guardas a procura de esconderijo nos Alpes em pleno inverno, porém semanas depois alguns deles voltaram dizendo que ele morrera de morte natural nas montanhas e lá fora enterrado.
Novamente há a versão de que ele morreu não quando fugia, mas quando viajava a fim de levar sagrada relíquia para importante diocese gaulesa. Dessa tola versão deve ser dito o mesmo que foi dito da outra sobre a sua ridícula transformação em bispo.
Fato é que a história dos soldados sobre o verdadeiro fim de Avitus parecia ser correta, pois ninguém reclamou o prêmio pela possível execução do condenado, mas existia a suspeita de que o ex-imperador se escondera em lugar secreto e ele próprio mandara seus fiéis seguidores divulgarem a história para que a perseguição cessasse e o deixassem terminar seus dias em paz.
Nunca se soube com certeza qual das versões era a verdadeira, mas, vivo ou morto, o bom camarada Avitus sumiu de vez do cenário sócio-político europeu, deixando como marca própria apenas a ridícula história do imperador que virou bispo para escapar de absurda sentença de morte, decretada tão somente porque ousara plantar vistosos chifres nas testas de eminentes senadores.