quinta-feira, 27 de março de 2014

Post nº 77

A  QUEDA  DO  IMPÉRIO ROMANO  DO  OCIDENTE

Apesar de saqueada e incendiada pelos vândalos em 455, Roma ainda sobreviveria 21 anos como Império
  
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A traiçoeira morte de Flávio Aécio (20-10-454 DC), último grande general romano, pelas mãos do imperador Valentiniano III a quem fielmente servira durante décadas, foi também a morte do Império como grande potência militar e relevante ator político no cenário mundial. Cinco meses após o covarde assassinato, ex-oficiais de Aécio vingaram o antigo chefe matando Valentiniano durante competição esportiva no Campo de Marte em Roma, à qual o infame imperador comparecera com seus mais importantes ministros (16-03-455 DC). O assassinato de um imperador e dos seus mais íntimos auxiliares pela Guarda Imperial perante milhares de pessoas, mostrava o imenso grau de indisciplina e desprezo das tropas pelas instituições, não muito diferente do que era sentido pelo povo.

O riquíssimo senador Petrônio Maximus gastou rios de dinheiro para obter o apoio das tropas e do Senado e tornou-se sucessor de Valentiniano. Para legitimar-se no trono, casou com a viúva do seu antecessor em cujo assassinato colaborara e passou a governar tão incompetente e irresponsavelmente quanto ele. Alguns meses depois, soube-se que Genserico, rei dos vândalos, partira do seu reino no norte da África à frente de poderosa frota e grande exército para atacar Roma. Povo e autoridades entraram em pânico e o inútil Petrônio Maximus, ao invés de preparar a resistência, foi ao Senado dizer que nada havia a fazer e por isso fugiria com todas as riquezas que pudesse levar consigo, deixando a cidade entregue à própria sorte. Em seu covarde discurso aconselhou os senadores a fazerem o mesmo e estes o vaiaram, atirando-lhe objetos e expulsando-o com toda a sua comitiva. Quando Petrônio Maximus saiu à rua, multidão em frente do edifício o vaiou ainda mais furiosamente e começou a apedrejá-lo. Os seus comparsas conseguiram escapar, mas ele foi capturado e apedrejado até a morte (06-10-455 DC). Em seguida arrastaram o seu cadáver pelas ruas e o jogaram no rio Tibre sob aplausos e gargalhadas dos seus algozes. Três dias depois os vândalos entraram em Roma sem enfrentar resistência e saquearam a cidade à vontade, incendiando vários dos seus edifícios.


O saque de Roma pelos vândalos foi total , inclusive das igrejas e mosteiros

Diferentemente dos visigodos quarenta e cinco anos antes, desta vez os vândalos não pouparam nada, e embora tenham respeitado o Papa e os membros do clero, despojaram as igrejas e mosteiros de tudo, roubando até mesmo as jóias sacras e os artefatos cerimoniais, inclusive os do Templo de Jerusalém, trazidos à Roma pelo imperador Tito quatro séculos antes. Levado para a África, o volumoso tesouro de inestimável valor histórico e artístico desapareceu para sempre. Também aprisionaram milhares de pessoas e as levaram para vendê-las no rico mercado de escravos de Cartago ou libertar a troco de resgate aqueles que pudessem pagar. Como que para completar a vingança de Aécio, a viúva e as filhas do finado Valentiniano, que estavam em Roma indiferentes ao que se passava, foram também aprisionadas, destituídas das jóias valiosas e luxuosos vestidos, e levadas para a África como os demais prisioneiros. Correram histórias na época de que elas tinham sido vendidas como escravas por preço altíssimo em leilão conduzido pelo próprio Genserico, mas tudo indica que os “compradores” foram seus próprios filhos, que trataram muito bem as princesas. Mais tarde o Imperador Romano do Oriente pagou bom resgate por elas e o velho pirata Genserico, sempre sedento de ouro, as mandou para Constantinopla, onde terminaram confortavelmente suas vidas atribuladas.

Após os vândalos invadirem e saquearem Roma, tudo o que restou do império até seu melancólico final em 476 foi a recordação da sua passada grandeza. A era de governos imperiais estáveis também findou com Aécio, pois nos dois anos seguintes três imperadores foram violentamente tirados do poder. Valentiniano foi morto em março de 455, e seu comparsa, assassino e sucessor Petrônio Maximus o seguiu rápido em outubro do mesmo ano. Porém, assim que os vândalos se retiraram da Itália uma assembléia de príncipes galos-germânicos se reuniu em Arles e elegeu novo imperador o distinto príncipe Avito sob gerais aplausos e grandes esperanças. Mas seu governo foi tão corrupto e incompetente como os dois que o antecederam e um ano depois ele também foi destronado (Nov./456 DC) e morto no mês seguinte.

O trono ficou vago durante vários meses, até que Majoriano, um bravo e austero romano da velha guarda, foi eleito em julho de 457. Começou governando auspiciosamente fazendo grandes reformas de há muito necessárias, mas adiadas anos a fio devido à oposição velada de fortíssimos grupos interessados na manutenção de privilégios. Infelizmente ele declarou guerra a Genserico e o astuto rei vândalo, enquanto fingia negociar um tratado de paz, atacou o porto onde a esquadra romana estava ancorada e a destruiu. Os descontentes com as reformas imediatamente culparam Majoriano pelo desastre, tramando sangrenta conspiração para derrubá-lo, e em agosto de 461 o único imperador decente que Roma tivera no século V foi preso e executado. Quatro imperadores assassinados em seis anos era demais e todos os cidadãos dignos recusaram o perigoso cargo, pois tinham sabiamente concluído que sentar no trono imperial era o modo mais curto de cometer suicídio.

Richomer, hábil político e poderoso mercenário bárbaro a serviço do império, principal sustentáculo de Majoriano no início e o maior responsável por sua queda depois, se tornou líder maior e governou durante anos através de testas-de-ferro sem qualquer expressão social, política ou militar. Finalmente a morte o afastou, mas os novos imperadores continuaram a ser tão ineficazes e incompetentes quanto os bonecos de Richomer, até que Rômulo Augustulus, jovem e educado cavalheiro ainda quase adolescente, muito admirado na alta sociedade pelo seu belo porte e elegância, foi posto no trono em 475 pelo poderoso general Orestes seu pai. Ele seria o último imperador romano do ocidente até Carlos Magno ser ungido pelo Papa sob o mesmo título no ano 800, mais de três séculos depois.


Entre a deposição de Rômulo Augustulus  e a coroação de
Carlos Magno como Imperador Romano do Ocidente
passar-se-iam 326 anos

A maioria das pessoas, mesmo as instruídas, pensa que o fim do Império Romano foi uma catástrofe causada por súbita e arrasadora invasão de povos bárbaros vindos do leste da Europa, e que sua queda teve o ruído de um trovão. Na verdade o seu fim ocorreu vagarosamente, e o seu último ato foi tão suave e estranho que pouca gente na época julgou que ele representasse o que é hoje conhecido como “A queda do Império Romano”.
   
É verdade que houve grandes ataques e invasões militares, como as de Átila (451 e 452 DC), mas as verdadeiras invasões eram pacíficos movimentos migratórios de tribos germânicas que pediam humildemente a imperial permissão para cruzarem a fronteira e estabelecerem-se em terras incultas e abandonadas da Gália e da Hispania, hoje Bélgica, França, Espanha e Portugal. Longe de serem abruptas e violentas, estas massivas migrações duraram quase dois séculos, e os imigrantes apenas fugiam de intermináveis guerras tribais, fome e miséria generalizadas, buscando uma vida melhor nas prósperas regiões ocidentais da Europa, protegidas pelas famosas legiões romanas e celebradas pelos andarilhos menestréis como “Terra de Leite e Mel”. Mesmo as grandes invasões militares da Itália pelos visigodos, hunos e vândalos não tiveram maior significação política na vagarosa queda do império, porque as tropas invasoras não se estabeleciam no território e logo iam embora após destruírem e roubarem o que podiam. Os bárbaros somente começaram a se instalar na Itália após a morte de Aécio.

Durante séculos também foi popular a crença de que o Império acabara porque Roma sucumbira diante dos bárbaros devido à decadência dos costumes de sua sociedade e à corrupção da sua civilização altamente sofisticada. A licenciosidade teria destruído as virtudes guerreiras do povo romano, fazendo-o presa fácil de bárbaros primitivos, mas de costumes ainda puros e não corrompidos pelos males da civilização. A falsidade de tal interpretação reside no fato de que Roma jamais foi tão poderosa econômica, política e militarmente quanto nos séculos I, II e III da nossa Era, quando o paganismo era quase absoluto e a licenciosidade atingia os extremos descritos por vários historiadores, sobretudo Suetônio no seu famoso "Crônica Escandalosa dos Doze Césares". Ao contrário desta crença puritana, foi exatamente a partir do fim do governo de Constantino na primeira metade do século IV, com o banimento do paganismo pretensamente impuro e a adoção do cristianismo pretensamente puro, que o Império entrou em crise irreversível e lentamente desagregou-se no decorrer do século V até o seu final colapso em 476.

Os nababescos festins da aristocracia romana e a "corrupção dos costumes"
nada tiveram a ver com a desagregação e o fim do Império
   

As causas da “Queda do Império Romano”, portanto, não foram a decadência dos costumes nem as invasões bárbaras, embora estas tenham tido importante papel no processo, sobretudo por trazerem hordas de povos primitivos para viverem numa desenvolvida e sofisticada sociedade, produzindo brutal rebaixamento no seu nível de cultura e civilização. A principal causa do fim do império foi a transição do sistema escravocrata para o sistema feudal. Infelizmente para Aécio, ele foi o primeiro estadista romano a perceber que a única chance de sobrevivência do império seria a adoção do novo sistema, único que os bárbaros, avessos ao regime escravocrata, poderiam aceitar. A escravidão nos campos seria substituída pela servidão, fazendo dos antigos escravos inquilinos perpétuos da terra possuída por um senhor que lhes cobraria obediência e parte da produção como aluguel; este senhor possuiria a terra em nome de outro senhor mais poderoso, ao qual também pagaria obediência e aluguel, e este faria o mesmo em relação a outro senhor ainda mais poderoso, e assim por diante até chegar à pessoa do imperador. 

Este sistema já estava em vigor em algumas remotas regiões da Gália e da Espanha ocupadas pelos bárbaros, mas os proprietários de cultura romana não queriam nem ouvir falar dele, porque além de representar uma diminuição temporária dos lucros líquidos e do domínio discricionário sobre a terra, também significava a perda total do imenso patrimônio que os escravos representavam. Ademais, não conseguiam imaginar como poderia uma família aristocrática viver sem escravos! Foi a simpatia de Aécio pelo novo sistema, e o apoio dado aos bárbaros para desenvolvê-lo nas terras por eles ocupadas, o maior motivo para que a aristocracia romana sempre o olhasse com grande suspeita, e esta foi uma das razões que contribuíram para que ele jamais se tornasse imperador.


A substituição dos pequenos fazendeiros por grandes latifundiários exigia exércitos de escravos e foi a
crise do regime escravocrata a principal causa da queda do Império Romano do Ocidente
 

Fato concreto é que o novo sistema não foi adotado a tempo de salvar o império e o mundo ocidental mergulhou em completa anarquia e selvageria por mais de três séculos, período obscuro conhecido como “Alta Idade Média”. Somente quando certa ordem voltou no tempo de Carlos Magno o sistema feudal adquiriu formato jurídico definitivo e no final do século IX implantara-se em toda a Europa, extinguindo a escravidão no continente. Porém o colapso das instituições do império quatro séculos antes tinha causado tamanho atraso econômico e retrocesso cultural, que mais cinco séculos se passariam até que viesse a Renascença e o tempo perdido começasse a ser recuperado. Mas voltando a Rômulo Augustulus deve ser dito que ele governou apenas simbolicamente, tanto quanto os atuais soberanos europeus governam os seus reinos democráticos. Um ano após a coroação do último imperador, o rei dos hérulos Odoacro que há anos assolava o norte da Itália com seus bandos de ferozes guerreiros, derrotou em batalha o seu ex-amigo general Orestes, pai do imperador, e assumiu o controle da Itália. Como resultado, achou desnecessário alguém em Ravena usando o título de imperador e posando de governante, pois queria governar o seu recém adquirido reino diretamente do palácio imperial em Ravena, como natural ao soberano da Itália. Mas para isso teria que despejar seu ocupante, “simpático jovem filho do seu ex-amigo Orestes, tornado inimigo por força das circunstâncias”!


Rômulo Augustulus recebe Odoacro com grandes honras nos portões de Ravena e humildemente
põe aos seus pés a sua coroa imperial (476 DC)

Sendo hábil político e amante das formalidades legais, só recorrendo à força em último caso, Odoacro ficou feliz ao ver o imperador de Roma curvar-se diante dele e lhe fez excelente oferta: Rômulo Augustulus renunciaria ao seu título em solene cerimônia pública e sairia do palácio imperial espontaneamente em troca de magnífica mansão à beira mar, grande quantia em ouro no ato e excelente pensão anual, o bastante para que vivesse principescamente o resto da vida. Selado o acordo, ele renunciou como combinado (Set./476 DC) e foi viver em seu novo palácio como simples particular, evitando meter-se em assuntos políticos daí em diante.

A ironia do prosaico evento, mais tarde chamado A Queda do Império Romano, foi que Odoacro era filho de importante ministro de Átila, e os hérulus, seu povo, eram uma tribo germânica que lutara sob a bandeira de Átila na Gália e na Itália, misturando-se largamente com os hunos. Em conseqüência, penso ser apropriado dizer que os hunos, derrotados por Aécio duas vezes, foram indiretamente vitoriosos no final. Por outro lado, o ridículo “negócio” entre Odoacro e Rômulo Augustulus povoou o anedotário fazendo as pessoas rirem em toda parte, mostrando que ao invés de ter sido o resultado de terrível batalha entre romanos e bárbaros, a chamada “Queda do Império Romano” foi apenas o resultado de um lucrativo acordo de cavalheiros.

Em solene cerimônia Rômulo Augustulus renuncia ao título de
imperador e passa a Odoacro as insígnias do poder imperial

Indignado com a negociata, o Imperador Romano do Oriente reclamou o trono vazio sob o “argumento legal” de que era o legítimo herdeiro do Império Ocidental no caso do seu titular morrer ou renunciar sem deixar herdeiros e o senado romano não lhe eleger um sucessor. Mas Odoacro respondeu aos seus “clamores jurídicos” fazendo o senado escrever-lhe dizendo que “Um novo imperador é desnecessário ao povo romano, pois todos estão felizes e seguros sob o profícuo governo de Odoacro; de sorte que o melhor para sua Majestade do Oriente será cuidar dos seus próprios graves assuntos, um pesado fardo mesmo para alguém tão sábio e competente, e parar de se intrometer nos negócios do Ocidente de uma vez por todas”! Para completar, o senado romano mandou para Constantinopla a coroa e as insígnias do último Imperador do Ocidente, dizendo que ao Império bastava um só imperador e sua Majestade Oriental poderia usar as jóias também como Majestade Ocidental desde que não se metesse nos negócios do Ocidente.

O povo romano considerou tudo uma piada e o caso virou apenas mais uma anedota entre as muitas que circulavam na ocasião. Assim, ao contrário do que muitos pensam, o Império Romano do Ocidente não caiu em meio a gritos de tragédia, mas em meio a gargalhadas de comédia.

Na época ninguém achou que o Império houvesse acabado: “Mais cedo ou mais tarde um imperador como Teodósio o Grande irá surgir e colocará tudo novamente nos seus devidos lugares, fazendo as coisas voltarem à normalidade!” era o sentimento generalizado. Mas quando um ano passou e virou uma década e a década virou um século sem que nenhum novo grande imperador aparecesse, as pessoas finalmente perceberam que o Império tinha terminado e os historiadores tomaram o ano de 476 como data de sua queda. Na verdade o Império morrera vinte e dois antes junto com Flávio Aécio, seu último grande general.

Sic Transit Gloria Mundi