quarta-feira, 16 de agosto de 2017


Post nº 88

JANE  AUSTEN - A  GENIAL  CRONISTA
DA  SOCIEDADE  INGLESA  NO  INÍCIO
DA  REVOLUÇÃO  INDUSTRIAL 


Jane Austen morreu solteira e quase desapercebida aos 41 anos de idade,
mas hoje é a mais famosa romancista inglesa de todos os tempos

O livro de Piketty é o maior bestseller de Economia do século XXI e usa a obra de Austen
para analisar as relações sócio-econômicas no início da Revolução Industrial


Há 200 anos (18-7-1817) falecia Jane Austen, a mais popular romancista inglesa de todos os tempos. Filha de um clérigo membro da pequena nobreza rural, morreu solteira aos 41 anos de idade após publicar em vida quatro romances dos seis que escreveu: Pride and Prejudice, Reason and Sensibility, Emma e Mansfield Park. Os dois restantes, Persuasion e Northanger Abbey, foram publicados postumamente. Porém o que mais surpreende é que ela publicou seus livros anonimamente, mesmo quando já eram sucesso de venda e de público. A sua timidez e excesso de modéstia não só diminuiu o seu valor de mercado, e portanto os seus ganhos, como a impediu de gozar fama e prestígio em vida, o que poderia ter evitado seus graves ataques de depressão e minorado o sofrimento causado pela cruel doença que a levou a prematuro final de vida doloroso e solitário. Na época, sua obra foi considerada "água com açúcar (tea table romance, no jargão literário inglês), própria para senhoras românticas e mocinhas casadoras, parecendo que nem mesmo seus familiares mais íntimos levaram a sério sua literatura, pois no carinhoso epitáfio que lhe fizeram exaltam seu intelecto e suas virtudes pessoais e morais, mas omitem ter sido ela escritora!!!


Casa paroquial onde Jane nasceu e tornou-se adulta. Gravura da época.
  
Nos anos seguintes à sua morte o manto do esquecimento caiu sobre ela e sua obra, até que nos anos 1830 seu editor resolveu reimprimi-la e devolvê-la ao mercado com bom sucesso de vendas, o que atraiu a atenção da crítica e de alguns respeitados intelectuais da época. À medida que as vendas se mantinham em bom patamar e as edições se sucediam, a atenção da crítica e dos intelectuais se voltava cada vez mais para a infeliz escritora, até que em meados do século XIX a atenção virou entusiasmo e alguns chegaram a compará-la a Shakespeare, o que era incabível mas perdoável por serem tempos de lutas entre escolas (realistas x românticos) e exaltado frenesi literário. Fato é que se passou a admirar e tratar com respeito a escritora "caipira", pois Austen sempre viveu no bucólico interior campestre inglês e conhecia Londres apenas de visita. Por isso fala da grande metrópole apenas incidentalmente, e tudo indica que o único lugar sofisticado que conheceu bem foi a pequena Bath, onde viveu seis anos e era na época o mais elegante balneário da Inglaterra, lugar preferido da alta sociedade inglesa para passar o inverno e as festas de fim de ano.


Centro da elegante cidade de Bath na época de Jane Austen (primeiras décadas do século XIX)

Mas o fato é que apesar da "redescoberta" literária de Austen ter causado vívido interesse entre os intelectuais, a maioria continuou a vê-la como simples autora "chá das cinco", sem valor maior, salvo a apurada linguagem e o refinado estilo. De qualquer forma, o debate despertou a curiosidade do público leitor e desde então Austen não parou de ser lida, fazendo com que seus livros virassem peças de teatro e, mais modernamente, filmes para o cinema e séries para a TV. Dentre estas últimas destacam-se as produzidas pela BBC, com destaque para a notável versão de Pride and Prejudice levada ao ar em 1995.


Gravura de antiga edição da obra mais popular de Austen,
sucesso permanente desde que dada a público em 1814

No passado, teve-se como seu maior defeito a "atemporalidade" e "vazio histórico" de sua obra, pois embora escrita durante as Guerras Napoleônicas, um dos momentos mais difíceis da história inglesa, nunca fala-se das guerras nem dos seus atores. Não há menções a Napoleão nem aos heróis ingleses Nelson, Wellington ou quaisquer outros. Para Austen, é como se a tragédia, da qual dependia a existência da sua pátria, não existisse ou ocorresse no planeta Marte. Nem mesmo em seu livro Persuasion, cujos principais personagens masculinos são marinheiros, há menções a batalhas navais, ao almirante Nelson ou a quaisquer outros militares notáveis em virtude dos seus feitos gloriosos. Os oficiais existem apenas como namorados, noivos, maridos ou "bons partidos" em razão da fortuna ganha com os saques dos navios inimigos, sem que se saiba quem é o "inimigo" e em qual guerra ou batalha foram eles saqueados.


Na época de Austen a Inglaterra lutava ferozmente contra a França pela hegemonia
 mundial, mas para a escritora é como se a guerra não existisse
  
Mas a "atemporalidade" de Austen, tida no passado como grave defeito, hoje é vista como grande virtude, pois permitiu-lhe focar com exclusividade na mentalidade, usos e costumes da nobreza e da burguesia na hora em que o feudalismo morria, o industrialismo avançava, a burguesia se enobrecia e a nobreza se aburguesava, tornando o dinheiro o valor maior e fazendo com que as duas classes se misturassem em processo pacífico que pouparia a Inglaterra dos horrores da recente Revolução Francesa, a qual tampouco é citada por Austen. As duas últimas décadas do século XVIII e as duas primeiras do século XIX, durante as quais ela viveu, foi a época do deslanche da "Revolução Industrial" e do crescimento em grande escala do capitalismo moderno na Inglaterra, mas isso não acontecia uniformemente em todo país. A grande transformação econômica em curso passava-se principalmente em Londres e no centro-norte do Reino Unido, poupando dos seus aspectos mais dramáticos e deletérios o bucólico sudoeste rural onde Austen vivia, mas suas consequências sociais e espirituais espalhavam-se por toda sociedade, embora ela disso não tivesse consciência, dando às pessoas novo modo de sentir, pensar e proceder. Assim, o rentismo ocioso da nobreza e o empreendedorismo dinâmico da burguesia se amalgamaram na tarefa de evitar os horrores da revolução político-social, dando bases sólidas ao capitalismo, derrotando a França Napoleônica e tornando a Inglaterra mundialmente hegemônica. Para isso nem sequer precisaria ter grande exército, bastando-lhe ter grande esquadra que protegesse suas rotas marítimas e interesses econômicos ao redor do mundo, pois seus industriais, comerciantes e banqueiros fariam o resto. O resultado foi a criação do poderoso Império Britânico que dominaria o mundo por mais de um século.
Casa onde Jane viveu os últimos anos de sua vida. Hoje é um museu.

Nada indica que Austen tivesse noção do drama histórico em meio ao qual seus personagens se moviam, mas isso não muda o fato de que ninguém retratou melhor, com ironia, argúcia e talento, a alma de uma sociedade que procurava disfarçar sua paixão pelo dinheiro com hipócrita polidez e hiperbólico linguajar, onde jamais se ia direto ao ponto e a ele só se chegava indiretamente por círculos tortuosos e subtendidos que as vezes originavam incríveis confusões. Nunca as palavras foram mais usadas para ocultar os pensamentos nem estes para sepultar os sentimentos quanto na sociedade capitalista da Inglaterra do século XIX, o que deu aos ingleses a fama de "hipócritas", "excêntricos" e "esquisitos". É graças à pena magistral de Austen que hoje podemos conhecer as incríveis distorções espirituais e morais que podem ser causados pelo "deus dinheiro" nos corações e mentes de uma jovem sociedade que avança a passos de gigante rumo à grandeza material e política. 

Em seu recente livro "O Capital no Século XXI", best seller mundial no gênero, o economista francês Thomas Piketty cita a obra de Austen como o mais autorizado retrato das classes alta e média da Inglaterra e das instituições econômicas que procuravam se firmar no desabrochar da nossa moderna sociedade capitalista. Creio que nem mesmo em seus mais loucos sonhos, Austen imaginaria que dois séculos depois a sua obra "água com açúcar", retrato da sociedade em que viveu, viria a ser sobre ela a fonte mais valiosa de que lançaria mão uma das mais brilhantes obras de Economia do século XXI.