domingo, 17 de abril de 2011

Post nº 35

CÍCERO  - POR  QUE  O  GRANDE  ORADOR
ROMANO  APOIOU  OS  ASSASSINOS
DE  CÉSAR ?


O cônsul Marcus Tulius Cicero acusa o senador Lucius Catilina de conspirar contra
a República. Quadro célebre de Cesare Maccari (1888)

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Um dos enigmas sobre o assassinato de César é o papel de Cícero, pois apesar de ser o maior orador romano e líder de uma influente facção conservadora ele não participou e nem sequer foi informado da conspiração, geralmente tida como um Golpe de Estado conservador. O enigma se torna maior porque após o crime ele tornou-se o principal defensor parlamentar dos golpistas e o mais ferrenho adversário de Marco Antonio, por ele chamado de capanga de César e inimigo da República, conforme mostrado em sua última coletânea de discursos intitulada Filípicas. Acho que o enigma só pode ser esclarecido se analisarmos as circunstâncias sociais e políticas dentro das quais ele atuou e as peculiaridades do seu caráter.

Para a elite romana Cícero era o que chamaríamos hoje de caipira e arrivista, pois nascera em 106 AC em uma modesta cidade interiorana distante de Roma e a sua nobreza era de segunda classe, pois pertencia à Ordem Eqüestre e não à Ordem Patrícia. Na época Roma não era ainda a metrópole cosmopolita que viria a ser depois nem as barreiras sociais tinham sido suficientemente demolidas, de sorte que apesar da sua riqueza pessoal ele era visto como um parvenu e não como um legítimo membro do stablishment. Sua notável inteligência e excepcional cultura muito cedo o fizeram afamado orador e requisitado advogado, levando-o a atuar em causas importantes e de grande repercussão. Apesar de pertencer à facção conservadora e ter combatido em um dos vários conflitos internos, indispôs-se com o ditador Sila e prudentemente foi passar longa temporada na Ásia e na Grécia, a qual aproveitou para polir a sua cultura literária, filosófica e retórica. Mestre das línguas latina e grega, ao voltar trouxe o que de melhor havia em filosofia e elaborou um dicionário de termos filosóficos. Também escreveu ao longo dos anos vários tratados de direito e de filosofia que sobreviveram à passagem dos séculos e até hoje são lidos com prazer. Criou ainda o gênero literário que viria a ser chamado Epistolar, do qual a sua correspondência privada é a primeira obra-prima.

Marcus Tulius Cicero foi o maior orador da antiguidade e as suas duas séries de
 discursos "Catilinárias" e "Filípicas" ainda hoje são lidas com prazer 

Sua enorme fama intelectual o levou ao Senado, pois já havia desaparecido a antiga exigência de que somente patrícios o integrassem. Muito conservador, tornou-se um dos baluartes do partido e ocupou importantes cargos públicos, destacando-se pela lisura no trato da coisa pública e pelo rigor contra os que agiam com desleixo e desonestidade. A exemplar acusação e punição de altas autoridades corruptas que desmoralizavam o bom nome da Res Publica Romana fez de Cícero político popular e estimado, elegendo-o Cônsul, o mais elevado posto na hierarquia do poder. Era semelhante ao atual posto de Primeiro Ministro, com a diferença de que era exercido em conjunto com outro Cônsul e o mandato era de apenas um ano. De qualquer forma, as coisas sempre eram lideradas pelo cônsul de mais prestígio e Cícero fez valer o seu debelando a revolta liberal radical do senador Lucio Catilina e decretando a Lei Marcial, a qual usou para executar sem julgamento vários cidadãos envolvidos na revolta. Isto lhe causaria sérios problemas futuros, que culminariam com a decretação do seu exílio na Grécia.


Cícero era primoroso orador e escritor, mas era ultraconservador, ingrato, vingativo e desapiedado,
em total desacordo com o que apregoa em suas obras. Tela de Hans W. Schimidt (séc. XIX)

Embora amargurado, pois se julgava merecedor de gratidão e não de punição, utilizou-se do exílio forçado para estudar e escrever, convivendo com a nata da intelectualidade grega. Quando voltou a Roma após ser perdoado, apoiou o Triunvirato formado por César, Crasso e Pompeu, pois os tinha em alta consideração e achava que restaurariam o prestígio da República. Quando Crasso foi derrotado e morto na Ásia, estourou a guerra civil entre César e Pompeu, mas ele, obediente aos seus instintos conservadores, abandonou a sua habitual cautela e aliou-se a Pompeu, participando ao seu lado da campanha da Grécia até a desastrosa derrota na batalha de Farsália.

Após a morte de Pompeu no Egito regressou temeroso a Roma, mas beneficiou-se da generosidade de César para com os antigos adversários. A partir daí manteve-se discreto e exerceu papel moderador nos conflitos parlamentares até ressurgir atrevido e combativo após a morte de César, defendendo os seus algozes e clamando contra os partidários do líder morto. Estes não o perdoaram e após dominarem a Itália, forçando Cassius e Brutus a fugirem, saíram à caça de Cícero e o executaram em dezembro de 43 AC.

Os soldados de Otávio e Antônio prendem Cícero na estrada quando ele tentava fugir e o
executam (43 AC). Gravura de autor do século XIX identificado apenas como HMP
      
Ficam, portanto, duas questões: a) Por que os conjurados o trataram com desdém, não o convidando nem informando da conspiração apesar de ser ele membro destacado do Partido Conservador? b) Por que, embora sendo por eles tratado com desdém, assumiu-lhes o partido e a defesa? 

Creio que a resposta à primeira questão está na pouca confiança que o seu caráter inspirava. Por exemplo: César ficara ao lado do Senado durante a revolta de Catilina, mas opôs-se à decisão de Cícero de executar sem julgamento importantes cidadãos envolvidos. Não obstante, o defendeu quando ele foi chamado a prestar contas dos seus atos arbitrários e se empenhou para que fosse perdoado após sua condenação ao exílio. Depois disso cultivaram boas relações e durante as guerras das Gálias mantiveram ativa correspondência, pois César costumava lhe escrever longas cartas relatando o andamento da campanha, prontamente respondidas por Cícero relatando-lhe o que se passava em Roma durante a sua prolongada ausência. Coisas como essa levam a crer que uma sólida amizade nascera entre eles, mas quando César e Pompeu romperam ele retribuiu os favores e gentilezas do primeiro ficando ao lado do segundo e o acompanhando na sua malfadada campanha militar.

De novo perdoado pela generosidade de César, adotou atitude mais digna e sendo homem de letras fazia grandes elogios às suas duas obras primas, De Belo Galico e De Belo Civille. Em consequência, os conjurados certamente achavam que Cícero arrependera-se da sua ingratidão para com César e resolvera não repeti-la ao ser beneficiado após a derrota de Pompeu. Ademais, Cícero era um homem da Lei e eles deviam achar que ele se oporia à prática de um crime no sagrado recinto do Senado, fato jamais ocorrido antes. Por isso não o convidaram e nem sequer o informaram da conjuração, pois deviam temer que ele não só se opusesse como ainda lhes reprovasse e denunciasse a perversa intenção em veementes discursos, tal como fizera por ocasião da conspiração de Catilina.

A resposta à segunda questão está não só no seu ultraconservadorismo como na pouca nobreza do seu caráter, impossível de detectar nos seus excelentes escritos. Tudo indica que sua excessiva vaidade, falta de sentimentos autênticos e miopia estratégica fez com que visse na morte de César oportunidade de novamente ocupar lugar de destaque no cenário político de Roma, pois os conjurados eram políticos relativamente obscuros e intelectualmente medíocres. Nada melhor para que alguém do seu porte assumisse a liderança e se tornasse a eminência ilustre da nova situação.

Enganou-se e pagou com a vida a sua falta de firmeza moral, oportunismo e monumental erro político!




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