quarta-feira, 27 de julho de 2011

Post nº 44

TEODÓSIO  -  O  IMPERADOR  ROMANO
QUE  DETEVE  O  AVANÇO  DOS
INVASORES  GODOS  

Santo Ambrósio proíbe o imperador Teodósio entrar na catedral de Milão e o manda
fazer penitência por seus crimes. Tela de Anthonis Van Dyck (1620)


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A conseqüência imediata da esmagadora derrota romana em Adrianópolis no ano de 378 DC foi o caos geral no Oriente, abalando a estrutura do gigantesco Império que desde o século II estendia-se do norte da Inglaterra ao sul do Iraque, do oceano Atlântico ao oceano Índico, das florestas da Germânia às areias do Saara e tinha o mar Mediterrâneo como um lago interior. Com o exército destruído, como poderia o seu domínio manter-se sobre tão imensa área?

Um dos maiores mistérios da História é entender como um Império com milhões de quilômetros quadrados, centenas de povos e dezenas de idiomas diferentes, pôde durar tanto tempo apesar de calamidades e largos períodos de anarquia político-militar, mas entre as várias explicações e fatores apontados para a solução do mistério está a eficiência do Exército. Mas ele agora sumira e ninguém tinha a mínima ideia de como ficariam as coisas sem ele. O resultado foi o pânico generalizado e as autoridades locais fazendo o que podiam para manter a estrutura do Estado e a segurança dos cidadãos enquanto aguardavam pelos acontecimentos. Porém, por incrível que pareça, o temível exército imperial logo se refez do desastre, possibilitando a sobrevivência do Império por mais um século. Como foi possível o milagre?

Vejamos. Muitos pensam que o Exército Romano era enorme, mas ele era incrivelmente pequeno. Seus efetivos eram em média de 180 mil homens, podendo às vezes subir para cerca de 200.000 ou baixar para cerca de 150.000, dependendo da conjuntura político-militar. Verifica-se, portanto, que tanto em seu tamanho máximo como em seu tamanho mínimo ou médio, os seus efetivos eram muito inferiores aos dos exércitos das grandes potências atuais, relativamente bem menos importantes e poderosas do que o antigo Império. Como podia, pois, um exército tão pequeno ser máquina de guerra tão temível?

A chegada em massa dos civilizados godos cristãos ao Império poderia ter sido sua salvação, mas a
incompetência dos romanos os fez principal agente da sua destruição

O segredo estava na organização e não no tamanho. Desde o imperador Trajano o Exército dividia-se em cerca de trinta Legiões, cada uma tendo, quando completa, um total de seis mil seiscentos e sessenta legionários comandados por um general-chefe auxiliado por um ou dois tenentes-generais. Ela dividia-se em dez coortes de seiscentos e sessenta e seis soldados, as quais eram postadas em locais estratégicos da zona sob sua jurisdição. Por sua vez a coorte dividia-se em seis centúrias, as quais se compunham de dez decúrias, a menor e mais coesa unidade do exército. Cuidando da logística da legião, havia cerca de mil auxiliares sem treino militar apropriado, mas que em casos extremos podiam ser chamados à batalha. Durante esta, cada unidade encaixava-se ou destacava-se da outra como peça de um mecanismo e os legionários moviam-se obedecendo apenas ao comando dos seus oficiais, com frieza e sem gestos precipitados.

Com tão extraordinária organização e eficientes táticas uma legião podia assegurar o domínio imperial em vastos territórios com um mínimo de soldados, porém deve ser dito que seus efetivos, armas, formações e táticas de combate variaram bastante no decorrer do tempo, e no século IV raro era a Legião com mais de três mil homens e Coortes com mais de trezentos. Isto explicaria o fato dos romanos, embora lutando em Adrianópolis com cerca de cinquenta mil homens, perderem  trinta e cinco generais e dezesseis Legiões.

Porém, o mais importante durante a crise que se seguiu à batalha de Adrianópolis foi o fato da antiga localização estratégica dos quartéis, sede das tropas que tinham partido para a guerra, ter sido conservada e os quarteis terem permanecido ativos, com toda a sua estrutura burocrática em pleno funcionamento. Por isso, bastou um rápido recrutamento de novas tropas, fácil de ser obtido dado os altos salários pagos aos militares, para que as legiões destruídas fossem refeitas, mantendo-se a unidade e a segurança do Império.

Em decorrência dos alicerces sobre os quais era edificado, o exército romano era capaz de renascer rapidamente das próprias cinzas e voltar a ser a mesma máquina de guerra invencível de antes, salvo quando ocorriam circunstâncias fatais ou erros crassos de comando como em Adrianópolis. Por isso é que a esmagadora derrota causou tanta surpresa, levando todos a julgarem “o fim do mundo”. Mas como uma desgraça nunca vem sozinha, várias outras menores, porém não menos terríveis, ocorreram em seguida por todo o Império, pois gente apavorada sempre joga sua raiva em “inimigos” indefesos. E foi o que ocorreu com milhares de “bárbaros” que viviam pacificamente no Império, massacrados em casa e na rua por multidões furiosas que bradavam insultos homicidas contra os godos miseráveis! Houve mesmo um general que executou centenas de soldados godos há muito servindo lealmente em suas tropas.

Os godos recuaram diante das imensas muralhas de Constantinopla e abandonaram
 o seu projeto de tomar a capital do Império Romano do Oriente
         
Mas enquanto reinava o caos nas cidades do Império, o líder godo Fritigerno saqueou e incendiou os quartéis imperiais fora das muralhas de Adrianópolis, só não a tomando porque julgou ser muito esforço para pouco ganho. Assim, marchou sobre Constantinopla, que pensava estar indefesa, mas enganou-se: uma feroz legião árabe recém chegada, e os poucos oficiais sobreviventes do massacre, armaram os civis e simularam serem uma “grande força defensiva”! As imensas muralhas “fortemente guarnecidas” fizeram-no desistir e ir para o rico interior saqueá-lo sem maiores dificuldades; para aumentar o caos, milhares de famílias góticas cruzaram a indefesa fronteira do rio Danúbio e ocuparam as muitas fazendas desertas, ao mesmo tempo em que os seus jovens, inflamados pela vitória, iam engrossar as fileiras rebeldes.

A gravíssima situação tornou urgente a escolha de um novo Imperador, pois Graciano, Imperador do Ocidente e herdeiro do trono, estava certo da  vitória final dos godos no Oriente e resolvera voltar a Itália a fim de organizar a defesa contra uma provável marcha dos vitoriosos para o oeste. Vendo-se abandonados por Graciano, os pouco generais sobreviventes, incapazes de elegerem novo imperador um dos seus pares devido à rivalidade entre eles, escolheram um antigo colega que deixara saudades ao se demitir do Exército há alguns anos para cuidar de suas propriedades na Espanha: Teodósio!

De família nobre e riquíssima, era filho de bravo general e ilustre ministro do imperador Valentiniano I. Isto o ajudara a fazer rápida carreira no exército, mas o seu pai caiu em desgraça durante a sucessão do imperador falecido e foi executado por ordem do novo imperador Graciano. Face à desgraça, o jovem Teodósio achou prudente se afastar e ir cuidar dos seus negócios na Espanha. Estava lá quando recebeu a notícia da sua escolha para envergar a púrpura imperial, mas antes exigiu que o imperador Graciano, legítimo herdeiro de Valente, a referendasse, o que foi difícil porque havia intensa antipatia entre os dois. Com ou sem o decreto no bolso, viajou com um grupo de nobres generais espanhóis seus amigos e fixou sua capital em Salônica, ponto estratégico para a guerra em curso. Sua primeira providência foi recriar o exército, e o conseguiu em prazo breve. Após um ano de combates e intensa diplomacia, conseguiu botar ordem no caos e mudar-se para Constantinopla, de onde habilmente comandou a guerra atraindo os adversários mais receptivos e derrotando os mais recalcitrantes.

Teodósio era de riquíssima família espanhola e foi o último imperador a governar os
Impérios Romanos do Oriente e do Ocidente unificados (378-395 DC)

O seu golpe de mestre foi receber com grandes honras o velho chefe godo Atanarico, que por muitos anos guerreara os romanos e se afastara bem antes da batalha de Adrianópolis por política, velhice e doença. Embora não tivesse mais poder algum, era muito respeitado por seu povo e as grandes atenções que Teodósio lhe deu, tratando-o como seu igual, não só o comoveram, como também aos seus antigos liderados, facilitando a paz definitiva. Quando meses depois Atanarico faleceu, Teodósio o homenageou com funerais suntuosos, dignos de um imperador, e isto facilitou ainda mais as coisas, permitindo que no final de 382 um Tratado de Paz fosse celebrado. 
         
Porém, apesar de Teodósio dar aos godos boa parte do que exigiam, sobretudo terras, subsídios, ingresso no exército e na burocracia, o que mais influiu no acordo foi serem eles cristãos romanizados, ansiosos por fazerem parte do Império. Isto ajudou bastante, mas o fato de serem cristãos da "Seita Ariana”, fanaticamente combatida pela "Seita Católica”, dominante em Constantinopla, na corte e na região por eles ocupada, causou muitos empecilhos. O próprio Teodósio era um fiel Católico e isto certamente influenciou sua conduta dúplice depois do Tratado, conduta que daí em diante condicionaria os romanos a lidar com os godos sempre de forma traiçoeira e desonesta. Ademais, o extremado Catolicismo de Teodósio o levaria não só a hostilizar os Arianos, como a proibir o Paganismo, introduzindo no Mundo Antigo um conceito até então desconhecido: Intolerância Religiosa! Ao fazer isso, deflagrou o processo que findaria a Idade Clássica e iniciaria a Idade Média.

De qualquer forma, o novo imperador conseguira superar a grave crise e salvar o Império de uma catástrofe que a todos parecera inevitável. Apesar da arrogante incompetência do seu antecessor e desvairada bandalheira da burocracia, Teodósio realizara uma proeza notável: injetar vida nova a um Império moribundo e salvar Roma.
        
Pelo menos por enquanto.


Nota: a palavra bárbaro entre os romanos não tinha o sentido que lhe damos hoje, significando na época apenas "povo estrangeiro ignorante", que não sabe Latim e fala "bar-ba-bar-ba-bar-ba". Foi a piada o que deu origem à palavra. Todavia, povos civilizados ou com elites civilizadas, como cartagineses, gregos, egípcios, armênios, árabes e persas, não recebiam esse apelido depreciativo. Após a expansão do Império por quase todo o mundo conhecido, bárbaros eram apenas os povos além-fronteiras do norte e nordeste que não sabiam ler e escrever. Depois que o notável bispo godo Úfila  converteu seu povo ao cristianismo ariano em meados do século IV, dando ao seu idioma uma escrita e para ele traduzindo a Bíblia, tornou-se extremamente inapropriado chamar os godos de bárbaros. O fervor com que eles abraçaram a nova religião fez surgir em seu meio muitas paróquias com escolas, pois todos queriam aprender a ler os ensinamentos do Senhor no Livro Sagrado. Só por incrível arrogância e despeito é que os romanos continuaram a chamá-los de bárbaros após a catastrófica derrota que eles lhes impuseram em Adrianópolis, cujos antecedentes mostram que no caso bárbaros eram os romanos e não os godos. Mais do que pela competência de Teodósio, os romanos foram salvos por serem os godos cristãos devotos e preferirem confraternizar com inimigos também cristãos a destruí-los. A sua generosa atitude lhes traria muito sofrimento e decepção, mas por fim infligiriam aos romanos um castigo que eles jamais esqueceriam.     


segunda-feira, 11 de julho de 2011

Post nº 43

BATALHA  DE  ADRIANÓPOLIS  –  COMEÇO
DO  FIM  DO  IMPÉRIO  ROMANO


Em Adrianópolis os exaustos romanos ficaram horas sob o sol forte, respirando a fumaça das fogueiras
acesas pelos godos enquanto as demoradas negociações entre seus líderes se arrastavam

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Um dos grandes paradoxos da história é que, embora tenha sido travada pelo Império Romano do Oriente, a batalha de Adrianópolis em nada influenciou o seu destino, mas influenciou decisivamente o lento processo de extinção do Império Romano do Ocidente que nela não tomou parte. Para que possamos entender tão intrigante paradoxo, é preciso analisar não só o desenrolar da grande batalha, mas também as suas lamentáveis causas e as suas funestas consequências.

No final do século III, uma tribo de ferozes cavaleiros que vivia entre as montanhas do Afeganistão e o Mar Cáspio invadiu a Europa e ocupou a vasta região entre o Rio Volga e o Rio Dom. Após derrotarem os alanos, estes se tornaram seus aliados e continuaram sua implacável marcha para o oeste. Os conquistadores eram chamados de Hunos e em meados do século seguinte atacaram os greutungos e os tervíngios, tribos numerosas que habitavam as atuais Ucrânia e norte da Romênia. Referidas tribos eram da mesma etnia e possuíam língua e cultura comum, fazendo com que os romanos os considerasse um único povo ao qual davam o apelido genérico de Godos. Eles eram bastante civilizados e, ao contrário do que diz a história oficial, não tinham qualquer parentesco com os germânicos nem com os escandinavos, como a maioria dos historiadores tem insistido em repetir erroneamente através dos séculos. O erro se deve a uma obra equivocada do historiador do século IV Amianus Marcelinus, que não conseguia distinguir bem entre os inúmeros povos bárbaros, habitantes de regiões remotas além das fronteiras do império, dado as poucas informações de que dispunha.

Não se sabe se os godos eram eslavos, mas é certo que há muito viviam na atual Ucrânia e eram superiores culturalmente aos germânicos e aos escandinavos conforme provam as modernas pesquisas arqueológicas, não tendo os seus idiomas semelhanças maiores apesar de serem do ramo indo-europeu. Vivendo nas fronteiras do Império, os godos tinham intenso relacionamento comercial e cultural com os romanos, às vezes pacífico e às vezes conflitante, mas este cresceu e melhorou muito depois que eles adotaram uma escrita criada para o idioma gótico pelo bispo Úfila, seu erudito compatriota radicado em Constantinopla, o qual também lhes traduziu a Bíblia e os converteu ao cristianismo da Seita Ariana por ele professada. Esta disputava com a Seita Católica, na época chamada de "ortodoxa", a supremacia do mundo cristão. Os arianos, portanto, eram dissidentes da Igreja dominante e a quem, no contexto atual, poderíamos chamar de protestantes.

Os godos não eram parentes dos germânicos e foram convertidos ao cristianismo
ariano pelo bispo Úfila no século IV. Gravura de autor anônimo (1900)
       
Após sangrentas lutas com os invasores hunos, as tribos góticas recuaram e buscaram refúgio no território do Império Romano do Oriente, acampando na margem norte do Rio Danúbio na primavera de 376 e suplicando ao imperador Valente que os acolhesse como súditos, protegendo-os contra os terríveis conquistadores pagãos. Sempre afirmando que queriam se tornar romanos, os tervíngios (depois chamados "visigodos") foram admitidos no território imperial após árduas negociações e atravessaram o largo Rio Danúbio em centenas de barcos no verão do mesmo ano. Foi a maior migração em massa da História e não se sabe o número exato de imigrantes. Alguns autores, como o grande historiador inglês Edward Gibbon, o calculam em cerca de um milhão, pois eram dezenas de milhares de famílias com todos os seus pertences em numerosíssimas carroças. Porém o mais provável é que fossem cerca de trezentos mil na primeira leva, incluindo velhos, mulheres e crianças, número que aumentou bastante nos meses seguintes devido à chegada de novas levas menores, pois a fronteira do Danúbio havia ficado quase que totalmente aberta. Isto permitiu também a entrada dos greutungos (depois chamados "ostrogodos"), fazendo com que o número original de refugiados mais que duplicasse.

Em 376 DC os povos góticos saíram da Ucrânia fugindo dos hunos e chegaram ao rio Danúbio. Após obterem
asilo no Império Romano do Oriente, sua travessia em centenas de barcos foi dramática

Os godos eram um povo próspero, e muitos dos seus nobres traziam tesouros, vestiam-se com esmero e usavam joias valiosas. Isto despertou a cobiça das infames autoridades romanas locais, e o que sucedeu depois é um dos piores casos de incompetência, ladroeira e baixeza de que se tem notícia, pois ao invés de tratarem os godos como súditos ou aliados, os trataram como escravos, encerrando-os em campos de refugiados onde eram vilmente alimentados com carne de cachorro porque as vultosas verbas e os grandes volumes de comida vindos de Constantinopla eram desviados pelos corruptos administradores provinciais. Estes chegaram mesmo à suprema ignominia de negociarem com famílias pobres famintas a venda de seus jovens a traficantes de escravos, e nem mesmo filhos e filhas adolescentes de nobres godos em situação de necessidade escaparam à infâmia da escravidão e da prostituição forçada!

Os godos vinham da Ucrânia e Romênia, chegando ao Império como exilados políticos fugindo dos hunos,
mas foram tratados pelos romanos como escravos, gerando intensa revolta no povo e na nobreza

O descalabro administrativo e a imundície moral dos romanos orientais causaram nos infelizes imigrantes a mais terrível indignação e a revolta estourou, conflagrando o território do que é hoje a Bulgária e o sul da Romênia. Após duas médias batalhas inconclusivas, travadas em Marcianópolis e Salice, escaramuças isoladas continuaram a devastar a Trácia, até que as diversas facções godas organizaram-se em um grande exército sob o comando do líder tervíngio (visigodo) Fritigerno. Só então o imperador Valente, sempre ocupado pelas querelas com o Império Persa, acordou para o problema e resolveu liquidá-lo de vez.

Embora bravo e honesto, Valente era mau general e péssimo estadista, guiando-se mais por seus corruptos ministros do que por corretas razões de Estado. Por isso, ao invés de apurar as causas da baderna e corrigi-las, agiu com a afoiteza dos arrogantes: reuniu o seu grande exército e em julho de 378 marchou para Adrianópolis, vizinha à base dos godos, mas não sem antes pedir o auxílio do seu sobrinho Graciano, imperador do Ocidente e teoricamente seu subordinado. Ao chegar à cidade, as sórdidas autoridades locais pintaram um quadro róseo da situação, dizendo-lhe que o exército godo não passava de um bando de saqueadores e maltrapilhos famintos, que fugiriam assim que vissem no horizonte o temível exército imperial.

Apesar de honesto e de boa fé, Valente era vaidoso, arrogante e incompetente. Era também péssimo general.

Ansioso por obter uma vitória fácil somente sua contra “perigosos invasores bárbaros”, capaz de imortalizá-lo como grande general, Valente decidiu não esperar por Graciano e partir para o combate sem ter de com ele dividir as “glórias da vitória”. Devido à grande superioridade dos romanos orientais, a vitória de Valente era esperada por todos, inclusive pelo líder rebelde Fritigerno que, almejando a todo custo evitar a ruína da guerra, enviou um padre e alguns humildes cidadãos a Valente implorando paz sob o argumento verídico de que os godos eram apenas pobres exilados, expulsos de suas terras por ferozes hunos que logo fariam implacável guerra ao Império; sem terem para onde ir, tudo que desejavam eram terras na Trácia, não como soberanos, mas como bons agricultores que saberiam obter ótimas colheitas e trariam grandes benefícios ao Império e ao povo. Implorava, pois, que lhes concedesse as terras e firmassem um tratado de paz. Em troca, os godos jurariam fidelidade ao imperador e lhe dariam irrestrita e leal colaboração.

Graciano era sobrinho de Valente e imperador romano do Ocidente. Chamado por seu tio para
ajudá-lo talvez evitasse o desastre se tivesse chegado a tempo, pois era capaz e ponderado

Mas Valente não deu atenção à sensata proposta, pois queria travar uma batalha que tinha certeza de vencer. Dessa forma, deixando seus servidores civis e o seu tesouro protegidos dentro das muralhas de Adrianópolis, marchou ao amanhecer de 9 de agosto de 378 com o seu garboso exército para a planície onde Fritigerno e os seus guerreiros acampavam. Não sabemos quantos soldados tinha cada exército, mas calcula-se que entre cinquenta e sessenta mil homens de cada lado se engalfinharam naquele dia fatídico.

No final da manhã, os romanos avistaram o inimigo. Eles tinham formado uma linha defronte ao seu círculo de carroças e repousavam a sombra de toldos para terem a melhor condição possível de combate. Valente também começou a dispor suas tropas em linha, com as unidades de cavalaria em cada lado e a infantaria no centro, mas nem ele nem ninguém estava preparado para o que viria a seguir. O lado esquerdo do exército romano ainda estava em formação de marcha e os greutungos de Alateo e Safraco, aliados dos tervíngios e que com eles formavam a etnia gótica, ainda não tinham chegado.

Fritigerno então procurou ganhar tempo, enviando emissários a Valente suplicando paz, enquanto os imperiais ficavam postados sob o sol abrasador e sofriam com a fumaça das fogueiras acesas pelos tervíngios para enervá-los. Vendo as más condições das suas cansadas tropas, Valente aceitou a proposta de negociação porque, mesmo de longe, vira que o exército godo não era nenhum “bando de maltrapilhos”. Por isso talvez tenha decidido também esperar por Graciano, com quem não quisera antes partilhar as glórias da “vitória certa”. Assim, mandou uma luzidia delegação negociar com Fritigerno e a prontidão do seu exército, extenuado pela longa marcha da manhã, relaxou ainda mais.

Ataque prematuro dos romanos desencadeou a batalha e os exércitos inimigos engalfinharam-se
no sufocante calor da tarde sem ainda estarem preparados

Porém a luta começou por acaso, antes que os dois lados estivessem realmente prontos para o combate. Duas unidades das scholae palatinae de elite, os scutarii do general Cássio e os sagitarii do general Bacúrio, posicionadas ao lado direito do imperador, avançaram antes do tempo e engajaram o inimigo. Sua precipitação rompeu a linha de batalha imperial, que ficou ainda mais caótica pela súbita chegada dos greutungos de Alateo e Safraco, primos e aliados dos tervíngios. Com os greutungos vinha também um batalhão de alanos que haviam rompido com os hunos e se juntado aos ex-inimigos.

O que se seguiu foi um dos piores desastres militares de todos os tempos, pintado pelos historiadores com pinceladas terríveis. Os batalhões romanos da esquerda ultrapassaram a linha inimiga, ficando isolados, e foram aniquilados. Com o lado esquerdo desprotegido, a linha da infantaria romana desabou sobre si mesma, diminuindo a capacidade de luta dos soldados, muitos tombando por ferimentos feitos pelos próprios camaradas. No fim da tarde, todas as linhas romanas se romperam e a fuga começou. A guarda imperial e as scholae palatinae foram esmagadas, forçando Valente a juntar-se aos mattiari, disciplinado batalhão do exército regular e um dos poucos a se manter firme, lutando organizado até o amargo fim. As tropas auxiliares, que ficavam na reserva, foram convocadas, mas elas já tinham fugido para o mais longe possível do cenário da luta.

Batalha de Adrianópolis em 9 de agosto de 378 DC. Gravura "Fury of the Goths" de Paul Ivanovitz (séc. XIX)

Vendo que era inútil tentar conter a debandada e que a única salvação possível era a fuga, os importantes generais Vítor, Richomer e Saturnino abandonaram o campo de batalha, onde o massacre continuou até o escurecer. Nada se sabia do destino de Valente. Alguns diziam que fora ferido por uma flecha e morrera entre os soldados comuns; outros diziam que fora levado e escondido em uma fazenda por leais auxiliares, mas enquanto agonizava os godos tinham cercado e incendiado a casa, matando todos que lá estavam e assim perdendo a gloriosa chance de capturar um imperador romano. Qualquer que seja a verdade, nunca se achou o cadáver de Valente e como sempre ocorre nesses casos muitas lendas surgiram.
          
Na batalha de Adrianópolis, além do imperador Valente, pereceram trinta e cinco generais e a imensa maioria dos bem treinados oficiais e soldados imperiais. Quase tudo que havia de melhor no poderoso Exército Romano do Oriente desapareceu como uma sombra e um vento gelado de terror percorreu o Império de ponta a ponta. Tanto sacerdotes pagãos como cristãos de todas as seitas previram o "fim do mundo" e jogaram a culpa uns nos outros, dizendo que o desastre era "a manifestação da cólera divina por pecados, blasfêmias e contumácia no erro" dos rivais. Porém, recriminações e funestos vaticínios aparte, de um modo ou de outro todos viram que dali em diante governo e povo romanos teriam de lidar com uma até então pouco valorizada “ameaça bárbara”. Por outro lado, os godos estavam apenas iniciando a longa marcha de várias décadas que os levaria a Roma e terminaria na Espanha.

A batalha de Adrianópolis foi o começo do fim do glorioso Império.



Notas:  1) o grande número de etnias que constituíam os chamados "povos bárbaros" não permitia aos romanos distingui-los com precisão uns dos outros e por isso confundiram as tribos góticas com tribos germânicas. Porém não há evidências histórico-antropológicas disso, pois embora falassem um idioma indo-europeu, não era um dos dialetos germânicos e tinha pouquíssimas semelhanças com eles. O mais provável é que os godos fossem uma coleção de tribos primitivas do oeste da Rússia atual que marcharam até a Ucrânia e norte da Romênia, onde misturaram-se com os remanescentes dos civilizados povos dácios, massacrados pelo imperador Trajano no século II DC. Isto lhes deu uma cultura bastante superior entre os "bárbaros" da época, permitindo-lhes serem os primeiros a adotarem o cristianismo e a escrita. Diferentemente dos outros, eles não queriam saquear e destruir o Império Romano, mas tornarem-se parte dele. Foi a extrema miopia e incompetência de Valente que fez os romanos verem nos godos um problema e não uma solução.

2) O principal obstáculo à integração dos godos no Império foi o fato de serem cristãos arianos e por isso hostilizados pelos fanáticos cristãos católicos, majoritários no império e em Constantinopla, que os considerava demônios herejes. O imperador valente era cristão ariano e teria reforçado muito sua posição se tivesse acolhido melhor os godos, mas mantinha discreta sua crença religiosa, com medo de ofender seus fanáticos súditos católicos, e por covardia política e miopia administrativa preferiu hostilizar aqueles que poderiam ter sido os seus mais fieis e valorosos aliados.

3) Mais tarde os tervíngios marcharam para o ocidente e ganharam o nome de visigodos (godos do oeste), enquanto os greutungos ficaram na Trácia, o que lhes valeu o nome de ostrogodos (godos do leste). No final do século 5º, eles também marcharam para o ocidente, sob o comando do seu grande rei Teodorico, e criaram poderoso reino no norte da Itália.  

4) Um dos maiores erros de Valente foi a falta de cálculo temporal. Deveria ter marchado na tarde do dia 8 e avistado o inimigo ao crepúsculo, por volta das 21 horas, quando impossível seria combater. Acamparia, descansaria e na alvorada todos estariam repousados para lutar no frescor do amanhecer. Ao invés disso os soldados marcharam toda a manhã pesadamente equipados e avistaram o inimigo com sol a pino. Sem nenhum descanso, foram colocados em formação de batalha e assim ficaram sob sol abrasador por várias longas horas, respirando a fumaça que o vento lhes trazia das fogueiras ateadas pelo adversário. Enquanto as negociações astutamente solicitadas por Fritigerno prosseguiam, os legionários se asfixiavam e assavam sob os vigilantes olhos dos descansados godos, que afiavam suas espadas sentados à sombra e se divertiam com os exaustos romanos estupidamente posicionados pelo incompetente imperador. Quando a luta finalmente irrompeu, entre 4 e 5 da tarde, o sol estava alto e o calor era enorme. Diante do intempestivo e desorganizado ataque, todo trabalho que os godos tiveram foi o de se levantarem e encararem o exausto e irritado inimigo. Nas horas seguintes, sua única tarefa foi executar uma das maiores e mais fáceis matanças da história. Calcula-se que morreram dez romanos para cada godo, sobretudo durante a debandada final: os cansados legionários mal podiam correr e eram logo alcançados por seus perseguidores que os degolavam como carneiros.

5) O grande número de generais romanos orientais mortos na batalha deve-se ao fato de que, após a divisão do Império entre Valentiniano I e o seu irmão Valente no ano de 362, cada um passou a ter o seu próprio exército. O do Oriente tinha em torno de oitenta mil homens agrupados em cerca de vinte e cinco legiões com aproximadamente três mil homens cada. As dezesseis melhores legiões estavam em Adrianópolis, e como cada uma era comandada por um general assistido por um ou dois generais auxiliares, mais os quatro mil soldados de elite das sete scholae palatinae lideradas por importantes generais do estado-maior do imperador, é lícito supor haver mais de quarenta generais a frente das tropas. Por isso não surpreende que tenham perecido trinta e cinco generais numa batalha onde todas as dezesseis legiões e as sete scholae palatinae foram dizimadas, os sobreviventes mal dando para constituir duas ou três novas legiões.

6) Diferentemente de outras grandes batalhas, a de Adrianópolis foi travada sem obediência a planos estratégicos previamente elaborados por qualquer dos adversários. A precipitação dos generais Cássio e Bacúrio antes de que os exaustos romanos sequer houvessem completado a sua formação de batalha, mostra não só indisciplina, mas também ausência de planos estratégicos definidos. Os godos, em posição defensiva, apenas aproveitaram-se da balbúrdia criada pela incompetência dos romanos para massacrá-los.