sábado, 21 de janeiro de 2012

Post nº 54

A  CAVALARIA  MEDIEVAL  E  O  NASCIMENTO
DO  GÊNERO  LITERÁRIO  "ROMANCE"

"Cavaleiros recebem das damas suas armas antes de partirem para suas heroicas
aventuras". Tapeçaria de Edward Burne Jones (séc. XIX)


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Após as grandes invasões bárbaras e o fim do Império Romano do Ocidente no século V, houve na Europa longo período de acomodação que durou cerca de trezentos anos, chamado “Alta Idade Média”. Ela caracterizou-se pelo desaparecimento do Estado como ente jurídico dono do poder criador da lei, e da Nação como ente social dono da soberania criadora do Estado, predominando a tradição no lugar do primeiro e o tribalismo no lugar do segundo. A destruição das instituições imperiais criou enorme vácuo de poder e intensa fragmentação territorial prejudiciais à troca de mercadorias e idéias, o que resultou em imenso retrocesso social, econômico e cultural. No final do século VII, comércio, artes, escolas e livros tinham praticamente desaparecido, e se não fosse pelas livrarias dos mosteiros cristãos, pois apenas os sacerdotes sabiam ler e escrever, todo o enorme legado cultural da antiguidade teria desaparecido no Ocidente.

Após três séculos de escuridão a Europa começa a renascer no século VIII e o imperador Charlemagne troca
embaixadas com o califa Harum Al-Rashid de Bagdad. Tela de Julius Köckert (1864)

Uma grande letargia parecia ter se apoderado da Europa quando no século VIII foi ela acordada pela avassaladora Onda Islâmica que no século anterior varrera o Oriente Próximo e a África do Norte. A “Invasão Árabe” da Península Ibérica ocorreu quase sem luta, não só porque os senhores cristãos ortodoxos locais não tinham poder nem coesão para se opor, como porque os “árabes invasores” eram descendentes dos vândalos cristãos arianos que três séculos antes tinham emigrado da Espanha para o norte da África, onde construíram poderoso império e depois se converteram ao Islamismo devido à intensa hostilidade e perseguição dos cristãos ortodoxos. Era, portanto, mais uma “volta” que uma “invasão” e eles foram bem recebidos pelos primos que tinham ficado e sido obrigados a adotar o cristianismo ortodoxo. Não é por acaso que o ponto escolhido para a “invasão” tenha sido a Vandaluzia (Terra dos Vândalos), hoje chamada de Andaluzia.

Orlando será celebrado como o maior de todos os cavaleiros medievais.
Gravura de Alphonse de Neuville (séc. XIX)

Embora poemas populares em forma oral celebrando os feitos dos heróis sempre tenham existido e na época das invasões islâmicas poemas celebrando as aventuras do mítico rei Arthur e seus cavaleiros já circulassem na Europa, eles tomaram grande impulso depois dessas invasões para celebrar os feitos de valorosos cavaleiros cristãos nas lutas contra "pérfidos cavaleiros muçulmanos".
  
Orlando é tema da primeira obra-prima literária da Idade Média: o
poema "Chanson de Rolland". Iluminura medieval

O mais famoso desses heróis foi Rolland, conhecido em português como Orlando, bravo oficial do imperador Charlemagne que se tornara legendário após sua morte em batalha nos Pirineus contra cristãos bascos. O fato se passou durante guerra movida por Charlemagne contra os bascos, povo cristão do norte da Espanha, mas a lenda a transformou em "guerra contra os árabes" e originou o poema épico Chanson de Rolland (Canção de Orlando), composto oralmente e transmitido de boca em boca durante trezentos anos até ser posto em livro no século XII ao se iniciarem as cruzadas, certamente como peça de propaganda delas. O imediato sucesso do poema abriu caminho para obras em prosa sobre bravos cavaleiros, as quais constituiriam o gênero Romance de Cavalaria e de Amor Cortês ao serem temperadas com altas doses de paixão e fantasia.

No poema medieval "Orlando Furioso", de Ariosto, o cavaleiro Rogério em seu cavalo-pássaro salva a
princesa Angélica do dragão marinho. Tela de Jean Auguste Baptiste Ingres (1819)

Porém, bem antes de Charlemagne e dos seu famosos cavaleiros conhecidos como Os Doze Pares de França, mais da metade da Espanha caiu rapidamente em poder dos muçulmanos e eles se dirigiram à França, coração da Europa, onde foram derrotados na batalha de Poitiers pela coalizão formada por Carlos Martel, líder dos francos.

Apesar das lendas é pouco provável que Charlemagne e Roland tenham lutado contra os sarracenos. Suas lutas foram contra os europeus cristãos ou pagãos que recusavam o domínio dos francos. Iluminura medieval  

Com a derrota, os muçulmanos voltaram à Espanha, mas o fragor da batalha acordou a Europa e os príncipes francos, assustados com possíveis novas invasões, aceitaram Carlos Martel como chefe capaz de repeli-las. A sua liderança virou suserania e os liderados tornaram-se seus vassalos, o que permitiu mais tarde a unificação da antiga Gália em poderoso reino com o nome de “França” (país dos francos).

O combate com cristãos suevos no século VIII onde Rolland pereceu foi mudado no século XII para combate
com muçulmanos árabes por conta das Cruzadas. Ilustração de autor anônimo (séc. XIX) 

A França adquiriu características de verdadeiro Estado quando algumas décadas depois o seu novo rei Charlemagne, neto de Carlos Martel, além da França dominou também toda a Germania e foi coroado “Imperador Romano” pelo Papa na basílica de São Pedro em Roma. Em consequência, os muitos príncipes vassalos ou aliados deram aos seus domínios toscas instituições auridas do Direito Canônico de origem romana e o novo "Império Carolíngio" surgiu das cinzas do antigo Império Romano do Ocidente, abolido há mais de trezentos anos. Com a volta da Lei escrita e da autoridade forte, o sistema feudal se solidificou, o comércio renasceu e o estudo readquiriu importância pela pena dos burocratas e dos legistas, possibilitando no século XI a fundação da Universidade de Bolonha, mãe das que surgiriam depois. É no final desse século que se iniciam As Cruzadas, fenômeno que causará a “Primeira Renascença” e a criação do gênero literário “Romance”.

A bravura feminina está no romance medieval. No poema Jerusalém Libertada a guerreira
islâmica Clorinda salva os amigos Sofronia e Olindo. Tela de Delacroix (séc. XIX)
          
Embora a Cavalaria Medieval tenha surgido no reinado de Charlemagne, ela só viria a ter crucial importância militar e social com o surgimento das Ordens Religiosas Guerreiras, criadas para combater os muçulmanos durante as Cruzadas. Sobretudo porque os seus membros ao invés de terem título de Frei tinham título de Cavaleiro e, como só os nobres dispunham de tempo e dinheiro para gastar com cavalos e auxiliares para cuidá-los, ser Cavaleiro era privilégio da nobreza. Plebeu somente entrava nas Ordens Militares como auxiliar, geralmente como faxineiro e cozinheiro. Entrar como escriturário ou almoxarife só se tivesse instrução, e como escudeiro, posto reservado ao plebeu com experiência militar e no trato de cavalos, só se fosse bom combatente de infantaria. Se no correr do tempo ele mostrasse valentia, lealdade e muita fé religiosa, podia ser sagrado Cavaleiro pelo seu mestre depois de ouvidos os demais cavaleiros.
  
Enquanto repousa em bosques remotos das lutas do dia o cavaleiro sonha
com a sua dama. Tela de Henry Meynell Rhean (séc. XIX) 

Logo o crescimento do poder, riqueza e prestígio das Ordens Militares estendeu-se não só aos seus cavaleiros, mas a todo e qualquer cavaleiro leigo, agrupados pelos seus monarcas em nobres ordens de cavalaria laica destinadas a servi-los em suas campanhas. Dessa forma a Nobre Ordem da Cavalaria tornou-se ao mesmo tempo instituição militar e social, cujos belos uniformes e feitos heróicos dominaram o imaginário popular, gerando infinidade de lendas, poemas e contos que corriam de boca em boca, criando em torno dela toda uma aura de admiração e respeito.
 
Castelos de sonhos e bravos cavaleiros buscando o ideal e o amor povoam o
imaginário do romance medieval. Tela de Martin Weygand (séc. XIX)

Após seiscentos anos de trevas a cultura começou a renascer e no século XII os mais famosos poemas populares, recitados oralmente durante séculos, adquiriram forma escrita para satisfazer o gosto literário de uma elite enriquecida pela enxurrada de mercadorias e conhecimentos trazidos do Oriente pelos cruzados e mercadores que os acompanhavam. Isto promoveu intenso movimento cultural no Ocidente a que se deu o nome de “1ª Renascença”, a qual se caracterizou pelas seguintes grandes realizações que marcaram nossa Civilização: as Catedrais Góticas, as Universidades, o Renascimento da Filosofia com Tomás de Aquino, o Renascimento da Pesquisa Científica com Rogério Bacon, o Renascimento do Direito com a “Escola dos Glosadores”, o Renascimento da Poesia com Dante e Petrarca, e, finalmente, a criação do Romance Moderno por Chrétien de Troys, criador do gênero literário Romance de Cavalaria e de Amor Cortês.
  
Lutar pelas damas e salvá-las de grandes perigos é a principal tarefa do cavaleiro no
romance medieval. Tela de William Hatherel (séc. XIX)
         
Digo romance moderno porque alguns acham que houve um romance antigo, representado por curtas estórias em versos de amores campestres a que chamavam Idílio. Este gênero literário foi criado pelo poeta grego Teócrito e muitos poetas o cultivaram não só na antiguidade como nas Idades Média e  Moderna, mas caiu em desuso e o último poema idílico a ser publicado foi a obra “Os Idílios do Rei”, de autoria do grande poeta inglês do século XIX Alfred Tennyson. Curiosamente, o poema de Tennyson é uma homenagem ao Romance de Cavalaria e de Amor Cortês da Idade Média, pois versa sobre as aventuras galantes do Rei Arthur e dos seus Cavaleiros da Távola Redonda.

A arrebatadora paixão por nobres e belas damas é o que motiva os bravos cavaleiros
em suas aventuras. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Porém o Idílio é do gênero poesia que não pode ser confundido com o romance ou novela, pois o que caracteriza este é ser uma estória longa em prosa sobre assunto não necessariamente romântico, razão por que os ingleses ao invés da palavra romance preferiram usar a palavra novel derivada do francês nouvelle para designar o novo gênero literário.

As nobres damas socializavam com os bravos cavaleiros e tórridos amores nasciam nas festas
da Corte e nos torneios. Tela de Herbert James Draper (séc. XIX)

Há até pouco tempo a grande maioria achava que não houvera verdadeiro romance na Antiguidade, apesar da estória curta em prosa ter sido bastante cultivada e constituído o gênero literário conto. Todavia, há menos de duzentos anos foi descoberto em um palimpseto texto surpreendente da autoria de um romano chamado Petrônio, a respeito de quem nada se sabe. Exaustivas análises do texto não só certificaram a sua excelente qualidade como também a suposição de ter sido o autor um rico aristocrata do século I, amigo e cortesão do imperador Nero. O livro chama-se Satyricon e contém todos os elementos do romance moderno, mas é também uma extraordinária crônica ficcional da qual se pode dizer ser o único valioso testemunho da ociosa vida dissipada, luxuosa e ostentosa das classes ricas no apogeu do Império Romano.

Em suas aventuras o cavaleiro medieval dos romances enfrentava todo tipo de perigos, incluindo
monstros e seres sobrenaturais. Tela de Ary Scheffer (séc. XIX)
             
Do mesmo modo a obra dá notável retrato da miséria e corrupção reinantes em suas classes baixas e é o terrível contraste entre os dois fatos que século e meio mais tarde produzirá à revolução ética do Cristianismo. O Satyricon, portanto, mostra a existência do gênero literário romance na Antiguidade e, embora não haja evidência de ter sido ele na época cultivado por outros autores, a notável exceção prova que houve pelo menos um!

Antes de entrar no torneio o cavaleiro recebia da sua dama o lenço símbolo
do amor de ambos. Tela de Edmund Leighton (séc. XIX)

Mas se a existência do romance antigo está sujeita a debates, tal não acontece com o romance moderno, pois não há dúvida de que o seu criador é Chrétien de Troys, que o construiu  focado nas aventuras e desventuras dos bravos Cavaleiros Medievais e das suas nobres damas, nele misturando todos os ingredientes de uma boa trama ficcional em prosa: bravura, paixão, lealdade, intriga e traição, tudo envolto num halo de mistério e fantasia onde o Cavaleiro assume o status de moderno herói cinematográfico. Como matéria-prima, Chrétien usa as Lendas Arturianas narradas em incontáveis poemas populares compostos anonimamente ao longo de quinhentos anos, alguns dos quais adquiriram forma escrita. Vários deles chegaram ao século XII e o erudito bispo Geoffrey of Monmouth transformou Arthur em personagem histórico real ao publicar em 1135 a História dos Reis da Inglaterra. O livro teve grande sucesso e várias outros surgiram relatando "a vida e proezas de Arthur e dos seus cavaleiros".
 
O romance de cavalaria e amor cortês cultiva as lendas arturianas. Tela "Mort
D'Arthur" (detalhe) de Edward Burne Jones (séc. XIX)

Em 1170 a fidalga Marie de France publicou uma coletânea de curtos poemas românticos chamados Laís, onde aborda a vida dos heróis pelo lado galante ao invés do histórico-guerreiro. A obra tocou o coração de pessoas cansadas de guerras e violências, sobretudo as nobres mulheres cultas, e o livro obteve também enorme sucesso, dando a Chrétien a ideia de fazer o mesmo em longas narrativas em prosa poética para divertir a sofisticada sociedade de sua época, enriquecida pelas Cruzadas e com o gosto literário apurado pelos poemas musicais dos Trovadores, também surgidos há pouco tempo para grande escândalo daqueles que consideravam a música profana pecaminosa.
 
A corte principesca era o cenário preferido para os amores e as intrigas do
romance medieval. Tela de Edmund Blair Leighton (séc. XIX)

Seu primeiro livro, Erec et Enid, teve sucesso ainda maior que os Laís e durante vinte anos ele explorou o filão que lhe deu fortuna e celebridade, morrendo rico e famoso no castelo de riquíssima condessa sua amante e fiel propagandista junto ao seu largo círculo de amigas, todas senhoras ricas ansiosas por românticas estórias de amor e aventuras, onde a emoção e a paixão de nobres damas e bravos cavaleiros se misturavam em perfeitas proporções com o fantástico e o maravilhoso. Vários escritores seguiram o exemplo de Chrètien e a Europa foi inundada com romances de cavalaria e de amor cortês, avidamente disputados pelo público leitor abastado que podia se dar ao luxo de comprar livros e sonhar acordado.

Tancredo mata Clorinda por engano no poema Jerusalém Libertada e faz até os anjos chorarem enquanto desesperadamente tenta salvá-la. Tela de Louis Jean François Langrenee (séc. XVIII)

Porém, como um último tributo aos grandes poetas da antiguidade, as obras-primas do gênero romance de cavalaria e de amor cortês não foram as narrativas em prosa a que chamamos de romance, mas narrativas em versos publicadas no final e no pós Idade Média a que chamamos de poema épico. O primeiro foi o poema Orlando Furioso, escrito pelo poeta Ariosto no século XV, e o segundo foi o poema Jerusalém Libertada do poeta Torquato Tasso, escrito no século XVI. Referidas obras tornaram-se clássicos da literatura universal e seus vários episódios celebrando os amores de damas e cavaleiros são os melhores que o romantismo medieval produziu, pois neles o lírico e o trágico se casam de maneira perfeita, prendendo a atenção e produzindo no leitor o mais intenso deleite e encantamento.

No poema Jerusalém Libertada a princesa islâmica Armida pratica as artes mágicas
e seduz o cavaleiro cristão Rinaldo. Tela de Tiepollo (séc. XVIII)

Ainda hoje é isto que sucede quando lemos uma boa trama de amor e aventuras, mostrando o mágico fascínio que o romance, em suas mais diferentes formas e categorias, exerce sobre as pessoas, a ponto de continuar sendo o mais popular e requisitado de todos os gêneros literários dos últimos séculos.