Post nº 36
MARCUS ANTONIUS - QUAL O SEU REAL PAPEL NO ASSASSINATO DE CÉSAR ?
Após a morte de César o cônsul Marcus Antonius não prendeu os assassinos e limitou-se a combinar com eles a remoção do corpo e os detalhes do funeral. Quadro de Jean-Léon Gerôme (séc. XIX) |
Shakespeare em sua famosa peça Julio César apresenta Marcus Antonius como nobre caráter e fiel amigo de César, a quem os assassinos permitem por equívoco que promova o funeral do Ditador e durante ele discurse junto com Brutus elogiando as qualidades do morto, mas sem censurar os assassinos. Ao invés disso ele se aproveita da ocasião e incita a multidão a vingar o seu pranteando amigo, expulsando os criminosos de Roma. Além de popularizada pelo teatro a versão foi divulgada pelo cinema e obteve foros de verdade, porém os fatos se passaram de forma diferente e o papel de herói leal e eloqüente que Shakespeare lhe dá se torna bastante questionável, a ponto de vermos nele um enigma Marcus Antonius.
O heróico papel que Shakespeare dá a Marcus Antonius na morte de César é fictício. Cena do filme "Julius Caesar" com Marlon Brando |
Nascido na nobilíssima Gens Antonia ele teve boa educação, mas era desregrado e irresponsável. Era também boêmio, mulherengo, beberrão, alegre, gastador e misturava-se com pessoas de todas as classes, coisas que lhe deram não só muita popularidade, mas também enormes dívidas. A perseguição dos credores o fez ir passar uns tempos na Grécia enquanto seus parentes acertavam as suas contas e lá se juntou ao exército que ia combater na Judéia em uma das muitas guerras nas quais Roma sempre se envolvia.
Sua bravura, simpatia e talento lhe deram grande destaque e o fizeram querido das tropas, de forma que ao voltar à sua cidade natal ele já era um dos mais importantes generais da República e ingressou no senado, pois na sua ausência o seu pai tomara parte na revolta de Catilina e fora executado sem julgamento pelo cônsul Cícero, de quem se tornou inimigo mortal. Tomou parte em outras campanhas e depois se juntou a César na Gália, onde também se destacou e se tornou segundo homem em comando. Quando o procônsul o mandou a Roma pleitear importante cargo, Pompeu e o senado se lhe opuseram e os distúrbios que se seguiram o obrigaram a voltar à Gália. Aberta a cisão entre os rivais, marchou ao lado de César sobre Roma, pondo em fuga os conservadores e tomando o poder junto com o seu chefe e amigo.
Marcus Antonius era bom general, mas era mau administrador e sua vida pessoal era um desastre igual à sua má reputação |
Participou de toda a guerra contra Pompeu e quando César ocupou o Egito o fez governador da Itália com amplos poderes na sua ausência, que se prolongou até toda a Ásia mediterrânea ficar sob domínio romano. Porém Antonius era tão mau administrador quanto era bom general e César ao voltar encontrou a Itália em péssima situação, obrigando-o a censurar duramente o amigo e afastá-lo do cargo.
A amizade deles ficou abalada e Antonius, não mais dispondo do dinheiro do Erário para as suas estroinices, passou por grandes dificuldades, não sendo difícil imaginar que tenha se sentido injustiçado e amargurado. Mas depois fizeram as pazes e no final de 45 AC César o nomeou cônsul para o ano seguinte. As coisas iam bem e em fevereiro ambos participaram alegremente do carnaval romano, Antonius como inveterado folião e César como divertido espectador. Tudo indica que foi nesse período que a conspiração tomou forma e poucas semanas antes do crime a cidade fervilhava de boatos, até que o pior aconteceu no dia 15 de março de 44 AC. O crime ocorreu durante sessão do senado à qual Marcus Antonius, cônsul e segundo homem mais importante da República, por incrível "coincidência" não compareceu. Depois do crime contatou Brutus e Cassius e estes lhe permitiram remover o cadáver de César, ficando acertado que daí a cinco dias haveria suntuoso funeral em homenagem ao grande morto, ocasião em que ele e Brutus discursariam.
Cícero, seu mortal inimigo, protestou contra o que julgava ser uma loucura, pois achava que Antonius também deveria ser morto e dado a César funeral discreto, mas como não participara da conspiração e dela nada soubera, Cassius e Brutus o ignoraram e cumpriram o acertado. O interessante é que a polícia, sob as ordens do cônsul Marcus Antonius, manteve a ordem e o funeral foi feito com grande pompa, nele discursando os dois futuros adversários.
Se isso por si só já é suspeito, muito mais suspeito é o fato de no dia seguinte ao crime Marcus Antonius, por todos julgado braço direito de César e líder natural do partido cesarista, propor ao senado a anistia de todos os implicados, decidindo-se que nenhum processo seria movido contra eles porque importava "sarar com urgência" as feridas da República traumatizada e evitar a eclosão de nova guerra civil!
Todos estavam apavorados com a possibilidade de que fosse iniciado novo ciclo de guerras entre romanos e a anistia foi rapidamente aprovada, mas qualquer político com visão perceberia que nova guerra civil já começara e a única maneira de evitar que ela incendiasse a República era sufocá-la com mão de ferro no nascedouro, executando os assassinos largamente minoritários no seio da sociedade. Não fazê-lo de imediato serviria apenas para alargar o conflito e não para extingui-lo, sendo difícil acreditar que um homem experiente como Marcus Antonius não percebesse que luta muito mais sangrenta seria o inevitável resultado da absurda anistia por ele proposta.
De qualquer modo, ao contrário do narrado por Shakespeare, não houve distúrbios antes, durante ou após o funeral. Os conflitos só ocorreram tempos depois, quando estourou a luta tendo Antonius e Otavius de um lado e Cassius e Brutus do outro. Por enquanto o jovem Otavius, sobrinho e herdeiro de César, estava longe na Grécia e os cargos foram divididos entre os criminosos, apesar de serem eles minoritários no senado.
Prova de que Antonius tinha o controle da situação é ter sido confirmado no seu posto de cônsul pelo senado com o apoio dos conspiradores, mostrando não terem existido dissensões ou debates oratórios entre ele e Brutus durante o suntuoso funeral de César. Tanto Cassius como Brutus escolheram os governos de ricas províncias onde fácil lhes seria acumular fortunas ainda maiores do que aquelas que já possuíam e tranquilamente partiram para assumir os seus novos rendosíssimos cargos poucas semanas após o golpe, coisa que não teriam feito se achassem que as coisas em Roma não estavam seguras sob o controle do "cordato" cônsul Marcus Antonius.
Isto só mudaria quando o jovem Otavius, de apenas dezenove anos e por todos julgado um quase menino imberbe, desembarcou em Brindisi e chegou a Roma à frente de uma legião fiel a César que se pusera à sua disposição. Para surpresa de todos, ao contrário dos jovens ricos da época ele não usava cabeleira, penteados ou roupas extravagantes, mas cabelos curtos e revoltos, roupas austeras e calçados simples, tudo ao gosto dos mais velhos e dos tradicionais hábitos conservadores.
Acompanhado de forte guarda de amigos, pois ao exército era proibido entrar em Roma, ele dirigiu-se ao senado onde não só exigiu o cargo de senador como também que lhe fosse permitido adicionar ao nome próprio o título de imperator que César adicionara ao seu por expressa autorização senatorial. Sendo herdeiro e sucessor do tio nada mais justo que também lhe herdasse o nome! Os senadores ficaram estupefatos com a sua petulância, mas o que se seguiu é outra história e por enquanto devemos nos ater apenas ao enigma Marcus Antonius.
Penso que o enigma consiste nas seguintes perguntas, jamais esclarecidas pelos historiadores: 1) Por que, fervilhando Roma de boatos sobre um complô contra César nos dias anteriores ao crime, deles Marcus Antonius não tomou conhecimento apesar de ser homem muito bem relacionado em todos os níveis da sociedade? 2) Se por acaso tomou, como a lógica indica que tomou, por que então não informou César que nele depositava absoluta confiança e o considerava seu melhor amigo? 3) Se de nada sabia, a polícia sob o seu comando devia saber, pois polícias em todos os tempos sempre tiveram informantes e a de Roma não era exceção. Se era assim, então por que ela não o informou? 4) Por que, justamente no dia do crime, ele, lugar tenente de César e cônsul da República, não compareceu à sessão do senado? 5) Por que após o crime a polícia sob o seu comando não prendeu os assassinos, limitando-se a manter a ordem na cidade traumatizada? 6) Por que entrou tão rapidamente em acordo com os líderes da conspiração e estes lhe deram tudo o que queria ignorando os conselhos da experiente e astuta raposa Cícero? 7) Por que menos de 24 horas após o assassinato do seu amigo e protetor ele propôs e obteve dos senadores a anistia dos assassinos? 8) Por que os golpistas, que agora controlavam o senado graças à sua colaboração, não fizeram nenhuma oposição a que ele se mantivesse no cargo de cônsul, o mais importante da República? Por que concordou e deu o aval do senado à divisão de cargos que os golpistas logo após fizeram entre si?
Antonius não falou ao povo diante do cadáver de César nas escadarias do senado como diz Shakespeare. Cena do filme "Julius Caesar" |
Cícero, seu mortal inimigo, protestou contra o que julgava ser uma loucura, pois achava que Antonius também deveria ser morto e dado a César funeral discreto, mas como não participara da conspiração e dela nada soubera, Cassius e Brutus o ignoraram e cumpriram o acertado. O interessante é que a polícia, sob as ordens do cônsul Marcus Antonius, manteve a ordem e o funeral foi feito com grande pompa, nele discursando os dois futuros adversários.
Se isso por si só já é suspeito, muito mais suspeito é o fato de no dia seguinte ao crime Marcus Antonius, por todos julgado braço direito de César e líder natural do partido cesarista, propor ao senado a anistia de todos os implicados, decidindo-se que nenhum processo seria movido contra eles porque importava "sarar com urgência" as feridas da República traumatizada e evitar a eclosão de nova guerra civil!
O funeral de César foi cinco dias após o crime e não houve os distúrbios contados por Shakespeare. Gravura de autor anônimo do século XIX |
Todos estavam apavorados com a possibilidade de que fosse iniciado novo ciclo de guerras entre romanos e a anistia foi rapidamente aprovada, mas qualquer político com visão perceberia que nova guerra civil já começara e a única maneira de evitar que ela incendiasse a República era sufocá-la com mão de ferro no nascedouro, executando os assassinos largamente minoritários no seio da sociedade. Não fazê-lo de imediato serviria apenas para alargar o conflito e não para extingui-lo, sendo difícil acreditar que um homem experiente como Marcus Antonius não percebesse que luta muito mais sangrenta seria o inevitável resultado da absurda anistia por ele proposta.
Ao contrário do narrado por Shakespeare, os discursos de Brutus e Antonius não foram nas escadarias do senado, mas no solene funeral de César dias depois. Gravura de autor anônimo do século XIX |
De qualquer modo, ao contrário do narrado por Shakespeare, não houve distúrbios antes, durante ou após o funeral. Os conflitos só ocorreram tempos depois, quando estourou a luta tendo Antonius e Otavius de um lado e Cassius e Brutus do outro. Por enquanto o jovem Otavius, sobrinho e herdeiro de César, estava longe na Grécia e os cargos foram divididos entre os criminosos, apesar de serem eles minoritários no senado.
Prova de que Antonius tinha o controle da situação é ter sido confirmado no seu posto de cônsul pelo senado com o apoio dos conspiradores, mostrando não terem existido dissensões ou debates oratórios entre ele e Brutus durante o suntuoso funeral de César. Tanto Cassius como Brutus escolheram os governos de ricas províncias onde fácil lhes seria acumular fortunas ainda maiores do que aquelas que já possuíam e tranquilamente partiram para assumir os seus novos rendosíssimos cargos poucas semanas após o golpe, coisa que não teriam feito se achassem que as coisas em Roma não estavam seguras sob o controle do "cordato" cônsul Marcus Antonius.
O porte sério e austero do jovem Otavius, herdeiro de César, impressionou favoravelmente os senadores |
Isto só mudaria quando o jovem Otavius, de apenas dezenove anos e por todos julgado um quase menino imberbe, desembarcou em Brindisi e chegou a Roma à frente de uma legião fiel a César que se pusera à sua disposição. Para surpresa de todos, ao contrário dos jovens ricos da época ele não usava cabeleira, penteados ou roupas extravagantes, mas cabelos curtos e revoltos, roupas austeras e calçados simples, tudo ao gosto dos mais velhos e dos tradicionais hábitos conservadores.
Acompanhado de forte guarda de amigos, pois ao exército era proibido entrar em Roma, ele dirigiu-se ao senado onde não só exigiu o cargo de senador como também que lhe fosse permitido adicionar ao nome próprio o título de imperator que César adicionara ao seu por expressa autorização senatorial. Sendo herdeiro e sucessor do tio nada mais justo que também lhe herdasse o nome! Os senadores ficaram estupefatos com a sua petulância, mas o que se seguiu é outra história e por enquanto devemos nos ater apenas ao enigma Marcus Antonius.
Otavius era muito jovem, mas não baixou a crista. Ganhou o apoio do senado, venceu Antonius e tornou-se imperador |
Penso que o enigma consiste nas seguintes perguntas, jamais esclarecidas pelos historiadores: 1) Por que, fervilhando Roma de boatos sobre um complô contra César nos dias anteriores ao crime, deles Marcus Antonius não tomou conhecimento apesar de ser homem muito bem relacionado em todos os níveis da sociedade? 2) Se por acaso tomou, como a lógica indica que tomou, por que então não informou César que nele depositava absoluta confiança e o considerava seu melhor amigo? 3) Se de nada sabia, a polícia sob o seu comando devia saber, pois polícias em todos os tempos sempre tiveram informantes e a de Roma não era exceção. Se era assim, então por que ela não o informou? 4) Por que, justamente no dia do crime, ele, lugar tenente de César e cônsul da República, não compareceu à sessão do senado? 5) Por que após o crime a polícia sob o seu comando não prendeu os assassinos, limitando-se a manter a ordem na cidade traumatizada? 6) Por que entrou tão rapidamente em acordo com os líderes da conspiração e estes lhe deram tudo o que queria ignorando os conselhos da experiente e astuta raposa Cícero? 7) Por que menos de 24 horas após o assassinato do seu amigo e protetor ele propôs e obteve dos senadores a anistia dos assassinos? 8) Por que os golpistas, que agora controlavam o senado graças à sua colaboração, não fizeram nenhuma oposição a que ele se mantivesse no cargo de cônsul, o mais importante da República? Por que concordou e deu o aval do senado à divisão de cargos que os golpistas logo após fizeram entre si?
Estas são perguntas que eu me faço há muitos anos e para as quais não encontrei respostas convincentes nos mais reputados historiadores. Mas eu tenho uma teoria própria e acho que diante do que aqui foi exposto o leitor também deve elaborar a sua.
Afinal de contas, como disse o próprio Shakespeare no Hamlet, “existem mais mistérios entre o Céu e a Terra do que é dado imaginar a nossa vã filosofia”!
Nota: Como não havia tropas do exército em Roma nem nos seus arredores, a ordem na cidade era mantida por uma polícia que tinha o nome de "Guarda Pretoriana". Era composta por algumas centenas de guardas que embora usassem armas e uniformes militares não pertenciam ao exército e por isso não tinham equipamento pesado nem eram treinados para o combate. Sua função era guardar os prédios públicos, as pessoas dos magistrados, fazer cumprir suas ordens, investigar crimes e prender criminosos, executando-os quando fosse o caso, e manter a ordem pública. O imperador Tibério a transformou em guarda imperial composta de soldados profissionais aptos ao combate e o seu comandante, chamado "Prefeito do Pretório", tornou-se um alto magistrado de natureza militar diretamente subordinado ao imperador. Na época de César ainda não era assim: a guarda era mais polícia civil do que polícia militar e o magistrado que a comandava era subordinado aos Cônsules e ao Senado. Sendo o Cônsul praticamente único, pois o outro era César, que acumulava a função com o cargo de Ditador Vitalício, Marcus Antonius era o segundo homem do governo e o Prefeito do Pretório a ele se reportava diretamente.
Nota: Como não havia tropas do exército em Roma nem nos seus arredores, a ordem na cidade era mantida por uma polícia que tinha o nome de "Guarda Pretoriana". Era composta por algumas centenas de guardas que embora usassem armas e uniformes militares não pertenciam ao exército e por isso não tinham equipamento pesado nem eram treinados para o combate. Sua função era guardar os prédios públicos, as pessoas dos magistrados, fazer cumprir suas ordens, investigar crimes e prender criminosos, executando-os quando fosse o caso, e manter a ordem pública. O imperador Tibério a transformou em guarda imperial composta de soldados profissionais aptos ao combate e o seu comandante, chamado "Prefeito do Pretório", tornou-se um alto magistrado de natureza militar diretamente subordinado ao imperador. Na época de César ainda não era assim: a guarda era mais polícia civil do que polícia militar e o magistrado que a comandava era subordinado aos Cônsules e ao Senado. Sendo o Cônsul praticamente único, pois o outro era César, que acumulava a função com o cargo de Ditador Vitalício, Marcus Antonius era o segundo homem do governo e o Prefeito do Pretório a ele se reportava diretamente.